terça-feira, 19 de julho de 2016

Avaliar o regime de acesso ao ensino superior

Trata-se de medida inscrita no programa do XXI Governo tida como necessária para cumprir os objetivos programáticos atinentes à qualificação dos portugueses. Com efeito, o programa governamental promete:
“Avaliar o regime de acesso ao ensino superior e promover um debate público, visando a sua modernização e adequação aos novos contextos, nomeadamente tendo como objetivo: alargar a base de recrutamento dos candidatos ao ensino superior e a qualificação dos portugueses, estimulando a aprendizagem ao longo da vida e valorizando um quadro diversificado de instituições universitárias e politécnicas, tendo em conta as grandes alterações na oferta formativa que estão a acontecer à escala global”.
No seguimento do estipulado no programa do Governo, entre outras iniciativas do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES), surge o Despacho n.º 6930/2016, de 25 de maio, assinado em 12 do mesmo mês pelo Ministro. Nele se determinou a constituição de um grupo de trabalho, com a missão de avaliar o regime de acesso ao ensino superior (ES), composto: pelo presidente da Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior (CNAES), que coordena; pelo Diretor-Geral do Ensino Superior; por Madalena Moutinho Alarcão Silva, vice-reitora da Universidade de Coimbra, e Pedro Nuno de Freitas Lopes Teixeira, vice-reitor da Universidade do Porto, em representação do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP); por Carlos Manuel Leitão Maia, presidente do Instituto Politécnico de Castelo Branco, e João Alberto Sobrinho Teixeira, presidente do Instituto Politécnico de Bragança, em representação do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos (CCISP); por José Manuel Amado da Silva, reitor da Universidade Autónoma, em representação da Associação Portuguesa de Ensino Superior Privado; e por Afonso Carlos da Silva Costa e Pedro Gabriel Barrias Martins, adjuntos no Gabinete do Ministro. E poderão ser convidados a participar nas reuniões do Grupo de Trabalho especialistas em matérias específicas, sempre que tal se mostre conveniente. Mais se determinou que o Grupo, com o “apoio administrativo e logístico” da Direção-Geral do Ensino Superior, apresentasse um relatório com “as conclusões do trabalho efetuado e propostas de atuação até 30 de junho” pp,, com a inclusão de um “plano de ação a curto e médio prazo”, e promovesse “eventos de discussão pública sobre o acesso ao ensino superior e de estímulo à frequência no ensino superior”.
Segundo o preâmbulo do predito despacho, a pretensa avaliação impõe-se pela necessidade de reforçar as qualificações da população para atingir “os objetivos definidos na estratégia Europa 2020”, já que “Portugal divergiu da meta europeia” nos últimos anos sobretudo por dois fatores: decréscimo continuado nas taxas de diplomados com idades entre os 22 e os 30 anos; e elevados níveis de emigração entre os jovens diplomados. Assim, o desafio de qualificação que o país assumiu de ter 40 % da população (entre os 30-34 anos) com um grau superior ou equivalente exige o alargamento da base social de apoio do ES e a qualificação da atividade de formação avançada ao nível doutoral e pós-doutoral, bem como a dignificação e a melhor valorização da atividade científica e a atração de recursos humanos qualificados para Portugal. Não se trata de mera razão estatística, mas do esforço necessário para a economia poder ser renovada com recursos humanos mais qualificados.  
Por outro lado, torna-se útil refletir sobre os critérios de seleção dos estudantes no acesso ao ES, tendo em conta: os perfis cada vez mais diversificados dos estudantes que concluem o ensino secundário; a necessidade de garantir meios adequados para a aprendizagem ao longo da vida; e a existência de milhares de candidatos fora da idade de referência de ingresso no ES. Tal ponderação deve visar a promoção da mobilidade social, envolvendo “o maior número de cidadãos no ensino superior”, sem deixar de considerar “o mérito individual”.
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Concluído que está o relatório prescrito no referido despacho ministerial, são já conhecidas algumas propostas de opção, que o Grupo de Trabalho apresentou e que o MCTES porá em discussão pública.
Por isso, já se adianta que o concurso nacional de acesso ao ES, ora em curso, deverá ser o último feito nos atuais moldes. O Governo decidiu rever o modo com são fixadas anualmente as vagas, bem como a forma como as instituições selecionam os seus alunos, que atualmente é baseada quase exclusivamente nas médias das classificações do ensino secundário e dos exames nacionais. A primeira proposta para a tal reforma, que será conhecida na íntegra até ao final deste mês, passará pela redução do peso dos exames finais do secundário na nota de candidatura – o que foi reclamado, já o ano passado, pelos institutos politécnicos, alguns dos quais admitiam que tais exames valessem apenas para conclusão do ensino secundário e sem a exigência de qualquer nota mínima para ingresso.
