domingo, 31 de julho de 2016

Contra a idolatria dos bens materiais

O livro de Qohélet, logo no versículo 2 do capítulo 1 lança o mote da vida gizada e construída exclusivamente com base na confiança nos bens terrenos: “Desilusão (em grego, ματαιότης) das desilusões, tudo é desilusão”. A versão latina da Bíblia exprime-se pela “vanitas” (vaidade, índole vã e vazia das coisas), que não consiste apenas no sentido de preponderância pessoal e no acúmulo de adornos corporais, mas no caráter fugaz e inconstante das coisas do mundo.
E Qohélet (cf Ecl 2,21ss) pressupõe que as riquezas provêm do trabalho com sabedoria, ciência e êxito. Depois, quem assim procede nada leva consigo; deixa para outro que eventualmente nenhum esforço fez, muito menos para conseguir aquilo que lhe foi legado. Por isso, o hagiógrafo pergunta “qual o proveito que o homem colhe do seu trabalho, do seu esforço, da sua azáfama”. Toda a gente sabe que as coisas deste mundo são vãs e passageiras, vãs como a flor do feno que se desfaz ao mais pequeno sopro ou e passageiras e insaciantes como os rios que passam e desaguam no mar sem que este alguma vez venha a encher-se (cf Ecl 1,7).
Por isso, há que tomar em linha de conta que os bens materiais, se forem assumidos como adequados servidores do homem e de todos os homens, serão bem-vindos e mesmo necessários para assegurar o seu sustento, conforto e vida condigna. Mas não podem ser assumidos como donos nem mestres – porquanto deixar-nos-ão inanes, vazios, insatisfeitos e escravos – nem podem estar ao serviço só de uns poucos. O seu destino, segundo o querer de Deus, é universal.
E a acumulação da riqueza nas mãos de uns poucos – e cada vez mais ricos – gera a injustiça social. Também a procura do domínio dos recursos naturais, do capital e do trabalho gera o conflito e a guerra. Hoje a situação é “particularmente preocupante” no Iémen, Síria, Sudão do Sul, Burundi e bacia do lago Chad. Os conflitos são as principais causas da fome porque destroem campos em cultivo, gado e infraestruturas agrícolas; bloqueiam mercados, forçam ao deslocamento das populações, contribuem para a propagação de doenças e dificultam o acesso de Governos e organizações humanitárias a determinadas zonas.
São graves os problemas que afligem a humanidade e colocam em risco a sua sobrevivência e a do Planeta. Morrem violentamente milhares de pessoas por via dos assassinatos e guerras. E morrem lentamente milhões de irmãos subalimentados. Agudizam-se as discriminações sociais, raciais, geracionais religiosas e de género. A guerra não desaparece dum país sem que primeiro se instale noutro. Tudo isto nos leva a inferir da enorme dificuldade em os homens conviverem em paz e cooperação.
Por sua vez, a perícopa do 3.º evangelho que se proclama e medita na missa do XVIII domingo do tempo comum do Ano C (Lc 12, 13-21) não diz que o rico da parábola tenha necessariamente prejudicado outras pessoas. Cristo censura a avareza do homem cujo campo “tinha produzido excelente colheita” e o seu apego à riqueza. Perante a abundância optou, não por distribuir, repartir e disponibilizar, mas acumular, enceleirar. E, como os celeiros não eram capazes de comportar todo o resultado da colheita, decidiu deitá-los abaixo e construir outros maiores “onde guardarei todo o meu trigo e os meus bens”.
Aquilo que parece um ato normal de gestão torna-se um ato de hedonismo equivalente a idolatria: “Minha alma, tens muitos bens em armazém para longos anos. Descansa, come, regala-te”. Este homem esqueceu-se do espírito, de Deus e do próximo. Mesmo a expressão “minha alma”, entre os hebreus não significava a parte espiritual do homem, mas a pessoa com as suas possibilidades, limitações, circunstâncias e ambições. Ainda hoje quando rezamos a Cristo que guarde a nossa “alma” para a vida eterna, não nos referimos exclusivamente à alma.
A parábola vem na sequência da atitude dum homem que, do meio da multidão, pedira a Jesus que ordenasse ao irmão que repartisse a herança consigo. Jesus recusou-se a ser juiz ou árbitro das partilhas. Entretanto, sentiu a necessidade de advertir os presentes para a tentação e o perigo da avareza, dado que a vida da pessoa não depende da abundância dos seus bens. E assim, o término da parábola enuncia a sentença de Deus em réplica à postura daquele supino avarento excessivamente confiante na sua riqueza: “Insensato, esta noite entregarás a alma a Deus. Para quem será o que preparaste?”. E Jesus conclui: “Assim acontece a quem acumula para si em vez de se tornar rico aso olhos de Deus”.
Como se vê, Lucas não deixa de escalpelizar as desigualdades, injustas e censuráveis em tantos e tantos casos no mundo greco-romano como no de hoje. Para o rico e avarento, o grande motor da vida é o dinheiro, que deixa de ser um meio para uma vida desafogada, para se transformar num fim. Se o dinheiro é um fim, trabalha-se para ele, anseia-se por ele, calcula-se por ele; adora-se o dinheiro e ama-se o dinheiro sobre todas as coisas, mas não ao próximo como a nós mesmos. O deus-dinheiro pontifica numa economia que mata. Por isso, Jesus adverte:
“Ninguém pode servir a dois senhores: ou não gostará de um deles e estimará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro.”
Noutro passo do Evangelho Jesus exclamou: Como é difícil para os que têm riquezas entrar no Reino de Deus!” (Lc 18,24).
E Lucas, em contraposição às bem-aventuranças, transcreve as imprecações de Cristo, nas quais são fortemente invectivados os ricos:
