O Dia Nacional de França de 2016 – no 227.º
aniversário da Tomada da Bastilha no quadro da Revolução Francesa de 1789 –
ficou ontem, dia 14 de julho, marcado pela tragédia. Na verdade, um camião
irrompeu propositadamente contra a multidão apinhada a contemplar o espetáculo
de fogo de artifício a assinalar, na Promenade
des Anglais, em Nice, o Dia Nacional.
De férias naquela cidade da Côte d’Azur, o ex-ministro e comentador
da SIC, António Bagão Félix, que assistira com a esposa ao espetáculo do fogo
de artifício, pouco antes da ocorrência, relata, recordando-se de ver apinhada
de gente a longa avenida, com cerca de cinco quilómetros e onde a circulação
automóvel estava vedada:
“Devo ter passado exatamente no sítio onde isto aconteceu dez minutos, um
quarto de hora antes. […]. Vimos o fogo de artifício, mas depois fomos para o
hotel porque estava muito vento”.
Bagão
Félix acabou, pelos vistos casualmente, por já se encontrar no hotel onde
estava hospedado, a cerca de um quilómetro de distância do local, quando ocorreu
o trágico acontecimento.
A avenida estava cortada ao trânsito. No entanto, um camião
conduzido por Mohammed Lahouaiej Bouhlel fez ali um trajeto
de cerca de dois quilómetros, ao longo do qual, avançando sobre a multidão,
atropelou mortalmente pelo menos 84 pessoas (entre as
quais algumas dezenas de crianças), fez 202
feridos, deixando 52 pessoas em estado crítico. Além disso, ouviram-se tiros e
explosões e acreditava-se que vários reféns estariam no Hotel Méridien.
Rapidamente a polícia acorreu e
abateu o condutor do camião, não evitando, no entanto, que suspeitos de
cumplicidade se pusessem em fuga.
Cedo se suspeitou de que o caso
se inscreveria no quadro dos ataques do autoproclamado Estado Islâmico (Daesh) à França, que alegadamente nunca soubera
integrar estrangeiros e em cujo poder político os nacionais e os residentes
estrangeiros confiam cada vez menos.
E é certo que, embora não tivesse
sido reivindicada autoria do atentado, vários canais no Telegram e contas do
Twitter próximas do grupo terrorista começaram a colocar online mensagens de congratulação pelo atentado no sul de França. Alguns dos principais canais do Daesh no Telegram, uma aplicação muito
popular entre membros do grupo terrorista, celebram o ataque realizado na noite
de 14 de julho em Nice. Alguns garantem que foi o Daesh a organizar o atentado
e fazem propaganda à tragédia ocorrida naquela cidade francesa.
No
Twitter há também contas não oficiais pró-Daesh a glorificar o ataque,
mostrando várias imagens de que se destaca a Torre Eiffel a arder.
Segundo
a especialista norte-americana Rita Katz, responsável pelo SITE Intel Group,
entidade que monitoriza grupos jiadistas de todo o Globo, “a reação da comunidade
online ligada ao Daesh tem
semelhanças com as que ocorreram logo após os ataques em Paris e Bruxelas”.
O
Telegram permite aos utilizadores transmitir conteúdos a um número ilimitado de
pessoas, podendo mesmo usar canais públicos para o fazer. No entanto, o
essencial é a proteção da identidade do utilizador.
***
O Presidente francês reuniu de imediato o gabinete de
crise, o que a autarquia também fez. E os franceses choram os mortos de Nice,
mas desta vez não há unidade nacional. Nem a deslocação do Governo e do
Presidente ao local esbate o desespero e as críticas.
Desta vez é o desespero e a exasperação. Sente-se acabado o sentimento e a
expressão da unidade nacional francesa, pois já não existe a comunhão de todos
os franceses na dor e no luto subsequentes aos massacres, como acontecera em janeiro
e novembro de 2015, depois dos terríveis atentados de Paris. Os franceses não
aguentam mais a bárbara sucessão de chacinas que os atinge com regularidade e
interrogam-se expressamente nos cafés, nos empregos e nas ruas. Têm a sensação
de que as suas autoridades não conseguem impedir os atentados e o massacre
horroroso da noite de Nice redundou na quebra da unidade nacional, mesmo ao
nível político.
É demasiado evidente que terminou o estado de espírito de união de todos os
cidadãos franceses e dos demais residentes contra o terror que se sentia a
seguir aos atentados congéneres do passado.
As consequências políticas do ataque alargado são difíceis de prever, mas
certamente que as haverá porque a exasperação perante a impotência das
autoridades é palpável, mesmo nas ruas de Paris, a mais de mil quilómetros de
Nice. É a defesa do Estado e das populações que está em causa e em risco!
Também o espírito de união entre a classe política em torno dos grandes
objetivos nacionais terminou claramente e este facto foi colocado esta manhã de
15 de julho com impacto na praça pública por Christian Estrosi, antigo maire de Nice e presidente desta região do sudeste
de França, tal como por outros políticos. As questões que estão a ser colocadas
têm a ver, por exemplo, com esta pergunta:
“Como pôde um enorme camião atravessar a cidade de
Nice, chegar à luxuosa Promenade des
Anglais e entrar numa zona pedonal, que estava cortada ao trânsito, sem ser
intercetado?”.