Atualmente, a grande maioria dos alunos é colocada através do concurso de acesso, um sistema único de âmbito nacional em que os candidatos são seriados tendo em conta as notas do ensino secundário e dos exames nacionais.
O Grupo de Trabalho, como se referiu, já entregou ao Ministro um conjunto de propostas preparatórias, decorrendo ao longo deste mês audições com associações de escolas, associações de pais, associações de estudantes e associações académicas. O tema irá ser discutido na próxima sessão do Conselho Nacional de Educação (CNE). Prevê-se que, até ao final do mês, seja entregue ao Ministro o relatório final, com as conclusões e as propostas de alteração, bem como o plano de ação a curto e médio prazo. Depois, haverá um mais alargado período de discussão pública, que estará finalizado até ao final do ano civil.
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Como já foi entredito, ao longo do ano passado, houve acesa discussão em torno duma proposta do CCISP que visava reduzir a preponderância dos exames nacionais no acesso a licenciatura. No presente, as classificações das provas finais do secundário têm o peso de 50% na nota de ingresso no ES. Os politécnicos pretendiam que as provas passassem a servir apenas para a conclusão do ciclo de ensino, mas não para o acesso.
As Universidades elogiaram a proposta, por implicar uma maior distinção entre os estudantes formados em instituições de um e outro subsetor – o que podia ser positivo. Virgílio Meira Soares, que foi dirigente da CNAES durante mais de uma década, até 2013, disse então ao jornal Público que o sistema atual “não responde às necessidades” do país, mostrando-se favorável a uma revisão das regras. Também a CONFAP (Confederação Nacional de Associações de Pais) considerou “urgente” rever as regras de acesso ao ensino superior, como forma de corrigir os problemas provocados pela inflação das classificações internas dos alunos em algumas escolas. Por sua vez, a Associação de Estabelecimentos do Ensino Particular e Cooperativo considerou a mudança “fundamental”.
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Efetivamente o estipulado na legislação em vigor tem sofrido as maiores críticas e sugestões.
Tais críticas/sugestões têm a ver com as condições de candidatura e com o elenco e realização das provas de ingresso. Assim, só pode candidatar-se à matrícula e inscrição no ES o estudante que reúna cumulativamente estas condições: ser titular de um curso de ensino secundário ou equivalente; provar a capacidade para a frequência do ES. O elenco de provas de ingresso, que pode ser organizado em subelencos por áreas de estudo, é fixado pela CNAES, sob proposta das instituições de ensino superior (IES). A CNAES decide sobre a forma de realização das provas de ingresso, podendo: elaborar e realizar, sob a sua direção, provas destinadas a esse fim; ou utilizar exames nacionais do ensino secundário. Para os estudantes com cursos não portugueses equivalentes ao nosso ensino secundário, as provas de ingresso podem ser substituídas, a juízo do respetivo estabelecimento de ES, por exames finais de disciplinas dos cursos que satisfaçam cumulativamente as seguintes condições: terem âmbito nacional; referirem-se a disciplinas homólogas das provas de ingresso (com nível e objetivos idênticos e conteúdos similares), não podendo os estudantes que pretendam utilizar tais disciplinas recorrer às provas de ingresso normais.
Face a estas disposições legais têm sido levantadas questões e surgido várias afirmações e/ou aspirações, de que se destacam:
Cada IES deve poder escolher os seus alunos (fixando, elaborando e corrigindo também as respetivas provas de ingresso); a classificação do ensino secundário não deveria ser considerada para efeitos de ingresso; a colocação dos estudantes é feita muito tarde por culpa da organização dos exames do ensino secundário; só há exames finais do secundário por causa do regime de acesso; os candidatos aprovados em ensino secundário estrangeiro deveriam submeter-se às regras dos candidatos aprovados em Portugal; e o facto de o Governo fixar notas mínimas para o ingresso é atentar contra a autonomia das IES.
