sábado, 6 de agosto de 2016

A transfiguração do Senhor como teofania messiânica

A 6 de agosto, celebra-se a festa da transfiguração de Jesus. É repetição, no ciclo santoral (do ano litúrgico), do tema da celebração do II domingo da Quaresma, no temporal.
Tanto num caso como no outro, as perícopas do Evangelho tomadas para a Liturgia da Palavra da Missa são extraídas de Mateus, Marcos e Lucas conforme o ciclo de três anos: Ano A (Mt 17,1-9); Ano B (Mc 9,1-9); e Ano C (Lc 9,28b-36). Porém, as demais leituras da festa divergem das do ciclo temporal do ano litúrgico. Na festa, em qualquer um dos anos, assume-se como I leitura a passagem do profeta Daniel (Dn 7, 9-10.13-14), em que o profeta contempla a glória do Messias que a Si próprio se designa Filho do Homem e que, cingido de poder, reunirá a Humanidade inteira numa só família e triunfará eternamente (é o reino messiânico de que o Filho do Homem é chefe e modelo); e toma-se como II leitura uma passagem da 2.ª epístola de Pedro (2Pe 1,16-19), em que o Apóstolo, testemunha da Transfiguração, não se limita ao fornecimento da notícia, mas conclui que a fé não se apoia em mitos ou lendas, mas numa Pessoa, Jesus Cristo, que viveu no meio dos apóstolos e cuja transfiguração estes tiveram o privilégio de presenciar e agora têm o dever de testemunhar. No II domingo da Quaresma, a I Leitura é tirada do Livro do Génesis (Ano A – Gn 12,1-4a; Ano B – Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18; Ano C – Gn 15,5-12.17-18), em que se revê a partida de Abraão, à ordem de Deus, da sua terra para uma terra estranha que o Senhor lhe indicaria; o facto de Deus pôr à prova a fé de Abraão exigindo-lhe o sacrifício do filho único; e a celebração da aliança entre Deus e Abraão e seus descendentes, aliança sinalizada no sacrifício de animais. E para II leitura, assumem-se passagens de cartas de Paulo (Ano A – 2Tm 1,8b-10; Ano B – Rm 8,31b-34; Ano C – Fl 3,17 – 4,1). A primeira passagem constitui um convite pessoal à salvação com base no desafio lançado pelo Evangelho e almejando a imortalidade que o Senhor ressuscitado e glorioso nos mereceu; a segunda sublinha que Deus não poupou o Seu Filho, pelo que ninguém pode estar contra nós, pois Cristo morreu e ressuscitou e, à direita do Pai, intercede por nós; e a terceira garante que o cristão, vivendo neste mundo como cidadão do céu, abe que Jesus o transformará à imagem do seu corpo glorioso.
Situada no contexto do anúncio da Paixão e Morte (surge entre dois anúncios), a Transfiguração manifesta a vida divina, que está em Jesus e representa um desafio de compromisso para nós. A luz do Tabor compagina uma antecipação do esplendor que encherá a noite da Páscoa. Assim, os Apóstolos, contemplando a glória divina na Pessoa de Jesus, ficaram preparados para os dolorosos acontecimentos, que iriam pôr à prova a sua fé. Vendo Jesus na agonia do Horto (mesmo sonolentos) e a Sua condição de servo em todo o curso da Paixão, já não poderiam esquecer a Sua condição divina. Como anúncio da Páscoa, a Transfiguração encerra também a promessa da nossa transfiguração. Com efeito, Jesus fez transparecer na Sua Humanidade a glória de que resplandecerá, na Sua vinda final, a Igreja, seu Corpo Místico, sua esposa mística e povo de Deus. E, sendo assim, a vida cristã é um processo de lenta transformação em Cristo, que se inicia com o nosso Batismo, e se completa na Eucaristia, “penhor da futura glória”, que opera a nossa transformação, até atingirmos a imagem de Cristo glorioso.
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Os sinóticos (Mateus, Marcos, Lucas) narram o evento da Transfiguração de modo similar: Jesus chama Pedro, Tiago e João (estes dois são irmãos), às vezes companheiros privilegiados porque mais perfeitos que os outros, no dizer de São João Crisóstomo – Pedro, porque amava Jesus mais que os outros, João porque era amado por Jesus mais do que os outros e Tiago porque se unira na resposta do irmão: “Sim, podemos beber do teu cálice” (cf Mt 20,22) – e condu-los a uma “alta montanha” (lugar por excelência das manifestações divinas), que a Tradição diz ser o monte Tabor. Ali ele – segundo Lucas, enquanto orava – aparece radiante duma luz esplêndida que emana “tanto do seu rosto brilhante como o sol” como das suas vestes – obra do homem, da cultura humana – e se irradia pela natureza circunstante, como o mostram os ícones alusivos ao evento.
