25 de agosto é o dia em que a Igreja Católica celebra a
memória litúrgica de São Luís de França. É esta a designação que lhe foi
atribuída aquando da sua canonização pelo Papa Bonifácio VIII, em 1297 – decorridos
17 anos depois da morte no cativeiro do Egito (25 de agosto de 1270), vitimado pela peste bubónica, segundo uns, ou por disenteria,
segundo outros. Porém, o monarca preferia denominar-se Luís de Poissy em
virtude de ali ter sido batizado. Só uma boa dose de humanismo cristão, dentro
do possível no contexto epocal, justificará o facto de um soberano se haver
tornado o padroeiro dos operários de construção, dos fabricantes de botões, dos
cabeleireiros e barbeiros, das academias francesas e das academias de ciências,
bem como a invocação que lhe fazem contra a acidificação da cerveja.
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Nascido no Castelo de Poissy, a 25 de abril de 1214 (dois anos depois de os muçulmanos
terem sofrido a derrota decisiva na Batalha de Navas de Tolosa), tornou-se Luís IX, rei de França,
aos 12 anos de idade, ficando a regência entregue a sua mãe, Branca de Castela
– senhora piedosa, enérgica e fina, que soube manter a herança capetiana e que,
em 1229, anexou o Languedoque oriental e obteve para a coroa a sucessão
tolosana. Contando-se os 3 meses de idade de Luís, foi ganha a grande vitória
nacional de Bouvines, que pôs termo a uma etapa da guerra anglo-francesa iniciada
em 1202 e se tornou fundamental no desenvolvimento precoce da França medieval,
confirmando a soberania da coroa francesa sobre as terras do império Angevino.
Apesar de terminada a menoridade real em 1234, Branca dominou
o filho até morrer, em 1252.
Os aspetos mais enfatizados em Luís IX são: a canonização em
1297; a importância do reinado na santificação da monarquia, aos olhos dos súbditos;
o jogo político; e o afã das cruzadas.
João de Joinville, seu acompanhante numa cruzada, escreveu a
memória das experiências do rei, depois de 1304, para a instrução do futuro
Luís X (1314-1316). O cronista apresenta inúmeros
exemplos, ilustrando a piedade de Luís, o amor pelos pobres, a caridade e
ascetismo pessoal, o horror à heresia e à blasfémia e a reverência pela
justiça.
Entretanto, enquanto rei, Luís IX deixou um legado misto: centralizou
e institucionalizou a governação; logrou um período de relativa concórdia
interna; alargou significativamente a jurisdição apelativa do tribunal real,
sem que alguma vez este constituísse uma ferramenta dos papas ou do clero
francês. Porém, deixou uma dívida ingente, justificada em grande parte pelas
duas cruzadas que organizou e em que participou.
Por decreto de 1263, Luís assegurou a existência de finanças
robustas, instalando uma comissão financeira encarregada do controlo das contas
reais, reforçando a estrutura criada pelo avô Filipe Augusto em 1190, um esboço
da Corte das Contas, futuro
parlamento da França. Normalizou a cunhagem de moeda fazendo que as emissões de
moeda real fossem as únicas válidas dentro do domínio real; em outros locais,
circulavam juntamente com as cunhagens pelos príncipes. E, sob a sua égide,
Etienne Boileau, preboste de Paris, organizou e codificou, em 1268, os ofícios
da capital (é a redação
do Livro dos Ofícios).
Fortaleceu os governos locais e regularizou a cadeia de
comando na administração à medida que promovia a colocação de meirinhos,
bailios e senescais sobre grupos de magistrados militares. Entretanto, abusos
dos meirinhos levaram-no a nomear enquêteurs
(inquisidores), nomeadamente frades, desde 1247,
para os controlarem. Embora os príncipes tenham mantido a governança dos seus
territórios, a partir da época de Luís IX, as ordenações reais eram
consideradas válidas fora do domínio real e os príncipes tinham de as fazer
cumprir.
O seu reinado foi marcante para a profissionalização e
regulação da justiça. As sessões judiciais do conselho real passaram a ser
fixas em Paris, a partir de 1248, onde comités de cavaleiros e clérigos emitiam
julgamentos em nome do conselho, tornando-se raras as reuniões gerais do
conselho, que passaram a ser utilizadas, sobretudo, para assuntos solenes de
Estado, tais como a emissão de ordenações. Por outro lado, os procedimentos do
tribunal do rei, o Parlamento de Paris,
foram colocados por escrito, pela primeira vez, durante o seu reinado e sobrevivem
desde 1254. O Parlamento de Paris tornou-se o supremo tribunal do reino, e os
apelos feitos para ele tornaram-se mais numerosos com a aproximação do final do
reinado de Luís IX. Os casos reservados à Coroa foram alargados e o Parlamento
obteve o direito de intervir sempre que os juízes achassem estar-se a negar
justiça, mesmo que não tivesse surgido qualquer apelo. O Parlamento começou a
enviar comissários para as províncias para obtenção de inquéritos juramentados –
função que passou a desenvolver-se no século XIV, num departamento distinto, a
“Câmara dos Inquéritos”.