Christian Estrosi revelou que na véspera do atentado escrevera uma carta
muito dura ao Presidente da República a pedir mais meios e poderes para a polícia.
A carta foi publicada hoje pelo matutino “Le
Figaro” e, nela, aquele político de direita reclamava “um plano de urgência” para reforçar as forças da ordem na região e dotá-las
de mais e melhor equipamento. Aliás, a polícia revelou que o autor material do
massacre já era cadastrado, embora por crimes menores.
E agora políticos e comentadores colocam outras questões:
“Por que razão, há dias, o Governo decidira pôr fim ao
estado de emergência e agora, depois do atentado, decidiu prolongá-lo por mais
três meses? Porque pensava o Governo aligeirar a participação dos militares nas
patrulhas de segurança e agora decidiu reforçá-las?”.
De facto, não é admissível nem desculpável um abrandamento da segurança
pública no Dia Nacional da França nas
principais cidades, sobretudo em lugares de grandes ajuntamentos.
Sem resposta para aquelas pertinentes perguntas, os franceses acordaram
hoje perplexos com o novo horror, que desta feita se abateu sobre a zona
turística da luxuosa Côte d’Azur, a mais famosa costa balnear de França. Mas
agora não é só nas pessoas que reside uma indescritível dor. A polémica eclodiu
pouquíssimas horas a seguir ao massacre e o anúncio de que François Hollande e Manuel
Valls se deslocariam ao fim da manhã de hoje a Nice não acalmou ninguém.
***
Entretanto,
sabe-se que o massacre teria proporções mais avantajadas e desastrosas se não
fosse a intervenção de dois homens que tentaram travar o camionista agressor. Um deles conseguiu mesmo entrar na cabina do camião.
Efetivamente, o massacre poderia ter sido mais longo e letal não fosse o
ato heroico de um homem que conseguiu entrar dentro da cabina do camião e lutou
para neutralizar o condutor, segundo o que fontes policiais vieram a confirmar.
O homem conseguiu entrar na cabina num momento em que o camião teve dificuldade
em avançar devido a obstruções e obstáculos no caminho. O indivíduo lutou
depois com o autor do atentado, mas este acabou por pegar numa arma e disparar
sobre ele, assim como na direção dos polícias, que acabaram por conseguir
abatê-lo.
Também um motociclista perseguiu o camião e tentou subir para dentro da
cabina, mas sem sucesso. O fotojornalista alemão Richard Gutjahr refere que “surpreendentemente,
ele (Bouhlel, o
autor do atentado) conduziu
muito devagar, não depressa, conduziu devagar e foi perseguido por um
motociclista”. O motociclista terá tentado obrigar o camião a parar e mesmo
abrir a porta do condutor, mas caiu e acabou debaixo das rodas do pesado. O predito
fotojornalista disse, ainda, que o camião só acelerou e começou a ziguezaguear
entre a multidão quando dois polícias começaram a disparar contra o condutor.
***
Porém, nem
só de tragédia e heroísmo reza a noite consternante de Nice. Os momentos de
tensão em Nice foram acompanhados por um nascimento. Segundo a Reuters, em pleno ataque de Nice, deu-se um milagre da
natureza: nasceu um bebé.
Se o
atentado chocou o mundo e instalou o pânico entre as pessoas que se encontravam
no local, o pavor pelo cenário bárbaro que se viveu foi contraposto e, em certo
modo, suavizado por um milagre. Em pleno ataque, no chão dum restaurante de
praia da Promenade des Anglais, nasceu
uma criança.
A jovem mãe
deu à luz no restaurante Ruhl Plage, onde se encontrava com o marido e com os
filhos e onde centenas de pessoas se refugiaram no momento do ataque perpetrado
pelo camião.
Segundo o Le Parisien, embora a mulher estivesse
grávida de nove meses, não foi o tempo que fez surgir a hora do parto, mas o
medo e a ansiedade que provocaram fortes contrações e levaram a que o parto se
realizasse naquele local. Um médico que estava no restaurante prestou ajuda no
nascimento do bebé e aguardou pelos bombeiros durante várias horas. A mulher e
o recém-nascido foram transportados para o hospital onde foram convenientemente
tratados.
***
Gosto de, no rescaldo e no entorpecimento da tragédia, destacar a
intervenção heroica de dois homens que, apesar de tudo, sustiveram a marcha do horror
e o nascimento da criança que terá servido de lenitivo ao sofrimento dos circunstantes.
Quanto ao mais, não podem os Governos deixar de articular, para bem dos
cidadãos, as exigências da liberdade e da segurança. É que a França está em
guerra com o Daesh por causa do Iraque e da Síria. E será pena que, face à descida
da capacidade do inimigo, a França entre em guerra consigo própria por
desorientação da liderança e descrédito do poder.
2016.07.15 –
Louro de Carvalho
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