quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Luís de Poissy ou São Luís de França

25 de agosto é o dia em que a Igreja Católica celebra a memória litúrgica de São Luís de França. É esta a designação que lhe foi atribuída aquando da sua canonização pelo Papa Bonifácio VIII, em 1297 – decorridos 17 anos depois da morte no cativeiro do Egito (25 de agosto de 1270), vitimado pela peste bubónica, segundo uns, ou por disenteria, segundo outros. Porém, o monarca preferia denominar-se Luís de Poissy em virtude de ali ter sido batizado. Só uma boa dose de humanismo cristão, dentro do possível no contexto epocal, justificará o facto de um soberano se haver tornado o padroeiro dos operários de construção, dos fabricantes de botões, dos cabeleireiros e barbeiros, das academias francesas e das academias de ciências, bem como a invocação que lhe fazem contra a acidificação da cerveja.
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Nascido no Castelo de Poissy, a 25 de abril de 1214 (dois anos depois de os muçulmanos terem sofrido a derrota decisiva na Batalha de Navas de Tolosa), tornou-se Luís IX, rei de França, aos 12 anos de idade, ficando a regência entregue a sua mãe, Branca de Castela – senhora piedosa, enérgica e fina, que soube manter a herança capetiana e que, em 1229, anexou o Languedoque oriental e obteve para a coroa a sucessão tolosana. Contando-se os 3 meses de idade de Luís, foi ganha a grande vitória nacional de Bouvines, que pôs termo a uma etapa da guerra anglo-francesa iniciada em 1202 e se tornou fundamental no desenvolvimento precoce da França medieval, confirmando a soberania da coroa francesa sobre as terras do império Angevino.
Apesar de terminada a menoridade real em 1234, Branca dominou o filho até morrer, em 1252.
Os aspetos mais enfatizados em Luís IX são: a canonização em 1297; a importância do reinado na santificação da monarquia, aos olhos dos súbditos; o jogo político; e o afã das cruzadas.
João de Joinville, seu acompanhante numa cruzada, escreveu a memória das experiências do rei, depois de 1304, para a instrução do futuro Luís X (1314-1316). O cronista apresenta inúmeros exemplos, ilustrando a piedade de Luís, o amor pelos pobres, a caridade e ascetismo pessoal, o horror à heresia e à blasfémia e a reverência pela justiça.
Entretanto, enquanto rei, Luís IX deixou um legado misto: centralizou e institucionalizou a governação; logrou um período de relativa concórdia interna; alargou significativamente a jurisdição apelativa do tribunal real, sem que alguma vez este constituísse uma ferramenta dos papas ou do clero francês. Porém, deixou uma dívida ingente, justificada em grande parte pelas duas cruzadas que organizou e em que participou.
Por decreto de 1263, Luís assegurou a existência de finanças robustas, instalando uma comissão financeira encarregada do controlo das contas reais, reforçando a estrutura criada pelo avô Filipe Augusto em 1190, um esboço da Corte das Contas, futuro parlamento da França. Normalizou a cunhagem de moeda fazendo que as emissões de moeda real fossem as únicas válidas dentro do domínio real; em outros locais, circulavam juntamente com as cunhagens pelos príncipes. E, sob a sua égide, Etienne Boileau, preboste de Paris, organizou e codificou, em 1268, os ofícios da capital (é a redação do Livro dos Ofícios).
Fortaleceu os governos locais e regularizou a cadeia de comando na administração à medida que promovia a colocação de meirinhos, bailios e senescais sobre grupos de magistrados militares. Entretanto, abusos dos meirinhos levaram-no a nomear enquêteurs (inquisidores), nomeadamente frades, desde 1247, para os controlarem. Embora os príncipes tenham mantido a governança dos seus territórios, a partir da época de Luís IX, as ordenações reais eram consideradas válidas fora do domínio real e os príncipes tinham de as fazer cumprir.
O seu reinado foi marcante para a profissionalização e regulação da justiça. As sessões judiciais do conselho real passaram a ser fixas em Paris, a partir de 1248, onde comités de cavaleiros e clérigos emitiam julgamentos em nome do conselho, tornando-se raras as reuniões gerais do conselho, que passaram a ser utilizadas, sobretudo, para assuntos solenes de Estado, tais como a emissão de ordenações. Por outro lado, os procedimentos do tribunal do rei, o Parlamento de Paris, foram colocados por escrito, pela primeira vez, durante o seu reinado e sobrevivem desde 1254. O Parlamento de Paris tornou-se o supremo tribunal do reino, e os apelos feitos para ele tornaram-se mais numerosos com a aproximação do final do reinado de Luís IX. Os casos reservados à Coroa foram alargados e o Parlamento obteve o direito de intervir sempre que os juízes achassem estar-se a negar justiça, mesmo que não tivesse surgido qualquer apelo. O Parlamento começou a enviar comissários para as províncias para obtenção de inquéritos juramentados – função que passou a desenvolver-se no século XIV, num departamento distinto, a “Câmara dos Inquéritos”.