O facto de as leis usuais das várias províncias se terem
desenvolvido tanto tempo antes de a jurisdição real se ter estabelecido por
decreto, significa que a França não iria encontrar nenhuma “leis dos comuns”
semelhante na Inglaterra. Totalmente diferenciada das variações provinciais, existia
uma diferença considerável entre a lei escrita das regiões do sul da França e a
lei normal das regiões do norte. Desde a época de Filipe III (1270-1285), sucessor de Luís IX, que o
Parlamento possuía um departamento separado para os casos que se encontravam
sob a lei escrita ou sob a lei romana.
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A maturidade de Luís IX foi dominada pelo desejo de tomar a Palestina.
Recuperado de grave doença, partiu para o Oriente em 1248, na VII Cruzada, que redundou em verdadeiro
desastre para si e para o Estado (saúde arruinada e tesouro vazio). Considerando o fracasso como resultado dos próprios
pecados, como penitência, envergou uma camisa de cabelos até ao fim da vida. Porém,
mais determinante ainda foi a ideia obsessiva, até o fim do seu reinado, de
que, para atenuar a humilhação real, teria de empreender uma ação de conquista
com sucesso. O seu rendimento anual, em 1244, era de cerca dum quarto dos
custos da sua primeira cruzada. Cobriu a diferença tomando propriedades aos
judeus, cobrando impostos de cruzadas aos súbditos do reino, à Igreja francesa
(com aprovação do papa) e contraindo empréstimos junto dos
banqueiros genoveses e dos Cavaleiros do Templo. E o alargamento da justiça
real também se revelou lucrativo, embora exigisse custos administrativos
adicionais.
Filipe Augusto permitira aos nobres do norte a cruzada contra
os “albigenses” (cátaros) do sul da França, mas não tomara
parte ativa em tal ação. Ao invés, Luís VIII e Luís IX perseguiram intensivamente
os albigenses. Como resultado direto da intervenção real o condado de Tolosa
reverteu para a Coroa em 1270. A outra grande adição de Luís IX ao domínio real
foi a compra do condado de Mâcon, em 1239.
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Em razão da sua santidade e justiça, o soberano francês era
regularmente escolhido como árbitro das desavenças entre os grandes na Europa.
O prestígio de que gozava e o respeito que lhe era devotado advinham mais
daquelas duas qualidades do que do poderio militar. Aos olhos dos
contemporâneos era o melhor exemplo de príncipe cristão, um primus inter pares (o primeiro entre iguais). A 4 de dezembro de 1259, em Paris,
assinou o tratado de Albevillle com Henrique III de Inglaterra, acabando assim
a primeira fase da Guerra dos Cem Anos
entre os dois Estados. Porém, este era incómodo tanto na França como na Inglaterra,
podendo haver apelo para o tribunal real francês na Gasconha, sendo que os
franceses acabaram por adquirir o direito de reunir tropas nessa área. Luís
negociou trégua semelhante com Jaime I de Aragão, que entregou as suas
pretensões ao Languedoque e à Provença, enquanto Luís, por seu turno, abandonava
as pretensões francesas a Barcelona e ao Rossilhão. Contudo os resultados não foram
irreversíveis. As hostilidades com os ingleses em relação a Gasconha irromperam
mais tarde, em 1290, e as relativas a Aragão, devido ao apoio de Aragão a
Manfredo contra Carlos de Anjou, o irmão mais novo de Luís, na Itália. Luís
permitiu que os inquisidores papais reunissem tribunais na França, mas não
acedeu aos pedidos do Papa para uma cruzada contra o imperador Frederico II. Ao
ajudar Carlos de Anjou, Luís deu início a um envolvimento fatal a longo prazo.
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A estratégia da sua segunda e última cruzada (ele morreu no Egito em 1270) – a VIII cruzada – pode, na verdade, ter sido ditada pelas necessidades
políticas de Carlos no Mediterrâneo ocidental.
No século XIII, as despesas do governo cresceram enormemente
tanto na França como na Inglaterra. A mecânica do Governo sobre as populações
tinha, contudo, apenas uma parcial responsabilidade por isto. Embora o rendimento
normal de Luís IX (o que
recebia dos domínios reais) fosse quase o dobro dos de Filipe Augusto, as suas cruzadas eram
extremamente caras. Também foi um grande construtor de igrejas, o que implicava
dinheiro. No entanto, apesar da crescente necessidade de recursos, nem a
monarquia francesa nem a inglesa tentaram implementar novas formas de angariar
dinheiro senão após 1270. Os rendimentos mais elevados eram o resultado de uma
mais eficiente exploração dos direitos que o rei já possuía. As maiores fontes
de rendimento dos governantes eram as ajudas de custo e os incidentes feudais
convertidos em dinheiro. O legislador afirmava que toda a terra na França era
feudo do rei, o que significava a tributabilidade de toda a terra. Luís IX tomou
a cruzada como um incidente feudal, fazendo cobrança às cidades. Por outro
lado, os reis fiscalizavam a “tributação geral”, a obrigação dos homens livres
na prestação de serviço em defesa da pátria em situação de emergência militar,
cobrando taxa àqueles a quem não era pedido que servissem pessoalmente no exército
real.
