quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Eu apenas queria ler

Na década de 90 do século passado, o último do milénio anterior, deparei-me, ao entrar em alguns cafés da zona geográfica onde residia e trabalhava, com aquilo que eu chamava a “propaganda à unha”: pedia-se um café e lá vinha o dito na chávena sobre o pires, vindo sobre este a colherinha e o pacotinho de açúcar com a publicidade ao preservativo por obra e graça de um determinado grupo empresarial de comercialização de café.
Quando eu pedia um café ou uma bica e me confrontava com o facto do café e açúcar embrulhados naquela postura, usualmente devolvia o pacotinho de açúcar e dizia que só pretendia “tomar café”… Hoje, como deixei, por motivos de saúde, de utilizar açúcar para condimentar qualquer bebida, não sei se isso continua a suceder.
Entretanto, devo dizer que não perdi antanho a oportunidade de fazer saber da minha discordância através de um agente do aludido grupo empresarial, sustentando claramente que, independentemente do juízo moral e/ou científico a produzir ou do direito de publicitação de um produto, não me parecia proveitosa e ética a “propaganda à unha” do preservativo (achava descabido meterem-nos uma coisa pelos olhos a dentro). Havia a rádio, a TV, os jornais e revistas, os painéis expositores, etc. Porém um indivíduo não devia ser obrigado a levar com aquilo que não queria ou, em alternativa, a ter de rejeitar de forma ora hipócrita ora ostensiva.
Agora, a propósito dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, fizeram-se muitas críticas às condições de instalação na “aldeia olímpica”, enalteceram-se as qualidades de organização e segurança da olimpíada, a prestação dos atletas e o caráter “icónico” do evento mundial; criticou-se o balanço otimista feito pelo Presidente do Comité Olímpico Internacional; e foi referido que foram distribuídos 245 mil preservativos aos residentes na “aldeia olímpica”, responsáveis pelo entupimento de algumas das vias de esgoto.
Sobre os demais pontos que foram objeto de crítica já me pronunciei. Agora passo a interrogar-me se estava a raciocinar certo quando estava convicto de que os atletas estavam ali “para competir”, representando os seus países e os dirigentes e elementos da logística estavam ao serviço da competição.  
***
Hoje, como habitualmente, fui comprar a revista Visão ao quiosque. Saltou à vista a capa, que promete uma reportagem subordinada ao tema “Sexo sem medo” e elucida:
“O fantasma da sida já não assusta. Um medicamento, aprovado no mês passado, evita a transmissão do VIH e é usado por quem tem comportamentos de risco. O preservativo fica esquecido e ganham terreno outras infeções sexualmente transmissíveis.”
Depois, vem colado um exemplar de preservativo no canto inferior direito da mesma capa, retirado o qual, se pode ler “Oferta da Direção-Geral de Saúde e da Associação Abraço”. são distribuídos 80 mil.
Então, lembrado das memórias do passado do outro milénio, apraz-me dizer: “Eu apenas queria ler”.
Independentemente das concordâncias/discordâncias por motivos científicos, éticos, medicinais, profiláticos ou negociais, rejeito a “propaganda à unha”. E quero recordar como o facilitismo e o negócio levaram a crítica mundial a “crucificar” o atual papa emérito por motivo das declarações que ele produziu no âmbito da sua viagem apostólica aos Camarões e a Angola. Afinal, os perigos vão passando, mas o preservativo persiste intocável no seu foro de cidadania.
Se os formadores de Seminário soubessem da “eficácia do preservativo” qual remédio para todas as doenças e antídoto contra todas as tentações, bem podiam dispensar os destinatários dos seus discursos daquelas preleções monótonas a promover a vigilância sobre os sentidos e sensações – vista, ouvido, olfato, gosto e tacto para não se cair em tentação e para que o Senhor nos livre do mal. Com cinco preservativos distribuídos a cada um tê-los-iam libertado do inferno e, a continuar assim, os padres talvez deixassem de pedir a dispensa do exercício do sacerdócio para contraírem matrimónio.  
Podem objetar que era preciso multiplicar sucessivamente as doses. Respondo que poderiam estabelecer protocolo com a Direção-Geral de Saúde, que pode não ter recursos para mais nada, mas para isso tem sempre.
Já agora me recordo de que um aluno do curso de construção civil numa escola profissional, no segundo milénio, apresentou como trabalho de projeto para finalização do curso – a PAP (prova de aptidão profissional) um estudo sobre a remodelação da igreja da sua paróquia. Ora, ao explicar perante o júri os diversos materiais e a sua aplicação, a cada passo se lhe ouvia dizer: “depois aplica-se-lhe um preservativo”.
O Presidente do Júri, reparando que ele confundia as palavras “preservativo” e “preservante”, comentou ironicamente: “Talvez a tua Igreja não esteja pelos ajustes”. E um outro membro do júri, percebendo que o aluno não tinha percebido, atalhou: “As pessoas vão à igreja para rezar”.
***
Enfim, deixem que as pessoas exerçam o direito de só quererem “tomar café”, “competir”, “ler”, “rezar” e que se decidam pelo resto se, como e quando quiserem.
É que eu hoje de tarde só queria mesmo ler.

2016.08.25 – Louro de Carvalho

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