Quem o disse foi Marcelo no contexto da sua visita à Madeira
para a entrega do abraço solidário do Estado à população que sofre naquela
Região Autónoma. E, por mais estranho que pareça e apesar de contrariar o que habitualmente
se defende, o Presidente da República tem razão.
É certo que não se deve decidir a quente nem legislar com
base num caso que se conheceu. Todavia, o que se passa com os incêndios
florestais, a atingir clamorosamente os prédios urbanos e as populações, não é
caso de agora nem tem em vista um indivíduo ou um grupo social alvo. É de décadas
e os incendiários transformam o país numa enorme manta de cobertura do
terrorismo incendiário. E ou se pensa agora e, quanto antes, se tomam medidas legislativas
e organizacionais ou o próximo ano oferecerá um espetáculo igual ou mais
dramático ainda.
***
Neste sentido, são
de apreciar as iniciativas de cidadãos que surgiram nos últimos dias. Trata-se
de três petições públicas, das quais, a meu ver, só uma (a primeira) observa o estipulado na Constituição. Com efeito, a iniciativa
legislativa cabe “aos
Deputados, aos grupos parlamentares e ao Governo, e ainda, nos termos e
condições estabelecidos na lei, a grupos de cidadãos eleitores” (cf
CRP, art.º 167.º/1).
***
Há uma petição pública dirigida ao Presidente
da Assembleia da República a pretender um país sem incêndios. Acusa a crassa
destruição da fauna e flora “em consequência dos gigantescos incêndios” perpetrados
por mãos criminosas; e a ausência de legislação aliada à falta da “boa vontade”
dos governantes. E exige a discussão e votação na Assembleia da República para
valerem como lei as seguintes propostas:
- Passar para o Exército e Força Aérea a responsabilidade do
patrulhamento das florestas e da detenção dos meios aéreos de combate a incêndios
em vez de estes permanecerem na mão de privados que visam apenas o lucro
empresarial;
- Obrigar as autarquias a fiscalizarem e manterem terrenos
próximos de habitações limpos de vegetação propícia a incêndios;
- Proibir a plantação de Eucaliptos, que empobrecem e desertificam
os solos, substituindo-os pelas espécies que outrora preenchiam as nossas
florestas;
- Proibir a utilização de herbicidas por constituírem um mal
para a saúde pública e causarem também o empobrecimento dos solos; e
- Utilizar a mão-de-obra paga pelo contribuinte (como presos e detentores do Rendimento Social de Inserção) na limpeza e
manutenção de florestas, locais públicos propícios a incêndios e noutras
atividades em defesa do bem comum.
Esta petição precisa de reunir as assinaturas exigidas
por lei e o seu êxito depende apenas da vontade dos deputados.
***
Outra petição pública surgida visa
“a implementação de medidas e práticas de planeamento e ordenamento florestal
para a prevenção dos incêndios florestais” e é endereçada ao Presidente da
Assembleia da República, ao Primeiro-ministro, ao Ministro da Agricultura, Florestas
e Desenvolvimento Rural e ainda outras entidades.
Acusa
o significativo aumento da área de espaços florestais, graças às plantações de
sobreiros e pinheiros-bravos até à década de 70 e de eucaliptais desde a década
de 50, contribuindo para a existência de mais de 3 milhões de hectares de
floresta; a desvalorização de outros usos do solo como a agricultura, matos e
terrenos incultos; a estabilização da área de floresta, “denotando a ação dos
incêndios para o declínio de alguns serviços do ecossistema; e o abandono das
áreas rurais (êxodo rural),
bem como a deserção das atividades rurais e da utilização de combustível florestal
para atividades domésticas – de que resultou a acumulação de elevadas
quantidades de combustível no espaço florestal, que, aliada a diversos fatores
(meteorológicos,
vegetação, relevo, etc.),
facilita a rápida proliferação do fogo.
