O
livro de Qohélet, logo no versículo 2 do capítulo 1 lança o mote da vida gizada
e construída exclusivamente com base na confiança nos bens terrenos: “Desilusão
(em
grego, ματαιότης) das desilusões, tudo é
desilusão”. A versão latina da Bíblia exprime-se pela “vanitas” (vaidade, índole vã e vazia das coisas), que não consiste apenas no
sentido de preponderância pessoal e no acúmulo de adornos corporais, mas no caráter
fugaz e inconstante das coisas do mundo.
E
Qohélet (cf
Ecl 2,21ss) pressupõe
que as riquezas provêm do trabalho com sabedoria, ciência e êxito. Depois, quem
assim procede nada leva consigo; deixa para outro que eventualmente nenhum esforço
fez, muito menos para conseguir aquilo que lhe foi legado. Por isso, o hagiógrafo
pergunta “qual o proveito que o homem colhe do seu trabalho, do seu esforço, da
sua azáfama”. Toda a gente sabe que as coisas deste mundo são vãs e passageiras,
vãs como a flor do feno que se desfaz ao mais pequeno sopro ou e passageiras e
insaciantes como os rios que passam e desaguam no mar sem que este alguma vez
venha a encher-se (cf Ecl 1,7).
Por
isso, há que tomar em linha de conta que os bens materiais, se forem assumidos como
adequados servidores do homem e de todos os homens, serão bem-vindos e mesmo
necessários para assegurar o seu sustento, conforto e vida condigna. Mas não
podem ser assumidos como donos nem mestres – porquanto deixar-nos-ão inanes,
vazios, insatisfeitos e escravos – nem podem estar ao serviço só de uns poucos.
O seu destino, segundo o querer de Deus, é universal.
E
a acumulação da riqueza nas mãos de uns poucos – e cada vez mais ricos – gera a
injustiça social. Também a procura do domínio dos recursos naturais, do capital
e do trabalho gera o conflito e a guerra. Hoje a situação
é “particularmente preocupante” no Iémen, Síria, Sudão do Sul, Burundi e bacia
do lago Chad. Os conflitos são as principais causas da fome porque destroem
campos em cultivo, gado e infraestruturas agrícolas; bloqueiam mercados, forçam
ao deslocamento das populações, contribuem para a propagação de doenças e
dificultam o acesso de Governos e organizações humanitárias a determinadas
zonas.
São graves os
problemas que afligem a humanidade e colocam em risco a sua sobrevivência e a do
Planeta. Morrem violentamente milhares de pessoas por via dos assassinatos e
guerras. E morrem lentamente milhões de irmãos subalimentados. Agudizam-se as discriminações
sociais, raciais, geracionais religiosas e de género. A guerra não desaparece
dum país sem que primeiro se instale noutro. Tudo isto nos leva a inferir da
enorme dificuldade em os homens conviverem em paz e cooperação.
Por
sua vez, a perícopa do 3.º evangelho que se proclama e medita na missa do XVIII
domingo do tempo comum do Ano C (Lc 12, 13-21) não diz que o rico da parábola
tenha necessariamente prejudicado outras pessoas. Cristo censura a avareza do
homem cujo campo “tinha produzido excelente colheita” e o seu apego à riqueza. Perante
a abundância optou, não por distribuir, repartir e disponibilizar, mas
acumular, enceleirar. E, como os celeiros não eram capazes de comportar todo o
resultado da colheita, decidiu deitá-los abaixo e construir outros maiores “onde
guardarei todo o meu trigo e os meus bens”.
Aquilo
que parece um ato normal de gestão torna-se um ato de hedonismo equivalente a idolatria:
“Minha alma, tens muitos bens em armazém para longos anos. Descansa, come,
regala-te”. Este homem esqueceu-se do espírito, de Deus e do próximo. Mesmo a
expressão “minha alma”, entre os hebreus não significava a parte espiritual do
homem, mas a pessoa com as suas possibilidades, limitações, circunstâncias e
ambições. Ainda hoje quando rezamos a Cristo que guarde a nossa “alma” para a
vida eterna, não nos referimos exclusivamente à alma.
A
parábola vem na sequência da atitude dum homem que, do meio da multidão, pedira
a Jesus que ordenasse ao irmão que repartisse a herança consigo. Jesus recusou-se
a ser juiz ou árbitro das partilhas. Entretanto, sentiu a necessidade de
advertir os presentes para a tentação e o perigo da avareza, dado que a vida da
pessoa não depende da abundância dos seus bens. E assim, o término da parábola enuncia
a sentença de Deus em réplica à postura daquele supino avarento excessivamente confiante
na sua riqueza: “Insensato, esta noite entregarás a alma a Deus. Para quem será
o que preparaste?”. E Jesus conclui: “Assim acontece a quem acumula para si em
vez de se tornar rico aso olhos de Deus”.
Como
se vê, Lucas não deixa de escalpelizar as desigualdades, injustas e censuráveis
em tantos e tantos casos no mundo greco-romano como no de hoje. Para o rico e
avarento, o grande motor da vida é o dinheiro, que deixa de ser um meio para
uma vida desafogada, para se transformar num fim. Se o dinheiro é um fim,
trabalha-se para ele, anseia-se por ele, calcula-se por ele; adora-se o
dinheiro e ama-se o dinheiro sobre todas as coisas, mas não ao próximo como a
nós mesmos. O deus-dinheiro pontifica numa economia que mata. Por isso, Jesus
adverte:
“Ninguém pode servir a dois senhores: ou não
gostará de um deles e estimará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o
outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro.”
Noutro
passo do Evangelho Jesus exclamou: “Como é difícil para os que têm riquezas
entrar no Reino de Deus!” (Lc 18,24).
