A reunião da Comissão Europeia, a 27 de julho pp., que decidiu
pelo cancelamento da multa a Portugal, no quadro de sanções por incumprimento,
durou mais de três horas e dizem os observadores que a discussão foi tensa. Os
eurocomissários esgrimiram argumentos pró e contra a aplicação de sanções, mas
acabaram por recomendar ao Conselho o seu cancelamento.
Foi uma reviravolta inesperada. Com efeito, dizia-se que a
multa seria mínima e que o Governo beneficiaria de meta
mais elevada para o défice deste ano de 2016. Portugal e Espanha seriam os
primeiros Estados da zona euro a sancionar por défice excessivo, sendo que os
comissários iriam apenas debater a redução
da multa, para que não fosse a mais pesada. Estava, pelos vistos, afastada
a punição máxima de 0,2% do PIB, que, no caso de Portugal, atingiria cerca de
360 milhões de euros. Porém, parecia claro que a multa não seria zero, porque
não há multa zero.
A 14 anos de
ter entrado em vigor e de ter sido violada 165 vezes, por praticamente todos os
países do euro, a vertente sancionatória do Pacto de Estabilidade e
Crescimento, que impõe 3% como limite máximo para o défice orçamental, seria
estreada pelos dois países ibéricos.
Na reunião
de 7 de julho, a anteceder a decisão do Ecofin, Pierre Moscovici, comissário
dos Assuntos Económicos e Financeiros, admitiu como possibilidade que, “no caso
de virem a ser consideradas sanções, pudesse a sanção ser igual a zero”, embora
nunca tivesse afirmado que a Comissão a iria propor.
Para a multa
recomendada ser anulada, o Ecofin (Conselho de Ministros da Finanças
dos 28) teria de se opor num período de 10
dias, a contar da divulgação da decisão de Bruxelas. O Ecofin podia propor o seu
cancelamento através de recomendação escrita, dirigida à Comissão.
Depois da
decisão adotada na última reunião do Ecofin, a considerar que Portugal e
Espanha não tomaram ação efetiva para a correção orçamental, seria pouco
expectável que viesse a opor-se a sanção que seria meramente simbólica.
Contudo, tudo o que fosse acima de zero seria mau.
De acordo
com informações que circulavam em Bruxelas, a menos de 24 horas da reunião do
colégio de comissários, parecia ser cada vez mais certo que a proposta de multa
a aplicar a Portugal oscilaria entre 0,01% e 0,02% do PIB (produto
interno bruto) – entre 18
e 36 milhões de euros. E, para compensar a humilhação política de sancionar o
país, alguns comissários estariam a defender que Portugal tivesse uma meta para
o défice mais fácil neste ano, correndo a ideia de que se poderia repetir a
flexibilidade concedida ao anterior Governo. Inicialmente, o défice de 2015 exigido
era de 2,5%, mas depois passou a ser aceite a marca de 2,7%. Foi a tal que não
foi cumprida, nem tão-pouco a dos 3% (por causa do Banif e de outras
derrapagens, o défice ficou afinal em 4,4%). A ideia
agora seria dar mais duas décimas de tolerância a Costa e a Centeno, o que
colocaria o objetivo de 2016 nos 2,4% em vez dos 2,2% exigidos
Nas
recomendações de maio ao país, a Comissão já recomendara um défice ligeiramente
mais alto, de 2,3%, mas agora há quem esteja disposto a ir mais longe, embora
sem nunca abdicar dos cortes permanentes que devem ser de, pelo menos, 0,25%
neste ano e de 0,6% em 2017.
Para já, é
ponto assente que a Comissão quer uma correção sustentável do défice excessivo
em 2016 através duma redução do défice das administrações públicas para 2,3% do
PIB em 2016, adotando as medidas estruturais necessárias e fazendo uso de todos
os ganhos extraordinários para reduzir o défice e a dívida; e que nessa
correção o saldo estrutural seja cortado em 0,25% do PIB em 2016, o mesmo que
dizer que quer medidas permanentes (de preferência do lado da despesa) no valor de 450 milhões de euros em 2016. A
exigência mais do que duplica em relação ao Orçamento de 2017, a apresentar até
meados de outubro: o corte permanente no défice deve ascender, pelo menos, a
0,6% do PIB (quase 1,1 mil milhões de euros).
***
Pouco passava
das 11 horas (de Portugal) do dia 27 e o Governo já sabia que
era mesmo capaz de ter a batalha das sanções ganha. Informado a cada momento do
que se passava em Bruxelas, tinha a “dica” de que o “partido antissanções”
vencia o debate, com uma margem arrasadora de 15 a 4. O sentimento de vitória
consolidou-se à medida que o tempo passava. E, ao meio-dia, era certo: a
batalha estava ganha, a Comissão ia mesmo recomendar o cancelamento da sanção,
melhor ainda que a possibilidade de sanção zero, que implicava a acusação de
que Portugal não tinha tomado ação efetiva para reduzir o défice – uma questão
fundamental para o Governo.
O
Governo tinha, no dia 26, tentado o tudo por tudo para evitar qualquer sanção.
Em sintonia, António Costa (e Mariano Rajoy)
telefonaram ao presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker; o embaixador na
REPER, Nuno Brito, fez a ronda por todos os embaixadores; e o comissário Carlos
Moedas não se poupou a esforços para falar com todos os seus pares a expor as
razões portuguesas de como as sanções eram “injustas, injustificáveis e
contraproducentes”. Ao mesmo tempo, o próprio Primeiro-Ministro, o Ministro dos
Negócios Estrangeiros e a Secretária de Estado dos Assuntos Europeus faziam os
últimos contactos com os respetivos homólogos, insistindo nos socialistas, mas
não só. E o Governo estava decidido a manter a decisão de processar o Conselho
de Ministros da UE junto do Tribunal de Justiça da União Europeia se a (eventual) sanção recomendada pela Comissão fosse superior a
zero.