Entretanto, aparecem Moisés, antonomásia da Lei, e Elias, antonomásia da Profecia, que falam com Jesus – conversa que, segundo Lucas tem como tema a morte do próprio Jesus. A primeira aliança aponta para a nova e definitiva, em Cristo. Pedro, em êxtase, sugere a construção de três tendas (uma para Jesus, outra para Moisés e outra para Elias), na esperança de permanecer longamente naquele estado. Mas tudo está envolvido pela “nuvem luminosa” do Espírito, da qual ressoa no coração dos discípulos agitados, prostrados com a face por terra, a voz do Pai: “Este é o meu Filho, o amado, escutai-o!”. Depois de tudo desaparecer, permanece Jesus, que ordena aos três que guardem segredo a respeito do que viram, “até que o Filho do Homem ressuscite dos mortos”.
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Após as perseguições romanas contra os cristãos, no século IV, foram edificadas diversas igrejas no Tabor – dedicação que justificará a génese da festa que, a partir do século V, se difundiu pelo Oriente Médio. No século VI, já se encontram grandes representações que cobrem as capelas das ábsides centrais, nas basílicas de Parenzo, de Santo Apolinário em Ravenna, do Mosteiro de Santa Catarina no Sinai. Desde o princípio, o esquema iconográfico reproduz o momento central do relato evangélico, de modo que são poucas as variantes e as adições particulares através dos séculos.
No Oriente bizantino, a festa da Santa Transfiguração de Nosso Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo, que se reveste duma solenidade especial, é lembrada desde o século IV pelos santos Efrém, o Sírio, e João Crisóstomo e, entre os hinos litúrgicos, até hoje ainda em uso entre os bizantinos, muitos são de autoria de São Cosme de Maiúma e de São João Damasceno.
A tradição oriental reconhece na Transfiguração uma nova manifestação trinitária após a ocorrida no batismo de Jesus, porque no Tabor “a voz do Pai dá testemunho, o Espírito ilumina e o Filho recebe e manifesta a palavra e a luz”. Porém, existem outros temas sobre os quais os hinos litúrgicos da festa querem atrair a atenção dos fiéis: a metamorfose de Cristo resplendor do Pai; o prenúncio da Ressurreição de Jesus e nossa; a divinização da natureza humana, obscurecida em Adão e agora iluminada.
A teologia oriental insiste sobre a graça incriada, participação na luz que envolveu o Cristo no Tabor, “Graça deificante, emanação do Espírito Santo que vem a iluminar a Esposa para a tornar nupcialmente conforme ao Esposo”, como escreve C. Andronikov, acrescentando:
A Transfiguração, festa teleológica por excelência, nos permite aguardar a Páscoa e prever o porvir para além da parusia.
É posterior à festa da Exaltação da Cruz, da qual, no entanto, depende quanto à fixação da sua data. Com efeito, segundo uma velha tradição, a Transfiguração de Jesus teria ocorrido 40 dias antes da crucifixão. A solenidade tinha-se, pois, fixado no dia 6 de Agosto, isto é, 40 dias antes da Exaltação da Cruz, que é celebrada no dia 14 de Setembro.
No calendário ocidental foi estavelmente introduzida em 1457, pelo papa Calixto III, em ação de graças pela coeva vitória contra os turcos. Os evangelhos não permitem fixar, no ritmo anual, a data para a Transfiguração. Contudo, o Oriente, fazendo jus à sua intuição cósmica, selecionou o dia 6 de agosto, o grande meio-dia do ano ou o apogeu da luz do verão. Nesta data abençoam-se os frutos da estação, sendo que frequentemente, nos países da bacia mediterrânica, a uva é o fruto por excelência abençoado.
Por seu turno, o Ocidente, menos sensível ao sentido espiritual do evento, apesar de conservar a festa da Transfiguração a 6 de agosto (que introduziu mais tardiamente), entendeu acrescentar uma outra celebração no percurso da via para Páscoa, no II domingo da Quaresma, seguindo mais a cronologia da vida de Jesus e estabelecendo a sua conexão com o mistério pascal.
Seja como for, a festa releva a divindade de Cristo e o caráter trinitário do seu esplendor. “Conversando com Cristo, Moisés e Elias revelam que ele é o Senhor dos vivos e dos mortos, o Deus que tinha falado na Lei e nas Profecias; e a voz do Pai, que sai da nuvem luminosa, “dá dele testemunho”, como exprime a liturgia bizantina. Esta voz do Pai, embora explicite a personalidade do Filho, “Este é o Meu Filho muito amado”, configura uma forte interpelação aos discípulos, “Escutai-O”.
