quinta-feira, 4 de agosto de 2016

A GALP pagou viagens a governantes para assistirem a jogos do Euro 2016

Três secretários de Estado viajaram a convite de empresas para estarem presentes em jogos do mesmo campeonato: o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, o Secretário de Estado da Indústria e o Secretário de Estado da Internacionalização.
O próprio Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, declarou ter viajado a convite da GALP, um dos patrocinadores da Seleção Nacional, mas anunciou que vai reembolsar a petrolífera – que mantém uma questão de mais de 150 milhões de euros com o Estado em tribunal – pela despesa efetuada com as viagens em causa. E o Ministério das Finanças adiantou que Rocha Andrade já contactara a empresa, no sentido de a reembolsar da despesa efetuada, para que “não restem dúvidas sobre a independência do Governo e do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais”.
Porém, Rocha Andrade não foi o único a ser convidado pela petrolífera. Também o Secretário de Estado da Indústria, João Vasconcelos, viajou para o Euro 2016 a convite da GALP, enquanto entidade patrocinadora da Seleção Nacional, mas sustenta que pagou um bilhete de avião e que já pediu à petrolífera que esclareça se há despesas adicionais que, a existirem, serão devidamente reembolsadas. E Jorge Costa Oliveira, Secretário de Estado da Internacionalização (que tem direta responsabilidade em algumas das atividades da petrolífera), integrou a lista de convidados da GALP para assistir ao Portugal-Hungria.
Este membro do Governo está na dependência direta de Augusto Santos Silva, Ministro dos Negócios Estrangeiros e número dois do Governo. O Ministério dos Negócios Estrangeiros já confirmou que o Secretário de Estado se deslocou “a Lyon, a convite da GALP, enquanto patrocinadora da Seleção Nacional, para assistir ao jogo com a Hungria”. E acrescentou que o Gabinete do Secretário de Estado da Internacionalização já informou a GALP da intenção do governante “de pagar todas as despesas relativas a esta deslocação, estando em curso o respetivo processo de pagamento”.
***
O Gabinete do Ministro das Finanças comentou em e-mail ao Público, a propósito de Rocha Andrade:
“O secretário de Estado encara com naturalidade, e dentro da adequação social, a aceitação deste tipo de convite – no caso, um convite de um patrocinador da seleção para assistir a um jogo da Seleção Nacional de futebol”.
Por seu turno, a revista Sábado, de hoje, revela que o Secretário de Estado esteve a convite da empresa petrolífera nos jogos entre Portugal e a Hungria, disputado em Lyon, e mais tarde, na final, que decorreu em Paris – apesar de este membro do Governo ter sob a sua tutela a resolução dum conflito fiscal que opõe o Estado àquela empresa. Esta contestou em tribunal o pagamento da contribuição extraordinária sobre a energia que o anterior Governo criou.
Rocha Andrade publicou, na sua página de Facebook, uma fotografia que documenta a sua presença em Lyon, para assistir à partida com a Hungria, juntamente com João Bezerra, seu Chefe de Gabinete; e ao Público ainda referiu ter assistido “por via de idêntico convite ao jogo da final”. Porém, embora refira que esta presença a 10 de Julho, em Paris, se ficou a dever a um “idêntico convite”, não especifica se se trata da mesma empresa. 
A GALP, com base no n.º 3 do art.º 16.º da lei dos Crimes de Responsabilidade dos Titulares de Cargos Políticos acha normal e de acordo com os padrões internacionais convites desta ordem. O CDS também acha normal que as empresas os façam, mas que os governantes não os devem aceitar. Resta saber se esta disposição se aplica ao caso e se dá para anular o estipulado no n.º 1 do mesmo artigo ou se nos ficamos apenas na questão dos conflitos de interesses.
Seja como for, o CDS exige a demissão de Rocha Andrade. Não percebo como não exige a demissão dos outros dois Secretários de Estado. A haver conflito de interesses, os três estão implicados. Aliás, a tutela sobre a GALP é da Secretaria de Estado da Indústria (a GALP não um mero interposto comercial); os outros dois tutelam um conflito mantido com o Estado (Rocha Andrade) e algumas atividades parcelares (Costa Oliveira).
Por seu turno, o deputado socialdemocrata Fernando Negrão, que foi Ministro da Justiça por um mês (do XX Governo), afirmava que o ato de Rocha Andrade podia “configurar um crime”. E a Procuradoria-geral da República abrirá um inquérito para eventual processo-crime.
Também o constitucionalista Jorge Miranda, sem se imiscuir na questão de haver ou não crime, entende que é o próprio governante que, em nome da transparência, deve solicitar a sua demissão.
Porém, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, sob a existência de possíveis conflitos de interesses, refere que “não existe qualquer fundamento para falar em conflito ético” na sua ação de governante com o conflito fiscal respeitante à GALP:
“Quanto à questão específica sobre os ‘contenciosos’ com a empresa em causa, podemos referir que existe uma multiplicidade de processos de natureza judicial envolvendo o grupo em questão, algo relativamente normal na relação entre um contribuinte com esta dimensão e a Autoridade Tributária. Acrescente-se que, tratando-se de processos em contencioso, as decisões concretas sobre os processos judiciais em causa não competem ao Governo, mas sim aos tribunais”.
O ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, que esta semana, devido às férias do Primeiro-Ministro, António Costa, coordena a atividade do executivo, escusou-se a fazer, a princípio, qualquer comentário sobre a questão. Porém, depois adiantou que, após o reembolso dos montantes em causa à empresa, o assunto fica encerrado, mas prometeu a elaboração de um código de conduta para os membros do Governo. E Costa entende não haver, no caso, motivo para exonerar qualquer Secretário de Estado.
Dos partidos que apoiam o Governo, exceto o PS, vem a crítica lúcida no sentido de acharem ter havido incompatibilidade, mas que é o Primeiro-Ministro, o Governo no seu todo e o respetivo Secretário de Estado quem deve tirar as consequências políticas.
***
Ora, chamando os bois pelos nomes, a lei tipifica este tipo de atuação como crime. Os governantes atingidos podem é desculpar-se com a inadvertência. Havendo crime, a devolução dos dinheiros não resolve nem é suficiente. A devolução do bem material que está na base do crime, pecuniária ou de género, não apaga o lado culposo; por outro lado, como estas viagens são contratadas pelo sistema pacotal, é difícil calcular exatamente a importância que pro rata cabe a cada utente. E, ainda, a devolução de dinheiros parece significar a assunção tardia de um erro. Melhor seria o reconhecimento público do erro, pedir publicamente desculpa e garantir que não se repetiria.
Quanto à GALP, há que responder que não é por se considerar normal uma determinada atuação que ela se torna legal ou eticamente correta; e, quanto a Rocha Andrade, convém esclarecer que, não cabendo ao Governo dirimir conflitos que tramitem nos tribunais, cabe-lhe não interferir a contrario como se tudo estivesse bem, podendo contribuir para a eventual militância de circunstâncias atenuantes ou até mesmo dirimentes e dar testemunho de desnecessária e dispensável promiscuidade.
Finalmente, para quê um código de conduta, se o Governo deve cumprir a lei e sujeitar-se à Constituição e ao compromisso que cada governante assume no ato de posse: cumprir com lealdade as funções que lhe são confiadas.
***
Será mesmo lamentável se a “geringonça” cai, não por motivos de fricção política e de desaire económico, mas por atitudes, postura e comportamentos legal ou eticamente reprováveis… nem a “caranguejola” quererá isso.

2016.08.04 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário