A 6 de agosto, celebra-se a festa da transfiguração de Jesus. É repetição,
no ciclo santoral (do ano
litúrgico), do tema da celebração
do II domingo da Quaresma, no temporal.
Tanto num caso como no outro, as perícopas do Evangelho tomadas para a Liturgia
da Palavra da Missa são extraídas de Mateus, Marcos e Lucas conforme o ciclo de
três anos: Ano A (Mt 17,1-9); Ano B (Mc 9,1-9); e Ano C (Lc 9,28b-36). Porém, as demais leituras da festa divergem das do ciclo temporal do
ano litúrgico. Na festa, em qualquer um dos anos, assume-se como I leitura a passagem
do profeta Daniel (Dn 7,
9-10.13-14), em que o profeta
contempla a glória do Messias que a Si próprio se designa Filho do Homem e que, cingido de poder, reunirá a Humanidade inteira
numa só família e triunfará eternamente (é o reino messiânico de que o Filho do Homem é chefe e modelo); e toma-se como II leitura uma
passagem da 2.ª epístola de Pedro (2Pe 1,16-19), em que o Apóstolo, testemunha da Transfiguração, não se limita ao fornecimento
da notícia, mas conclui que a fé não se apoia em mitos ou lendas, mas numa
Pessoa, Jesus Cristo, que viveu no meio dos apóstolos e cuja transfiguração estes
tiveram o privilégio de presenciar e agora têm o dever de testemunhar. No II
domingo da Quaresma, a I Leitura é tirada do Livro do Génesis (Ano A – Gn 12,1-4a; Ano B – Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18;
Ano C – Gn 15,5-12.17-18),
em que se revê a partida de Abraão, à ordem de Deus, da sua terra para uma
terra estranha que o Senhor lhe indicaria; o facto de Deus pôr à prova a fé de Abraão
exigindo-lhe o sacrifício do filho único; e a celebração da aliança entre Deus
e Abraão e seus descendentes, aliança sinalizada no sacrifício de animais. E para
II leitura, assumem-se passagens de cartas de Paulo (Ano A – 2Tm 1,8b-10; Ano B – Rm
8,31b-34; Ano C – Fl 3,17 – 4,1). A primeira passagem constitui um convite pessoal à salvação com base
no desafio lançado pelo Evangelho e almejando a imortalidade que o Senhor
ressuscitado e glorioso nos mereceu; a segunda sublinha que Deus não poupou o Seu
Filho, pelo que ninguém pode estar contra nós, pois Cristo morreu e ressuscitou
e, à direita do Pai, intercede por nós; e a terceira garante que o cristão, vivendo
neste mundo como cidadão do céu, abe que Jesus o transformará à imagem do seu
corpo glorioso.
Situada no
contexto do anúncio da Paixão e Morte (surge entre dois anúncios), a Transfiguração manifesta a vida divina, que está
em Jesus e representa um desafio de compromisso para nós. A luz do Tabor
compagina uma antecipação do esplendor que encherá a noite da Páscoa. Assim, os
Apóstolos, contemplando a glória divina na Pessoa de Jesus, ficaram preparados
para os dolorosos acontecimentos, que iriam pôr à prova a sua fé. Vendo Jesus
na agonia do Horto (mesmo sonolentos) e a Sua
condição de servo em todo o curso da Paixão, já não poderiam esquecer a Sua
condição divina. Como anúncio da Páscoa, a Transfiguração encerra também a
promessa da nossa transfiguração. Com efeito, Jesus fez transparecer na Sua
Humanidade a glória de que resplandecerá, na Sua vinda final, a Igreja, seu
Corpo Místico, sua esposa mística e povo de Deus. E, sendo assim, a vida cristã
é um processo de lenta transformação em Cristo, que se inicia com o nosso Batismo,
e se completa na Eucaristia, “penhor da futura glória”, que opera a nossa
transformação, até atingirmos a imagem de Cristo glorioso.
***
Os sinóticos (Mateus, Marcos, Lucas) narram o evento da Transfiguração
de modo similar: Jesus chama Pedro, Tiago e João (estes dois são irmãos), às vezes companheiros privilegiados
porque mais perfeitos que os outros, no dizer de São João Crisóstomo – Pedro,
porque amava Jesus mais que os outros, João porque era amado por Jesus mais do
que os outros e Tiago porque se unira na resposta do irmão: “Sim, podemos beber do teu cálice” (cf Mt 20,22) – e condu-los a uma “alta montanha”
(lugar por excelência das
manifestações divinas), que
a Tradição diz ser o monte Tabor. Ali ele – segundo Lucas, enquanto orava – aparece
radiante duma luz esplêndida que emana “tanto do seu rosto brilhante como o
sol” como das suas vestes – obra do homem, da cultura humana – e se irradia pela
natureza circunstante, como o mostram os ícones alusivos ao evento.
Entretanto, aparecem Moisés,
antonomásia da Lei, e Elias, antonomásia da Profecia, que falam com Jesus –
conversa que, segundo Lucas tem como tema a morte do próprio Jesus. A primeira
aliança aponta para a nova e definitiva, em Cristo. Pedro, em êxtase, sugere a
construção de três tendas (uma para Jesus, outra para Moisés e outra para Elias), na esperança de permanecer
longamente naquele estado. Mas tudo está envolvido pela “nuvem luminosa” do
Espírito, da qual ressoa no coração dos discípulos agitados, prostrados com a
face por terra, a voz do Pai: “Este é o meu Filho, o amado, escutai-o!”. Depois de tudo desaparecer, permanece Jesus, que
ordena aos três que guardem segredo a respeito do que viram, “até que o Filho
do Homem ressuscite dos mortos”.
***
Após as perseguições romanas contra
os cristãos, no século IV, foram edificadas diversas igrejas no Tabor –
dedicação que justificará a génese da festa que, a partir do século V, se
difundiu pelo Oriente Médio. No século VI, já se encontram grandes
representações que cobrem as capelas das ábsides centrais, nas basílicas de
Parenzo, de Santo Apolinário em Ravenna, do Mosteiro de Santa Catarina no
Sinai. Desde o princípio, o esquema iconográfico reproduz o momento central do
relato evangélico, de modo que são poucas as variantes e as adições
particulares através dos séculos.
No
Oriente bizantino, a festa da Santa Transfiguração de Nosso Senhor Deus e Salvador
Jesus Cristo, que se reveste duma solenidade especial, é lembrada desde o
século IV pelos santos Efrém, o Sírio, e João Crisóstomo e, entre os hinos
litúrgicos, até hoje ainda em uso entre os bizantinos, muitos são de autoria de
São Cosme de Maiúma e de São João Damasceno.
A tradição oriental reconhece na
Transfiguração uma nova manifestação trinitária após a ocorrida no batismo de
Jesus, porque no Tabor “a voz do Pai dá testemunho, o Espírito ilumina e o
Filho recebe e manifesta a palavra e a luz”. Porém, existem outros temas sobre
os quais os hinos litúrgicos da festa querem atrair a atenção dos fiéis: a metamorfose de Cristo resplendor do Pai;
o prenúncio da Ressurreição de Jesus e
nossa; a divinização da natureza
humana, obscurecida em Adão e agora iluminada.
A teologia oriental insiste sobre a
graça incriada, participação na luz que envolveu o Cristo no Tabor, “Graça
deificante, emanação do Espírito Santo que vem a iluminar a Esposa para a tornar
nupcialmente conforme ao Esposo”, como escreve C. Andronikov,
acrescentando:
“A
Transfiguração, festa teleológica por excelência, nos permite aguardar a Páscoa
e prever o porvir para além da parusia.”
É posterior à festa da Exaltação da
Cruz, da qual, no entanto, depende quanto à fixação da sua data. Com efeito,
segundo uma velha tradição, a Transfiguração de Jesus teria ocorrido 40 dias
antes da crucifixão. A solenidade tinha-se, pois, fixado no dia 6 de Agosto,
isto é, 40 dias antes da Exaltação da Cruz, que é celebrada no dia 14 de
Setembro.
No calendário ocidental foi
estavelmente introduzida em 1457, pelo papa Calixto III, em ação de graças pela
coeva vitória contra os turcos. Os evangelhos não permitem fixar, no ritmo
anual, a data para a Transfiguração. Contudo, o Oriente, fazendo jus à sua intuição
cósmica, selecionou o dia 6 de agosto, o grande meio-dia do ano ou o apogeu da
luz do verão. Nesta data abençoam-se os frutos da estação, sendo que frequentemente,
nos países da bacia mediterrânica, a uva é o fruto por excelência abençoado.
Por seu turno, o Ocidente, menos
sensível ao sentido espiritual do evento, apesar de conservar a festa da
Transfiguração a 6 de agosto (que introduziu mais tardiamente), entendeu acrescentar uma outra celebração no percurso da
via para Páscoa, no II domingo da Quaresma, seguindo mais a cronologia da vida
de Jesus e estabelecendo a sua conexão com o mistério pascal.
Seja como for, a festa releva a
divindade de Cristo e o caráter trinitário do seu esplendor. “Conversando com
Cristo, Moisés e Elias revelam que ele é o Senhor dos vivos e dos mortos, o
Deus que tinha falado na Lei e nas Profecias; e a voz do Pai, que sai da nuvem
luminosa, “dá dele testemunho”, como exprime a liturgia bizantina. Esta voz do
Pai, embora explicite a personalidade do Filho, “Este é o Meu Filho muito amado”, configura uma forte interpelação
aos discípulos, “Escutai-O”.
Porém, a Transfiguração não significa
o triunfo terreno, que Jesus sempre rejeitou – e aqui está o erro de leitura de
Calixto III. Nem é uma emoção espiritual para degustar – e este é o erro de
Pedro. É um lampejo, um esplendor daquele Reino que é o próprio Cristo, uma luz
que é também a da Páscoa, do Pentecostes, da parusia quando, com o retorno
glorioso de Cristo, o mundo inteiro será transfigurado. Moisés e Elias falam
com Jesus a respeito da sua Paixão. Somente esta fará resplandecer a luz, não
só no cume do Tabor, o monte que simboliza as teofanias (do Sinai, do Horeb ou das Oliveiras) e os êxtases, mas no próprio
coração dos discípulos e dos sofrimentos dos homens e da sua morte. A Liturgia
ajuda-nos a entender na voz do Pai Aquele que pela da cruz esvaziou o inferno e
dá aos mortos a vida sem fim.
Para a teologia oriental, a luz da
Transfiguração é a energia divina, o resplandecer de Deus: do Deus que,
enquanto permanece inacessível na sua “supraessência”, se torna participável
aos homens por loucura de amor. Daí a relevância da festa para a tradição
mística e iconográfica a contextualizar e a superlativizar o Cristo Pantocrator, que reinara sobre todos
e sobre tudo quando todos se tornarem discípulos indefectíveis em toda a parte.
O resplandecer, o esplendor divino é
tal que joga por terra, na montanha, os apóstolos. Não obstante, no Tabor ele
permanece como luz externa ao homem, que nos é doada como centelha impercetível
ou rio de fogo no pão e no vinho eucarísticos. Então os nossos olhos se abrem e
nós compreendemos que o mundo inteiro está impregnado dessa luz. Todas as
religiões, todas as intuições da arte e do amor o sabem, mas foi preciso que
viesse Cristo e que nele acontecesse aquela imensa metamorfose (palavra com que os gregos denominam a
Transfiguração) – para
que se revelasse que, à nascente dos veios de fogo, de paz e de beleza
presentes na história, existe um Rosto, vencedor da noite e da morte.
***
“Nesta
liturgia, somos convidados por Jesus a escutar o que Ele tem para nos dizer e a
contemplar o seu rosto luminoso. Firmes na fé no Senhor, celebramos o seu
mistério pascal, que se realiza nas comunidades e pessoas dispostas a
transfigurar a realidade que as cerca, promovendo a vida” (da Liturgia do dia).
O Catecismo da Igreja Católica (§568) ensina:
“A
transfiguração de Cristo tem por fim fortalecer a fé dos Apóstolos em vista da
paixão: a subida à ‘alta montanha’ prepara a subida ao Calvário. Cristo, cabeça
da Igreja, manifesta o que o seu Corpo contém e irradia nos sacramentos: a
esperança da Glória” (Cl 1,27).
São João Paulo II, em agosto de 2000,
centrando a atenção nas palavras do Pai, refere:
“A liturgia hodierna
convida-nos a dirigir o olhar para o rosto do Filho de Deus que no alto do
monte, como de maneira concorde atestam os Sinóticos, se
transfigura diante de Pedro, Tiago e João,
enquanto da nuvem a voz do Pai proclama: ‘Este é
o Meu Filho amado. Escutai o que Ele diz’ (Mc 9,7). São
Pedro, ao recordar com emoção o evento, afirmará: ‘Fomos testemunhas
oculares da Sua majestade’ (2Pe 1,16)”.
Bento XVI explicou, em março de 2011:
“Com este evento, os
discípulos foram preparados para o mistério pascal de Jesus: a superar a
terrível prova da paixão e também para compreender bem o fato luminoso da ressurreição”.
E o Papa Francisco,
referindo-se ao Evangelho da Transfiguração, explicitou em março de 2014
“A montanha na Bíblia representa o lugar da
proximidade com Deus e do encontro íntimo com Ele, o lugar da oração, onde
estar na presença do Senhor. Lá no alto da montanha, Jesus se mostra aos três
discípulos transfigurado, luminoso, belíssimo; e depois aparecem Moisés e
Elias, que conversam com Ele”.
E fez o seguinte apelo-convite:
“Escutai Jesus, porque é o meu Filho amado.
Tenhamos, esta semana, esta palavra na cabeça e no coração: ‘Escutai Jesus!’. E
isto não o diz o Papa, diz Deus Pai, a todos: a mim, a vós, a todos, todos! É
como uma ajuda para seguir adiante no caminho da Quaresma. ‘Escutai Jesus!’. ‘Não
esquecer’.”
***
“Jesus
manifestou a seus discípulos este mistério no monte Tabor. Havia andado com eles,
falando-lhes a respeito do seu reino e da segunda vinda na glória. Mas talvez
não estivessem muito seguros daquilo que lhes anunciara sobre o Reino. Para que
tivessem a firme convicção no íntimo do coração e, mediante as realidades
presentes, cressem nas futuras, deu-lhes a ver maravilhosamente a divina
manifestação da Montanha, imagem prefigurada do reino dos céus. Foi como se lhes
dissesse:
“Para que a demora não faça nascer em vós a incredulidade,
logo, agora mesmo, eu vos digo, alguns dos que aqui estão não provarão a morte
antes de verem o Filho do homem vindo na glória de seu Pai (cf Mt 16,28). (Anastásio
Sinaíta, bispo-Século VII).
2016.08.06 – Louro de Carvalho
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