segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Sobre o levantamento das sanções a Portugal à Espanha

A reunião da Comissão Europeia, a 27 de julho pp., que decidiu pelo cancelamento da multa a Portugal, no quadro de sanções por incumprimento, durou mais de três horas e dizem os observadores que a discussão foi tensa. Os eurocomissários esgrimiram argumentos pró e contra a aplicação de sanções, mas acabaram por recomendar ao Conselho o seu cancelamento.

Foi uma reviravolta inesperada. Com efeito, dizia-se que a multa seria mínima e que o Governo beneficiaria de meta mais elevada para o défice deste ano de 2016. Portugal e Espanha seriam os primeiros Estados da zona euro a sancionar por défice excessivo, sendo que os comissários iriam apenas debater a redução da multa, para que não fosse a mais pesada. Estava, pelos vistos, afastada a punição máxima de 0,2% do PIB, que, no caso de Portugal, atingiria cerca de 360 milhões de euros. Porém, parecia claro que a multa não seria zero, porque não há multa zero.

A 14 anos de ter entrado em vigor e de ter sido violada 165 vezes, por praticamente todos os países do euro, a vertente sancionatória do Pacto de Estabilidade e Crescimento, que impõe 3% como limite máximo para o défice orçamental, seria estreada pelos dois países ibéricos.
Na reunião de 7 de julho, a anteceder a decisão do Ecofin, Pierre Moscovici, comissário dos Assuntos Económicos e Financeiros, admitiu como possibilidade que, “no caso de virem a ser consideradas sanções, pudesse a sanção ser igual a zero”, embora nunca tivesse afirmado que a Comissão a iria propor.
Para a multa recomendada ser anulada, o Ecofin (Conselho de Ministros da Finanças dos 28) teria de se opor num período de 10 dias, a contar da divulgação da decisão de Bruxelas. O Ecofin podia propor o seu cancelamento através de recomendação escrita, dirigida à Comissão.
Depois da decisão adotada na última reunião do Ecofin, a considerar que Portugal e Espanha não tomaram ação efetiva para a correção orçamental, seria pouco expectável que viesse a opor-se a sanção que seria meramente simbólica. Contudo, tudo o que fosse acima de zero seria mau.
De acordo com informações que circulavam em Bruxelas, a menos de 24 horas da reunião do colégio de comissários, parecia ser cada vez mais certo que a proposta de multa a aplicar a Portugal oscilaria entre 0,01% e 0,02% do PIB (produto interno bruto) – entre 18 e 36 milhões de euros. E, para compensar a humilhação política de sancionar o país, alguns comissários estariam a defender que Portugal tivesse uma meta para o défice mais fácil neste ano, correndo a ideia de que se poderia repetir a flexibilidade concedida ao anterior Governo. Inicialmente, o défice de 2015 exigido era de 2,5%, mas depois passou a ser aceite a marca de 2,7%. Foi a tal que não foi cumprida, nem tão-pouco a dos 3% (por causa do Banif e de outras derrapagens, o défice ficou afinal em 4,4%). A ideia agora seria dar mais duas décimas de tolerância a Costa e a Centeno, o que colocaria o objetivo de 2016 nos 2,4% em vez dos 2,2% exigidos
Nas recomendações de maio ao país, a Comissão já recomendara um défice ligeiramente mais alto, de 2,3%, mas agora há quem esteja disposto a ir mais longe, embora sem nunca abdicar dos cortes permanentes que devem ser de, pelo menos, 0,25% neste ano e de 0,6% em 2017.
Para já, é ponto assente que a Comissão quer uma correção sustentável do défice excessivo em 2016 através duma redução do défice das administrações públicas para 2,3% do PIB em 2016, adotando as medidas estruturais necessárias e fazendo uso de todos os ganhos extraordinários para reduzir o défice e a dívida; e que nessa correção o saldo estrutural seja cortado em 0,25% do PIB em 2016, o mesmo que dizer que quer medidas permanentes (de preferência do lado da despesa) no valor de 450 milhões de euros em 2016. A exigência mais do que duplica em relação ao Orçamento de 2017, a apresentar até meados de outubro: o corte permanente no défice deve ascender, pelo menos, a 0,6% do PIB (quase 1,1 mil milhões de euros).