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Este reinado constituiu, apesar de tudo, um
período de paz e prosperidade para a França, mas igualmente de excepcionais
posturas de zelo religioso e de intolerância com a mira de levar o povo à
salvação da alma. Luís não descurou o cuidado pelos pobres, proibiu o jogo e a
prostituição e puniu a blasfémia. As punições eram tão rigorosas que o Papa Clemente
IV houve por bem atenuá-las.
Uma das manifestações da religiosidade do
monarca foi a aquisição da coroa de espinhos
e dum fragmento da cruz da de Cristo, em 1239-1241, a Balduíno II, imperador
de Constantinopla, por 135.000 libras – relíquias para as quais mandou edificar
a capela gótica Sainte-Chapelle, no
coração de Paris, cuja construção custou apenas 60000 libras. A compra das relíquias
entende-se no contexto do fervor religioso da Europa do século XIII. E a sua posse muito contribuiu
para o reforço da posição central do rei da França na cristandade ocidental,
bem como para o aumento da fama de Paris, na época a maior cidade da Europa ocidental.
Num tempo em que cidades e governantes competiam pela posse de relíquias sagradas,
Luís IX logrou colocar algumas das mais ambicionadas na sua capital. Trata-se de
ato não só devocional, mas também político: a monarquia francesa tentava afirmar-se
como a nova Jerusalém dos textos bíblicos. Foi também
sob o seu reinado que foram construídas as
catedrais de Amiens, Rouen, Beauvais, Auxerre e Saint-Germain-en-Laye.
O monarca francês era zeloso da sua missão de “lugar-tenente
de Deus na Terra”, em que fora investido na sua coroação em Reims. Para
cumprir este dever viria a organizar duas cruzadas e, apesar do fracasso delas,
contribuíram para o seu prestígio, pois os contemporâneos não teriam
compreendido que rei tão poderoso e pio não fosse libertar a Terra Santa. Para
financiar a sua primeira cruzada, perseguiu a comunidade judaica. No século
XIII era generalizada a aversão pelos judeus da parte dos cristãos sob o
pretexto de terem dado a morte a Cristo. Tal como os antecessores, Luís tomou
medidas discriminatórias e persecutórias contra esta minoria étnica e religiosa,
também com o intuito de a converter ao cristianismo. Ordenou a expulsão de
todos os judeus envolvidos em atividades de usura, podendo assim confiscar as
riquezas destes para financiar os seus projetos. No entanto, não eliminou as
dívidas dos cristãos: foi perdoado um terço da dívida, mas os outros dois
terços deveriam ser enviados para o tesouro real.
Em 1242, por solicitação de judeus convertidos, que afirmavam
que o Talmude continha invectivas
contra Cristo e contra a Virgem Maria, ordenou a queima dos exemplares deste
livro religioso existentes em Paris. Em 1254, decretou
a expulsão dos judeus não convertidos, apropriando-se dos seus bens. Todavia,
não terá sido feito um controlo eficaz do cumprimento desta medida, pelo que
muitos permaneceram nos locais em que viviam. E, alguns anos depois, o rei
anulou este decreto em troca dum pagamento em prata da comunidade judaica ao
tesouro régio. E, em 1269, seguindo as recomendações do IV Concílio de Latrão (de 1215), impôs aos judeus o
uso de sinais vestimentares distintivos, que se mantiveram até ao governo de
Vichy (1940-1944): para os homens, a rouelle ou estrela amarela ao peito; para as
mulheres, um chapéu especial. Estes sinais permitiam diferenciá-los do resto da
população e ajudar a impedir os casamentos mistos. Para lá da legislação contra
os judeus e a usura, o rei alargou o alcance da Inquisição na França, sendo a área mais visada o
sul do país onde a heresia cátara ganhara
mais forte implantação. A quantidade de confiscos atingiu o ponto máximo nos
anos anteriores à VII Cruzada, tendo
diminuído aquando do regresso do rei à Europa em 1254.
Em
todos os atos, Luís cumpria o que entendia como dever da França, “a
filha mais velha da Igreja” (la fille aînée de
l'Église),
na esteira da tradição de sua protetora desde os tempos dos francos e Carlos
Magno (coroado
pelo Papa, em Roma, no ano de 800). De facto, além dos títulos Rex Francorum (rei dos francos) ou Franciae Rex (rei da França) que Luís IX foi o primeiro a usar, os
monarcas franceses também eram intitulados Rex
Christianissimus (rei cristianíssimo). As relações da
França com o Papado atingiram o ponto culminante nos séculos XII e XIII, e a
maioria das cruzadas foram proclamadas pelos papas em solo francês.
***
Rei
desastrado, mas santo, hábil, prestigiado e mediador. A governança e a justiça com
base na lei e nos manuais de procedimentos vertidos na escrita, bem como o
tribunal superior de apelo ou o controlo superior das contas públicas foram
opções civilizacionais e culturais de futuro.
2016.08.25 –
Louro de Carvalho
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