Se algumas afirmações são falsas, outras são compreensíveis e merecem discussão aprofundada, devendo atender-se a que a legislação em vigor está balizada pela LBSE, que limita o pretendido, se não se obtiver o consenso necessário. O n.º 1 do art.º 12.º da LBSE estabelece como condição de acesso ao ES, a aprovação num “curso do ensino secundário ou equivalente” (putativamente a cargo das escolas secundárias) e a prova de capacidade para a frequência do ES (claramente a cargo das IES, que também o organizam o processo de seleção e seriação dos candidatos aos cursos – vd n.º 3). E o n.º 2 do mesmo art.º 12.º estabelece os princípios dos regimes de acesso e ingresso:
Democraticidade, equidade e igualdade de oportunidades; objetividade dos critérios utilizados para a seleção e seriação dos candidatos; universalidade de regras para cada um dos subsistemas de ensino superior; valorização do percurso educativo do candidato no ensino secundário, nas suas componentes de avaliação contínua e provas nacionais, traduzindo a relevância para o acesso ao ensino superior do sistema de certificação nacional do ensino secundário; utilização obrigatória da classificação final do ensino secundário no processo de seriação; coordenação dos estabelecimentos de ensino superior para a realização da avaliação, seleção e seriação por forma a evitar a proliferação de provas a que os candidatos venham a submeter-se; caráter nacional do processo de candidatura à matrícula e inscrição nos estabelecimentos de ensino superior público, sem prejuízo da realização, em casos devidamente fundamentados, de concursos de natureza local; e realização das operações de candidatura pelos serviços da administração central e regional da educação.
Tais disposições legais levam-nos a refletir sobre a viabilidade das aspirações referidas.
Nenhuma disposição da LBSE obriga a exames finais do ensino secundário nem à sua utilização como provas de ingresso. Mas, se eles deixarem de existir, estarão as IES dispostas a organizar exames a nível nacional, ou regional, evitando a sua proliferação?
A existência de 3 fases de candidatura ao ES é absurda na ótica das IES; porém, a correção dos exames do ensino secundário tem regras não compatíveis com grande redução de prazos. Depois de esforço e conversações, antecipou-se em duas semanas a entrada dos candidatos da 1.ª fase.
Havendo exames no ensino secundário, são incompreensíveis algumas das disparidades entre as classificações da avaliação interna e a dos exames (apesar da limitação do objeto e do tempo), como não é compreensível que pouco se tenha feito para resolver o problema, para lá da publicação dos resultados, que servem apenas para injustamente se classificarem escolas sem atender ao seu contexto e dimensão. A introdução de nota mínima de ingresso é, pois, uma exigência natural.
A imposição de disciplinas específicas para o ingresso em certos cursos, poderia ser considerada um atentado à autonomia das IES. Mas estas é que indicam as disciplinas em que exigem a prova para garantia da qualidade dos seus estudantes. Não podem agora agir apenas devido à escassez de candidatos, baixando a exigência.
A estas questões pode acrescentar-se a existência de contingentes e regimes especiais. Se alguns se justificam, outros dificilmente se justificam atualmente, mas mantêm-se por falta de coragem política, apesar dos pareceres favoráveis à sua eliminação ou redução. É óbvio que não está em causa o caso dos maiores de 23 anos (apesar de algumas críticas aos procedimentos adotados) ou outros recentemente criados em resultado de criação de vias paralelas, mas estão em causa, por exemplo, os casos contemplados no DL n.º 383-A/99, de 2 de outubro.
Ora, seja qual for a opção política a adotar, parece ser de não enveredar, de momento, por uma alteração (desnecessária) da LBSE. Não se deve prescindir da média do ensino secundário ou equivalente, a não ser no caso dos maiores de 23 anos (em que o acesso ao ES se deve estribar nas provas). Será mau, mesmo muito mau que não se exija uma nota mínima para ingresso num curso. Deve evitar-se a corrida desenfreada a determinados cursos, baseada apenas nos resultados académicos, por vezes conseguidos sem olhar a meios – não se percebe por que motivo não se definem pré-requisitos pré-profissionais e outras formas de seleção para ingresso em determinados cursos. E, sim, deveriam as IES ter o principal papel e responsabilidade no processo de acesso e ingresso no ES. Sobre estes itens, a LBSE não levanta qualquer objeção.
Finalmente, qualquer que seja o processo de seleção e seriação, deverão ser observados os seguintes pressupostos: garantia de equidade (não igualitarismo, mas igualdade de oportunidades); estabilidade (que, aliás, tem acompanhado o modelo atual, apesar da sua complexidade); e simplicidade das regras e da sua aplicação, para garantir transparência e evitar a criação de casos de exceção, que confundem os candidatos e a população, para além de serem quase sempre fonte de injustiças.
É óbvio que não gostei de ver o CRUP a aceitar a pretensão dos Politécnicos por daí resultar a diferença de grau de exigência nos dois subsectores do ES; e concordo que, a manterem-se os exames no ensino secundário como um dos fatores de acesso e ingresso, sejam as ES a definir o peso percentual das provas de ingresso e o da média do ensino secundário, desde que não se prescinda duma nota mínima que não desdiga da dignidade do curso do ES em causa.
Vamos ver se o MCTES levará a melhor nesta problemática!

2016.07.19 – Louro de Carvalho 

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