O facto de as leis usuais das várias províncias se terem desenvolvido tanto tempo antes de a jurisdição real se ter estabelecido por decreto, significa que a França não iria encontrar nenhuma “leis dos comuns” semelhante na Inglaterra. Totalmente diferenciada das variações provinciais, existia uma diferença considerável entre a lei escrita das regiões do sul da França e a lei normal das regiões do norte. Desde a época de Filipe III (1270-1285), sucessor de Luís IX, que o Parlamento possuía um departamento separado para os casos que se encontravam sob a lei escrita ou sob a lei romana.
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A maturidade de Luís IX foi dominada pelo desejo de tomar a Palestina. Recuperado de grave doença, partiu para o Oriente em 1248, na VII Cruzada, que redundou em verdadeiro desastre para si e para o Estado (saúde arruinada e tesouro vazio). Considerando o fracasso como resultado dos próprios pecados, como penitência, envergou uma camisa de cabelos até ao fim da vida. Porém, mais determinante ainda foi a ideia obsessiva, até o fim do seu reinado, de que, para atenuar a humilhação real, teria de empreender uma ação de conquista com sucesso. O seu rendimento anual, em 1244, era de cerca dum quarto dos custos da sua primeira cruzada. Cobriu a diferença tomando propriedades aos judeus, cobrando impostos de cruzadas aos súbditos do reino, à Igreja francesa (com aprovação do papa) e contraindo empréstimos junto dos banqueiros genoveses e dos Cavaleiros do Templo. E o alargamento da justiça real também se revelou lucrativo, embora exigisse custos administrativos adicionais.
Filipe Augusto permitira aos nobres do norte a cruzada contra os “albigenses” (cátaros) do sul da França, mas não tomara parte ativa em tal ação. Ao invés, Luís VIII e Luís IX perseguiram intensivamente os albigenses. Como resultado direto da intervenção real o condado de Tolosa reverteu para a Coroa em 1270. A outra grande adição de Luís IX ao domínio real foi a compra do condado de Mâcon, em 1239.
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Em razão da sua santidade e justiça, o soberano francês era regularmente escolhido como árbitro das desavenças entre os grandes na Europa. O prestígio de que gozava e o respeito que lhe era devotado advinham mais daquelas duas qualidades do que do poderio militar. Aos olhos dos contemporâneos era o melhor exemplo de príncipe cristão, um primus inter pares (o primeiro entre iguais). A 4 de dezembro de 1259, em Paris, assinou o tratado de Albevillle com Henrique III de Inglaterra, acabando assim a primeira fase da Guerra dos Cem Anos entre os dois Estados. Porém, este era incómodo tanto na França como na Inglaterra, podendo haver apelo para o tribunal real francês na Gasconha, sendo que os franceses acabaram por adquirir o direito de reunir tropas nessa área. Luís negociou trégua semelhante com Jaime I de Aragão, que entregou as suas pretensões ao Languedoque e à Provença, enquanto Luís, por seu turno, abandonava as pretensões francesas a Barcelona e ao Rossilhão. Contudo os resultados não foram irreversíveis. As hostilidades com os ingleses em relação a Gasconha irromperam mais tarde, em 1290, e as relativas a Aragão, devido ao apoio de Aragão a Manfredo contra Carlos de Anjou, o irmão mais novo de Luís, na Itália. Luís permitiu que os inquisidores papais reunissem tribunais na França, mas não acedeu aos pedidos do Papa para uma cruzada contra o imperador Frederico II. Ao ajudar Carlos de Anjou, Luís deu início a um envolvimento fatal a longo prazo.
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A estratégia da sua segunda e última cruzada (ele morreu no Egito em 1270) – a VIII cruzada – pode, na verdade, ter sido ditada pelas necessidades políticas de Carlos no Mediterrâneo ocidental.
No século XIII, as despesas do governo cresceram enormemente tanto na França como na Inglaterra. A mecânica do Governo sobre as populações tinha, contudo, apenas uma parcial responsabilidade por isto. Embora o rendimento normal de Luís IX (o que recebia dos domínios reais) fosse quase o dobro dos de Filipe Augusto, as suas cruzadas eram extremamente caras. Também foi um grande construtor de igrejas, o que implicava dinheiro. No entanto, apesar da crescente necessidade de recursos, nem a monarquia francesa nem a inglesa tentaram implementar novas formas de angariar dinheiro senão após 1270. Os rendimentos mais elevados eram o resultado de uma mais eficiente exploração dos direitos que o rei já possuía. As maiores fontes de rendimento dos governantes eram as ajudas de custo e os incidentes feudais convertidos em dinheiro. O legislador afirmava que toda a terra na França era feudo do rei, o que significava a tributabilidade de toda a terra. Luís IX tomou a cruzada como um incidente feudal, fazendo cobrança às cidades. Por outro lado, os reis fiscalizavam a “tributação geral”, a obrigação dos homens livres na prestação de serviço em defesa da pátria em situação de emergência militar, cobrando taxa àqueles a quem não era pedido que servissem pessoalmente no exército real.