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Pouco passava das 11 horas (de Portugal) do dia 27 e o Governo já sabia que era mesmo capaz de ter a batalha das sanções ganha. Informado a cada momento do que se passava em Bruxelas, tinha a “dica” de que o “partido antissanções” vencia o debate, com uma margem arrasadora de 15 a 4. O sentimento de vitória consolidou-se à medida que o tempo passava. E, ao meio-dia, era certo: a batalha estava ganha, a Comissão ia mesmo recomendar o cancelamento da sanção, melhor ainda que a possibilidade de sanção zero, que implicava a acusação de que Portugal não tinha tomado ação efetiva para reduzir o défice – uma questão fundamental para o Governo.
O Governo tinha, no dia 26, tentado o tudo por tudo para evitar qualquer sanção. Em sintonia, António Costa (e Mariano Rajoy) telefonaram ao presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker; o embaixador na REPER, Nuno Brito, fez a ronda por todos os embaixadores; e o comissário Carlos Moedas não se poupou a esforços para falar com todos os seus pares a expor as razões portuguesas de como as sanções eram “injustas, injustificáveis e contraproducentes”. Ao mesmo tempo, o próprio Primeiro-Ministro, o Ministro dos Negócios Estrangeiros e a Secretária de Estado dos Assuntos Europeus faziam os últimos contactos com os respetivos homólogos, insistindo nos socialistas, mas não só. E o Governo estava decidido a manter a decisão de processar o Conselho de Ministros da UE junto do Tribunal de Justiça da União Europeia se a (eventual) sanção recomendada pela Comissão fosse superior a zero.
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Por sua vez, a presidência rotativa da UE, a cargo da Eslováquia, declarou ao Expresso que “os Estados-Membros não mostraram interesse em reverter as recomendações da Comissão”, pelo que a multa vai ser mesmo cancelada:
“Na sequência das discussões técnicas desta semana, é mais ou menos claro que não há interesse dos Estados-membros para reverterem as recomendações que a Comissão Europeia revelou na quarta-feira […]. O cenário indica que tanto o cancelamento das multas contra a Espanha e Portugal, bem como novas recomendações entrarão em vigor, tal como proposto pela Comissão”.
Já no dia 30, o Expresso revelava que durante a reunião preparatória do Conselho de Ministros das Finanças da UE, realizada por teleconferência, não surgiu uma maioria de vozes contra a proposta da Comissão. Nessa reunião, ficou assente que não há necessidade de os Ministros das Finanças se reunirem fisicamente em Bruxelas. No caso das multas, o processo segue por Procedimento de Silêncio. Sem uma maioria qualificada de vozes contra, a recomendação de cancelamento será automaticamente adotada a 8 de agosto e divulgada a 9, em comunicado.
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Porém, a guerra das sanções não está vencida. Günhter Oettinger, comissário para a Economia Digital, declarou no dia 30, em entrevista ao “Der Spiegel” que, se Lisboa e Madrid não puserem as contas em ordem, há ainda uma segunda opção, a séria ameaça de corte nos fundos estruturais do orçamento. Ou seja, Portugal e Espanha devem “pôr em ordem, com urgência”, as contas públicas, sob pena de se colocarem em risco as transferências de milhões de euros dos fundos estruturais. O referido comissário europeu adverte que, apesar da decisão da Comissão, vários comissários defenderam a aplicação de sanções previstas no Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), pelo que este acordo não está morto se existir um incumprimento dos objetivos orçamentais definidos.
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Agora surgem os comentários avaliativos.
Dizem alguns que Passos esperava que houvesse sanções para criar a onda de contestação à maioria de esquerda e, assim, profetizou que em setembro viria aí o diabo – a metáfora da crise. E talvez estivesse a pensar em eleições. Porém, não creio que ele desejasse as sanções: primeiro, porque apesar dos defeitos, não me parece um cínico; depois, porque o seu Governo não escaparia ao labéu de não ter acautelado o disparo do défice o arrastamento dos casos Banif e Novo Banco.
Outros dizem que a decisão de Bruxelas foi boa para Portugal, mas não para Costa. Entendem que a aliança das esquerdas é uma coligação antirreformista, pelo que aquilo que é bom para ela não é para Portugal e vice-versa. Não o creio. Primeiro, há que ter em conta o que é o interesse nacional; e, porque este não foi ainda definido consensualmente – ninguém sabe dizer o que é – é legítimo que as várias formações partidárias divirjam no entendimento do interesse nacional.
Duvido de que o interesse nacional se tivesse defendido melhor se Costa tivera respondido positivamente ao repto de servir como vice-primeiro-ministro de Passos Coelho e ter formado uma grande coligação com o PSD e com o CDS. Quem viu as rasteiras passadas por Passos a Portas e antecipação de comunicação de medidas e linhas vermelhas de Portas a Passos, duvidaria de que uma edição reforçada do Bloco Central contrafortado à direita dificilmente faria séria mossa a Bruxelas e ao marasmo do país
Mas as notícias, não sendo ótimas, acabam por ser boas. A Comissão desistiu de propor sanções a Portugal. Mais do que um governo, este ou o anterior, os portugueses não merecem sanções. Depois de tantos sacrifícios, a aplicação de sanções constituiria uma agressão por parte da UE e, após a experiência grega e o “Brexit”, as sanções reverteriam contra a própria Europa.
Ao desenvencilhar-se do peso sancionatório, o Governo acabou por defender explicitamente a herança de Passos e de Portas, dizendo a Bruxelas que o Governo do PSD-CDS não merece ser sancionado. A Comissão anuiu e deixou cair as sanções. E aí também tem de ser reconhecido o papel do Comissário Carlos Moedas (apesar de tudo um homem pouco tostado com o anterior Governo), o do Presidente Marcelo, aquele que foi ao Parlamento Europeu falar do projeto genuíno de União Europeia, e o do Presidente Francês, que apesar da consternação de Nice veio a Portugal e falou.
No entanto, a Comissão mantém a pressão sobre o executivo de Costa para aprovar medidas de contenção ainda para este ano e, sobretudo, para apresentar uma proposta de orçamento para 2017 que respeite as regras do Tratado Orçamental.
Mas Costa indubitavelmente venceu e ganhou pontos: o cancelamento da multa, a subida da meta orçamental de 2016 para 2,5% do PIB e, sobretudo, a não contagem da capitalização da CGD para o défice de 2016, bem como o plano da capitalização deste banco público.
Não eliminou nem amainou as regras europeias, mas susteve os efeitos da sua aplicação. As bolsas de Madrid e de Lisboa acusaram positivamente o toque da decisão de Bruxelas.
Quanto ao orçamento para 2017, veremos o que decidirão os deuses do Olimpo em Bruxelas e como se comportarão os seus sacerdotes e levitas em Portugal.

2016.07.31 – Louro de Carvalho

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