“Mas ai de vós, os ricos, porque recebestes a vossa consolação! Ai de vós, os que estais agora fartos, porque haveis de ter fome! Ai de vós, os que agora rides, porque gemereis e chorareis! Ai de vós, quando todos disserem bem de vós! Era precisamente assim que os pais deles tratavam os falsos profetas.” (Lc 6,24-26).
Por sua vez, a carta de Tiago contém uma forte advertência aos ricos, mas acusando a conexão da riqueza com a exploração dos trabalhadores e o espezinhamento e morte de inocentes:
E agora vós, ó ricos, chorai em altos gritos por causa das desgraças que virão sobre vós. As vossas riquezas estão podres e as vossas vestes comidas pela traça. O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se e a sua ferrugem servirá de testemunho contra vós e devorará a vossa carne como o fogo. Entesourastes, afinal, para os vossos últimos dias! Olhai que o salário que não pagastes aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos está a clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo! Tendes vivido na terra, entregues ao luxo e aos prazeres, cevando assim os vossos apetites… para o dia da matança! Condenastes e destes a morte ao inocente, e Deus não vai opor-se?” (Tg 5,1-6).
***
Hoje falamos, não só da riqueza pura e simplesmente aceite por herança, da riqueza merecida e da riqueza procurada e acumulada, mas da riqueza disputada por processos ilícitos, ou à custa do suor, da ignorância, da distração e da boa fé dos outros. Todos conhecemos ora a arrogância ora a hipocrisia dissimulada das pessoas que enriquecem desmedidamente. E, se o poderio económico lhes dá visibilidade, tornam-se insuportáveis ou porque a crítica os incomoda ou porque as coisas não lhes correm com aquela feição que desejavam.
Depois que a economia passou a resultar de esquemas de consecução de dinheiro fácil e o dinheiro se muniu de asas invisíveis, os pobres começaram ou a ser um estorvo ou a constituir um modo de oferta de oportunidade aos mais ricos de exercerem a sua filantropia a facultar a fuga aos impostos, a distrair os incautos dos métodos cada vez mais sofisticados em uso para anafar a carteira própria e possivelmente a dos amigos de ocasião que aceitem entrar no jogo. E, como polvo insaciável estendem os tentáculos a tudo o que cheire a poder. E pasme-se: quanto mais ricos, mais dificuldade têm em arranjar dinheiro para pagar as contas: o dinheiro não lhes basta. Até ficam com dinheiro dos trabalhadores (segurança social e fisco), provocam a fuga de capitais… Mas os dividendos das sociedades que gerem, ou em que participam, não deixam de ser oportuna e opiparamente distribuídos; os dinheiros de todos os outros, sobretudo dos que amealharam putativamente para poupar, esvaem-se naqueles esquemas do feroz capitalismo financeiro como manteiga em focinho de cão; bancos e empresas onde conseguem meter a mão ou são liquidados, comprados, alienados a fundos mobiliários, resolvidos ou dispersos em bolsa. E, na maior parte dos casos, os enganados e lesados esperam e os contribuintes pagam direta ou indiretamente, nem que seja sob o regime de programas de ajustamento, que implicam cortes salariais e de pensões, rarefação de produtos ou aumento dos seus preços e aumento brutal de impostos. Em contraponto, as remunerações, salários, gratificações, reformas e outras mordomias dos grandes empresários, administradores e gestores de topo não param e crescem assustadoramente. Entram em insolvência milhares de empresas e os seus titulares – que por gestão displicente ou mesmo danosa criaram desemprego, miséria e crise – distraem-se na boa, mantendo os seus sinais exteriores de riqueza, gozando férias suavemente hedonísticas, fogem a impostos, iludem a segurança social, continuam as negociatas. Porém, aos outros pregam a ética e a moral. E, sobretudo, de olhos hipocritamente piedosos e caras de santo, escutam o Papa, o Bispo ou o Padre a citar São Paulo, na carta aso Colossenses:
“Já que fostes ressuscitados com Cristo, procurai as coisas do alto, onde está Cristo, sentado à direita de Deus. Aspirai às coisas do alto e não às coisas da terra. […]. Crucificai os vossos membros no que toca à prática de coisas da terra: fornicação, impureza, paixão, maus desejos e a ganância, que é uma idolatria. Estas coisas provocam a ira de Deus sobre os que lhe resistem. Rejeitai vós tudo isso: ira, raiva, maldade, injúria, palavras grosseiras saídas da vossa boca. Não mintais uns aos outros, já que vos despistes do homem velho, com as suas ações, e vos revestistes do homem novo, aquele que, para chegar ao conhecimento, não cessa de ser renovado à imagem do seu Criador. Aí não há grego nem judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro, cita, escravo, livre, mas Cristo, que é tudo e está em todos.” (Cl 3,1-2.5-6.7-11).
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Belas Palavras… mas não só para ouvir, mas para levar à prática! (cf Tg 1,22).
O Deus de Jesus Cristo é o Deus da vida e da equidade, a paz e da abundância, da liberdade e da dignidade. E, confiando ao homem a missão de se governar e de governar os seus irmãos, cuidando deles, Deus espera e exige dos cristãos, reais conhecedores do Seu desígnio e da Sua vontade, que se empenhem incondicionalmente na instauração da justiça, da segurança e da paz nas comunidades e entre os povos.

2014.07.31 – Louro de Carvalho

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