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Este reinado constituiu, apesar de tudo, um período de paz e prosperidade para a França, mas igualmente de excepcionais posturas de zelo religioso e de intolerância com a mira de levar o povo à salvação da alma. Luís não descurou o cuidado pelos pobres, proibiu o jogo e a prostituição e puniu a blasfémia. As punições eram tão rigorosas que o Papa Clemente IV houve por bem atenuá-las.
Uma das manifestações da religiosidade do monarca foi a aquisição da coroa de espinhos e dum fragmento da cruz da de Cristo, em 1239-1241, a Balduíno II, imperador de Constantinopla, por 135.000 libras – relíquias para as quais mandou edificar a capela gótica Sainte-Chapelle, no coração de Paris, cuja construção custou apenas 60000 libras. A compra das relíquias entende-se no contexto do fervor religioso da Europa do século XIII. E a sua posse muito contribuiu para o reforço da posição central do rei da França na cristandade ocidental, bem como para o aumento da fama de Paris, na época a maior cidade da Europa ocidental. Num tempo em que cidades e governantes competiam pela posse de relíquias sagradas, Luís IX logrou colocar algumas das mais ambicionadas na sua capital. Trata-se de ato não só devocional, mas também político: a monarquia francesa tentava afirmar-se como a nova Jerusalém dos textos bíblicos. Foi também sob o seu reinado que foram construídas as catedrais de Amiens, Rouen, Beauvais, Auxerre e Saint-Germain-en-Laye.
O monarca francês era zeloso da sua missão de “lugar-tenente de Deus na Terra”, em que fora investido na sua coroação em Reims. Para cumprir este dever viria a organizar duas cruzadas e, apesar do fracasso delas, contribuíram para o seu prestígio, pois os contemporâneos não teriam compreendido que rei tão poderoso e pio não fosse libertar a Terra Santa. Para financiar a sua primeira cruzada, perseguiu a comunidade judaica. No século XIII era generalizada a aversão pelos judeus da parte dos cristãos sob o pretexto de terem dado a morte a Cristo. Tal como os antecessores, Luís tomou medidas discriminatórias e persecutórias contra esta minoria étnica e religiosa, também com o intuito de a converter ao cristianismo. Ordenou a expulsão de todos os judeus envolvidos em atividades de usura, podendo assim confiscar as riquezas destes para financiar os seus projetos. No entanto, não eliminou as dívidas dos cristãos: foi perdoado um terço da dívida, mas os outros dois terços deveriam ser enviados para o tesouro real.
Em 1242, por solicitação de judeus convertidos, que afirmavam que o Talmude continha invectivas contra Cristo e contra a Virgem Maria, ordenou a queima dos exemplares deste livro religioso existentes em Paris. Em 1254, decretou a expulsão dos judeus não convertidos, apropriando-se dos seus bens. Todavia, não terá sido feito um controlo eficaz do cumprimento desta medida, pelo que muitos permaneceram nos locais em que viviam. E, alguns anos depois, o rei anulou este decreto em troca dum pagamento em prata da comunidade judaica ao tesouro régio. E, em 1269, seguindo as recomendações do IV Concílio de Latrão (de 1215), impôs aos judeus o uso de sinais vestimentares distintivos, que se mantiveram até ao governo de Vichy (1940-1944): para os homens, a rouelle ou estrela amarela ao peito; para as mulheres, um chapéu especial. Estes sinais permitiam diferenciá-los do resto da população e ajudar a impedir os casamentos mistos. Para lá da legislação contra os judeus e a usura, o rei alargou o alcance da Inquisição na França, sendo a área mais visada o sul do país onde a heresia cátara ganhara mais forte implantação. A quantidade de confiscos atingiu o ponto máximo nos anos anteriores à VII Cruzada, tendo diminuído aquando do regresso do rei à Europa em 1254.
Em todos os atos, Luís cumpria o que entendia como dever da França, a filha mais velha da Igreja (la fille aînée de l'Église), na esteira da tradição de sua protetora desde os tempos dos francos e Carlos Magno (coroado pelo Papa, em Roma, no ano de 800). De facto, além dos títulos Rex Francorum (rei dos francos) ou Franciae Rex (rei da França) que Luís IX foi o primeiro a usar, os monarcas franceses também eram intitulados Rex Christianissimus (rei cristianíssimo). As relações da França com o Papado atingiram o ponto culminante nos séculos XII e XIII, e a maioria das cruzadas foram proclamadas pelos papas em solo francês.
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Rei desastrado, mas santo, hábil, prestigiado e mediador. A governança e a justiça com base na lei e nos manuais de procedimentos vertidos na escrita, bem como o tribunal superior de apelo ou o controlo superior das contas públicas foram opções civilizacionais e culturais de futuro.
2016.08.25 – Louro de Carvalho

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