E Lucas, em contraposição às bem-aventuranças,
transcreve as imprecações de Cristo, nas quais são fortemente invectivados os
ricos:
“Mas ai de vós, os ricos, porque recebestes a vossa
consolação! Ai de vós, os que estais agora fartos, porque haveis de ter fome! Ai
de vós, os que agora rides, porque gemereis e chorareis! Ai de vós, quando
todos disserem bem de vós! Era precisamente assim que os pais deles tratavam os
falsos profetas.” (Lc 6,24-26).
Por sua vez, a carta de Tiago contém uma forte advertência aos ricos, mas
acusando a conexão da riqueza com a exploração dos trabalhadores e o
espezinhamento e morte de inocentes:
E agora vós, ó ricos, chorai em altos
gritos por causa das desgraças que virão sobre vós. As vossas riquezas estão podres e as vossas
vestes comidas pela traça. O vosso
ouro e a vossa prata enferrujaram-se e a sua ferrugem servirá de testemunho
contra vós e devorará a vossa carne como o fogo. Entesourastes, afinal, para os
vossos últimos dias! Olhai que o salário que não pagastes aos trabalhadores que
ceifaram os vossos campos está a clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram
aos ouvidos do Senhor do universo! Tendes
vivido na terra, entregues ao luxo e aos prazeres, cevando assim os vossos
apetites… para o dia da matança! Condenastes
e destes a morte ao inocente, e Deus não vai opor-se?” (Tg
5,1-6).
***
Hoje
falamos, não só da riqueza pura e simplesmente aceite por herança, da riqueza merecida
e da riqueza procurada e acumulada, mas da riqueza disputada por processos
ilícitos, ou à custa do suor, da ignorância, da distração e da boa fé dos outros.
Todos conhecemos ora a arrogância ora a hipocrisia dissimulada das pessoas que
enriquecem desmedidamente. E, se o poderio económico lhes dá visibilidade,
tornam-se insuportáveis ou porque a crítica os incomoda ou porque as coisas não
lhes correm com aquela feição que desejavam.
Depois
que a economia passou a resultar de esquemas de consecução de dinheiro fácil e
o dinheiro se muniu de asas invisíveis, os pobres começaram ou a ser um estorvo
ou a constituir um modo de oferta de oportunidade aos mais ricos de exercerem a
sua filantropia a facultar a fuga aos impostos, a distrair os incautos dos métodos
cada vez mais sofisticados em uso para anafar a carteira própria e possivelmente
a dos amigos de ocasião que aceitem entrar no jogo. E, como polvo insaciável estendem
os tentáculos a tudo o que cheire a poder. E pasme-se: quanto mais ricos, mais
dificuldade têm em arranjar dinheiro para pagar as contas: o dinheiro não lhes
basta. Até ficam com dinheiro dos trabalhadores (segurança social
e fisco), provocam a
fuga de capitais… Mas os dividendos das sociedades que gerem, ou em que participam,
não deixam de ser oportuna e opiparamente distribuídos; os dinheiros de todos
os outros, sobretudo dos que amealharam putativamente para poupar, esvaem-se naqueles
esquemas do feroz capitalismo financeiro como manteiga em focinho de cão;
bancos e empresas onde conseguem meter a mão ou são liquidados, comprados,
alienados a fundos mobiliários, resolvidos ou dispersos em bolsa. E, na maior
parte dos casos, os enganados e lesados esperam e os contribuintes pagam direta
ou indiretamente, nem que seja sob o regime de programas de ajustamento, que
implicam cortes salariais e de pensões, rarefação de produtos ou aumento dos
seus preços e aumento brutal de impostos. Em contraponto, as remunerações, salários,
gratificações, reformas e outras mordomias dos grandes empresários, administradores
e gestores de topo não param e crescem assustadoramente. Entram em insolvência
milhares de empresas e os seus titulares – que por gestão displicente ou mesmo
danosa criaram desemprego, miséria e crise – distraem-se na boa, mantendo os
seus sinais exteriores de riqueza, gozando férias suavemente hedonísticas,
fogem a impostos, iludem a segurança social, continuam as negociatas. Porém, aos
outros pregam a ética e a moral. E, sobretudo, de olhos hipocritamente piedosos
e caras de santo, escutam o Papa, o Bispo ou o Padre a citar São Paulo, na
carta aso Colossenses:
“Já que
fostes ressuscitados com Cristo, procurai as coisas do alto, onde está Cristo,
sentado à direita de Deus. Aspirai
às coisas do alto e não às coisas da terra. […]. Crucificai os vossos
membros no que toca à prática de coisas da terra: fornicação, impureza, paixão,
maus desejos e a ganância, que é uma idolatria. Estas coisas
provocam a ira de Deus sobre os que lhe resistem. Rejeitai vós
tudo isso: ira, raiva, maldade, injúria, palavras grosseiras saídas da vossa
boca. Não mintais uns aos outros, já que vos despistes do homem velho, com as
suas ações, e vos revestistes do
homem novo, aquele que, para chegar ao conhecimento, não cessa de ser renovado
à imagem do seu Criador. Aí não há
grego nem judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro, cita, escravo, livre, mas
Cristo, que é tudo e está em todos.” (Cl 3,1-2.5-6.7-11).
***
Belas
Palavras… mas não só para ouvir, mas para levar à prática! (cf Tg 1,22).
O
Deus de Jesus Cristo é o Deus da vida e da equidade, a paz e da abundância, da
liberdade e da dignidade. E, confiando ao homem a missão de se governar e de
governar os seus irmãos, cuidando deles, Deus espera e exige dos cristãos, reais
conhecedores do Seu desígnio e da Sua vontade, que se empenhem incondicionalmente
na instauração da justiça, da segurança e da paz nas comunidades e entre os
povos.
2014.07.31 – Louro de
Carvalho
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