***
Por sua vez, a presidência rotativa da UE, a cargo da
Eslováquia, declarou ao Expresso que “os Estados-Membros
não mostraram interesse em reverter as recomendações da Comissão”, pelo que a
multa vai ser mesmo cancelada:
“Na sequência das discussões técnicas desta semana, é mais
ou menos claro que não há interesse dos Estados-membros para reverterem as
recomendações que a Comissão Europeia revelou na quarta-feira […]. O cenário
indica que tanto o cancelamento das multas contra a Espanha e Portugal, bem
como novas recomendações entrarão em vigor, tal como proposto pela Comissão”.
Já no dia 30, o Expresso revelava que durante
a reunião preparatória do Conselho de Ministros das Finanças da UE, realizada
por teleconferência, não surgiu uma maioria de vozes contra a proposta da Comissão.
Nessa reunião, ficou assente que não há necessidade de os Ministros das
Finanças se reunirem fisicamente em Bruxelas. No caso das multas, o processo
segue por Procedimento de Silêncio. Sem uma maioria qualificada de vozes
contra, a recomendação de cancelamento será automaticamente adotada a 8 de
agosto e divulgada a 9, em comunicado.
***
Porém, a guerra das sanções não está vencida. Günhter Oettinger, comissário para a Economia
Digital, declarou no dia 30, em entrevista ao “Der Spiegel” que, se Lisboa e Madrid não puserem as contas em
ordem, há ainda uma segunda opção, a séria ameaça de corte nos fundos
estruturais do orçamento. Ou
seja, Portugal e Espanha devem “pôr em ordem, com urgência”, as contas
públicas, sob pena de se colocarem em risco as transferências de milhões de
euros dos fundos estruturais. O referido comissário europeu adverte que, apesar
da decisão da Comissão, vários comissários defenderam a aplicação de sanções
previstas no Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), pelo que este acordo não está
morto se existir um incumprimento dos objetivos orçamentais definidos.
***
Agora surgem
os comentários avaliativos.
Dizem alguns
que Passos esperava que houvesse sanções para criar a onda de contestação à
maioria de esquerda e, assim, profetizou que em setembro viria aí o diabo – a
metáfora da crise. E talvez estivesse a pensar em eleições. Porém, não creio
que ele desejasse as sanções: primeiro, porque apesar dos defeitos, não me
parece um cínico; depois, porque o seu Governo não escaparia ao labéu de não
ter acautelado o disparo do défice o arrastamento dos casos Banif e Novo Banco.
Outros dizem
que a decisão de Bruxelas foi boa para Portugal, mas não para Costa. Entendem
que a aliança das esquerdas é uma coligação antirreformista, pelo que aquilo
que é bom para ela não é para Portugal e vice-versa. Não o creio. Primeiro, há
que ter em conta o que é o interesse nacional; e, porque este não foi ainda
definido consensualmente – ninguém sabe dizer o que é – é legítimo que as
várias formações partidárias divirjam no entendimento do interesse nacional.
Duvido de que
o interesse nacional se tivesse defendido melhor se Costa tivera respondido
positivamente ao repto de servir como vice-primeiro-ministro de Passos Coelho e
ter formado uma grande coligação com o PSD e com o CDS. Quem viu as rasteiras
passadas por Passos a Portas e antecipação de comunicação de medidas e linhas
vermelhas de Portas a Passos, duvidaria de que uma edição reforçada do Bloco
Central contrafortado à direita dificilmente faria séria mossa a Bruxelas e ao
marasmo do país
Mas as
notícias, não sendo ótimas, acabam por ser boas. A Comissão desistiu de propor
sanções a Portugal. Mais do que um governo, este ou o anterior, os portugueses
não merecem sanções. Depois de tantos sacrifícios, a aplicação de sanções
constituiria uma agressão por parte da UE e, após a experiência grega e o
“Brexit”, as sanções reverteriam contra a própria Europa.
Ao
desenvencilhar-se do peso sancionatório, o Governo acabou por defender
explicitamente a herança de Passos e de Portas, dizendo a Bruxelas que o
Governo do PSD-CDS não merece ser sancionado. A Comissão anuiu e deixou cair as
sanções. E aí também tem de ser reconhecido o papel do Comissário Carlos Moedas
(apesar de tudo um homem
pouco tostado com o anterior Governo), o do Presidente Marcelo, aquele que foi ao Parlamento
Europeu falar do projeto genuíno de União Europeia, e o do Presidente Francês,
que apesar da consternação de Nice veio a Portugal e falou.
No entanto, a
Comissão mantém a pressão sobre o executivo de Costa para aprovar medidas de
contenção ainda para este ano e, sobretudo, para apresentar uma proposta de
orçamento para 2017 que respeite as regras do Tratado Orçamental.
Mas Costa
indubitavelmente venceu e ganhou pontos: o cancelamento da multa, a subida da
meta orçamental de 2016 para 2,5% do PIB e, sobretudo, a não contagem da
capitalização da CGD para o défice de 2016, bem como o plano da capitalização
deste banco público.
Não eliminou
nem amainou as regras europeias, mas susteve os efeitos da sua aplicação. As
bolsas de Madrid e de Lisboa acusaram positivamente o toque da decisão de
Bruxelas.
Quanto ao
orçamento para 2017, veremos o que decidirão os deuses do Olimpo em Bruxelas e
como se comportarão os seus sacerdotes e levitas em Portugal.
2016.07.31 – Louro de Carvalho
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