Considera:
que o desempenho da floresta é gravemente prejudicado pelos incêndios
florestais, designadamente na produtividade dos povoamentos florestais e na
produção de maiores danos para a sociedade; que é fundamental proceder ao planeamento
e ordenamento florestal; e que é expectável o aumento do risco meteorológico de
incêndio por situações extremas (sobretudo nos meses
primaveris e outonais em resultado das alterações climáticas).
E
reconhece a reduzida eficácia das políticas de ordenamento florestal, com base
nos PROF (Planos Regionais de Ordenamento Florestal) e com custos elevados para o
erário público.
Por
isso, sugere várias alterações legislativas e procedimentais para obviar a tais
problemas:
-
Efetuar um cadastro predial e florestal em todo o território nacional para se
reconhecerem as reais necessidades para a mitigação dos fogos florestais, para
gerar um eficiente ordenamento do território e para determinar a limpeza das
propriedades por parte dos proprietários (público e privado), nomeadamente através dum
sistema de obrigação social de presidiários e beneficiários do Rendimento
Social de Inserção;
-
Proceder à sensibilização e educação para a floresta e para os efeitos dos
incêndios florestais em todos os grupos etários e pelos diversos meios;
-
Colocar em execução eficaz todos os instrumentos legais que os municípios têm
ao seu dispor, designadamente o PMDFCI (Plano Municipal de
Defesa da Floresta Contra Incêndios);
-
Reformar a legislação referente à floresta, considerando que o atual quadro
legal promove desproporcionadamente (sem conto, peso e
medida) os
povoamentos eucaliptais, na mira de interesses privados; e
-
Utilizar diversas técnicas de prevenção, como uso do fogo controlado, a
reconstrução da rede de faixas de gestão da floresta, etc. possibilitando a
redução do combustível (biomassa) com relação a utilização/impacto/preço mais
equilibrados.
Por
isso, os signatários desta petição:
-
Manifestam o seu descontentamento pela forma como as áreas florestais têm sido
relegadas para segundo plano (durante grande parte do ano);
-
Veem a necessidade de integrar o planeamento e ordenamento florestal (e
do território) na agenda
legislativa, que estabeleça medidas, programas e operações, com técnicos
especializados para o efeito, afetos aos reais problemas, que se encontram na
ordem do dia;
-
E solicitam ao
Ministro da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural que apresente a
referida proposta à aprovação na Assembleia da República.
Esta
petição não é um ato formal de petição de um grupo de cidadãos à Assembleia da República, mas um
ato de sensibilização dos titulares de órgãos de soberania para a conveniente
tomada de atitudes em matéria legislativa, organizacional e procedimental. O seu
mérito não tem consequências imediatas, mas é indiscutível.
***
Também “um cidadão Português cansado de assistir ano após ano
à destruição do nosso património florestal principalmente devido a mão
criminosa” apela “à voz do povo Português para que possa ser alterada a pena
penal máxima dos 8 anos para os 25 anos de prisão para quem atear fogo às
nossas florestas”. Sente que “basta de ter mão leve para os criminosos que por
prazer ou interesses económicos, destroem o nosso património, põem vidas
humanas em risco e nos fazem gastar milhões de euros nos combates aos incêndios”.
Sobre
isto a revista Visão on line
transcreve o conteúdo da petição, enquadra a ação no contexto de uma ilha da “Madeira
pintada de preto e de mais de uma dezena de incêndios florestais de grandes
proporções a lavrar em Portugal continental”. Depois, refere que “as
estatísticas mostram que mais de 75% dos fogos que ocorrem em Portugal têm mão
humana associadas”.
Porém,
embora o número de assinaturas que emolduram a petição (mais
de 40 mil) seja mais
que suficiente para os deputados discutirem a matéria (são
necessárias 4 mil),
a própria revista mostra a fragilidade da petição. Ela não está estruturada e
deixa ao critério dos deputados, ou melhor dos partidos, a definição do destino
a dar ao debate: “podem apresentar um projeto de lei sobre a matéria em causa
ou remeter até recomendações para o ministro competente, a Procuradora-Geral da
República, a PJ ou o Provedor de Justiça”.