Porém, a Transfiguração não significa o triunfo terreno, que Jesus sempre rejeitou – e aqui está o erro de leitura de Calixto III. Nem é uma emoção espiritual para degustar – e este é o erro de Pedro. É um lampejo, um esplendor daquele Reino que é o próprio Cristo, uma luz que é também a da Páscoa, do Pentecostes, da parusia quando, com o retorno glorioso de Cristo, o mundo inteiro será transfigurado. Moisés e Elias falam com Jesus a respeito da sua Paixão. Somente esta fará resplandecer a luz, não só no cume do Tabor, o monte que simboliza as teofanias (do Sinai, do Horeb ou das Oliveiras) e os êxtases, mas no próprio coração dos discípulos e dos sofrimentos dos homens e da sua morte. A Liturgia ajuda-nos a entender na voz do Pai Aquele que pela da cruz esvaziou o inferno e dá aos mortos a vida sem fim.
Para a teologia oriental, a luz da Transfiguração é a energia divina, o resplandecer de Deus: do Deus que, enquanto permanece inacessível na sua “supraessência”, se torna participável aos homens por loucura de amor. Daí a relevância da festa para a tradição mística e iconográfica a contextualizar e a superlativizar o Cristo Pantocrator, que reinara sobre todos e sobre tudo quando todos se tornarem discípulos indefectíveis em toda a parte.
O resplandecer, o esplendor divino é tal que joga por terra, na montanha, os apóstolos. Não obstante, no Tabor ele permanece como luz externa ao homem, que nos é doada como centelha impercetível ou rio de fogo no pão e no vinho eucarísticos. Então os nossos olhos se abrem e nós compreendemos que o mundo inteiro está impregnado dessa luz. Todas as religiões, todas as intuições da arte e do amor o sabem, mas foi preciso que viesse Cristo e que nele acontecesse aquela imensa metamorfose (palavra com que os gregos denominam a Transfiguração) – para que se revelasse que, à nascente dos veios de fogo, de paz e de beleza presentes na história, existe um Rosto, vencedor da noite e da morte.
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“Nesta liturgia, somos convidados por Jesus a escutar o que Ele tem para nos dizer e a contemplar o seu rosto luminoso. Firmes na fé no Senhor, celebramos o seu mistério pascal, que se realiza nas comunidades e pessoas dispostas a transfigurar a realidade que as cerca, promovendo a vida” (da Liturgia do dia).
O Catecismo da Igreja Católica (§568) ensina:
A transfiguração de Cristo tem por fim fortalecer a fé dos Apóstolos em vista da paixão: a subida à ‘alta montanha’ prepara a subida ao Calvário. Cristo, cabeça da Igreja, manifesta o que o seu Corpo contém e irradia nos sacramentos: a esperança da Glória (Cl 1,27).
São João Paulo II, em agosto de 2000, centrando a atenção nas palavras do Pai, refere:
“A liturgia hodierna convida-nos a dirigir o olhar para o rosto do Filho de Deus que no alto do monte, como de maneira concorde atestam os Sinóticos,  se  transfigura  diante  de  Pedro, Tiago  e  João,  enquanto  da  nuvem  a voz do Pai proclama:  ‘Este é o Meu Filho amado. Escutai o que Ele diz’ (Mc 9,7). São Pedro, ao recordar com emoção o evento, afirmará:  ‘Fomos testemunhas  oculares  da  Sua  majestade’ (2Pe 1,16)”.
Bento XVI explicou, em março de 2011:
“Com este evento, os discípulos foram preparados para o mistério pascal de Jesus: a superar a terrível prova da paixão e também para compreender bem o fato luminoso da ressurreição”.
E o Papa Francisco, referindo-se ao Evangelho da Transfiguração, explicitou em março de 2014
 “A montanha na Bíblia representa o lugar da proximidade com Deus e do encontro íntimo com Ele, o lugar da oração, onde estar na presença do Senhor. Lá no alto da montanha, Jesus se mostra aos três discípulos transfigurado, luminoso, belíssimo; e depois aparecem Moisés e Elias, que conversam com Ele”.
E fez o seguinte apelo-convite:
Escutai Jesus, porque é o meu Filho amado. Tenhamos, esta semana, esta palavra na cabeça e no coração: ‘Escutai Jesus!’. E isto não o diz o Papa, diz Deus Pai, a todos: a mim, a vós, a todos, todos! É como uma ajuda para seguir adiante no caminho da Quaresma. ‘Escutai Jesus!’. ‘Não esquecer’.”
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“Jesus manifestou a seus discípulos este mistério no monte Tabor. Havia andado com eles, falando-lhes a respeito do seu reino e da segunda vinda na glória. Mas talvez não estivessem muito seguros daquilo que lhes anunciara sobre o Reino. Para que tivessem a firme convicção no íntimo do coração e, mediante as realidades presentes, cressem nas futuras, deu-lhes a ver maravilhosamente a divina manifestação da Montanha, imagem prefigurada do reino dos céus. Foi como se lhes dissesse: 
Para que a demora não faça nascer em vós a incredulidade, logo, agora mesmo, eu vos digo, alguns dos que aqui estão não provarão a morte antes de verem o Filho do homem vindo na glória de seu Pai (cf Mt 16,28). (Anastásio Sinaíta, bispo-Século VII).

2016.08.06 – Louro de Carvalho

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