O
próprio autor do texto da petição, Rafael Carvalho, parece acusar também tal
fragilidade quando solicita o contributo de um voluntário, conhecedor do
Direito, para colaborar na apresentação do texto.
Ora
isto não é nada. As petições que envolvem uma iniciativa de um grupo de cidadãos
devem ser endereçadas à Assembleia da República, que as deve apreciar e decidir
pela sua aprovação ou não. Para tanto, elas devem ser minimamente estruturadas
e não pode modificar-se o seu texto depois da recolha das assinaturas. De resto,
em matéria legislativa, não se fazem recomendações: apresentada a iniciativa ao
Parlamento, cabe-lhe apreciá-la.
De acordo com as regras estipuladas no site oficial da Assembleia da República, este apelo público deverá
agora ser analisado pelo Parlamento, pois:
“Tratando-se de uma petição subscrita por um
mínimo de 1.000 cidadãos, a mesma é obrigatoriamente publicada no Diário da
Assembleia da República; se for subscrita por mais de 4.000 cidadãos, é
apreciada em plenário da Assembleia”.
Apesar
de tudo, parece que os poderes mostram algum acolhimento à pretensão. A Ministra
da Administração Interna sustenta que agravar as penas para os incendiários é
uma questão a considerar “seriamente”. A este respeito, declarou em
Arouca:
“Nascem [os fogos] às três e quatro da manhã e garanto-vos que
não é por obra do acaso. (...) [O agravamento da pena] também é uma
questão que seriamente tem que ser decidida”.
Por seu turno, o Presidente da República defende que é
preciso “punir em conformidade” quem ateia fogos florestais e espera que
a nova legislação ajude na “eficácia da justiça”, nos casos de incêndios
com origem criminosa. Depois de uma reunião com o presidente da Liga dos
Bombeiros (que entende
haver uma “onda terrorista” organizada
nesta vaga de fogos), Marcelo
lembrou aos jornalistas que praticamente todos os autarcas das zonas com fogos
florestais consideram haver mão humana por trás dos incêndios e disse:
“Se assim for, temos dois problemas: primeiro é
criar meios de prevenir que isso sucede, e isso tem a ver com o problema da
prevenção dos fogos, e depois é preciso punir em conformidade”.
No domínio da prevenção e ordenamento, o Presidente espera novos
diplomas legais.
No âmbito da justiça, Marcelo Rebelo de Sousa disse ainda
esperar que se trate a sério da questão da sua eficácia em relação a eventuais
responsáveis. A este propósito, o Presidente disse conhecer de casos de
condenados, mais do que uma vez, por fogo posto, não sendo possível atualmente
medidas preventivas de circulação destas pessoas, em áreas e períodos críticos
e declarou
“Os
especialistas olharão para isso e verão como é possível, constitucionalmente,
agir em conformidade”.
***A alteração legislativa solicitada implica a
alteração do art.º 274.º do Código
Penal, que estipula no seu n.º 1:
Porém, a pena vai de 3 a 12 anos se o autor do crime tiver
atuado “com intenção de obter benefício económico”, deixado “a vítima em
situação económica difícil” ou criado “perigo para a vida ou para a integridade
física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado” (vd art.º 274.º/2).
No entanto, ninguém espere que se resolva o problema por esta
via, pois, para o incendiário ser efetivamente condenado, há que respeitar
todas as normas processuais e dar-lhe todas as garantias de defesa. Por outro
lado, só é condenado aquele a quem a acusação conseguir aduzir provas inequívocas
dos factos; e a gradualidade da pena tem em conta muitos fatores pessoais e circunstanciais
que o tribunal apreciará.
Prefiro o investimento no ordenamento racional da floresta,
na limpeza e na vigilância. Porém, um alteração significativa o Código Penal
como se pede constituirá um sinal claro para a comunidade, que se vê
desesperada e abandonada à sua sorte.
2016.08.12
– Louro de Carvalho
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