Passou
no dia 6 de agosto o 38.º aniversário da morte do Beato Papa Paulo VI.
Dele se pode dizer resumidamente: Giovanni Battista Montini (seu nome original) nasceu, em Concesio, na província
de Brescia, em 26 de setembro de 1897; foi eleito pontífice em 21 de junho de
1963; guiou com sabedoria a Igreja num período de grandes mudanças, levando a bom
termo o Concílio Vaticano II, convocado e inaugurado por São João XXIII; iniciou
as grandes viagens internacionais dos Papas; e promoveu o claro compromisso
ecuménico da Igreja.
Foi declarado “Venerável” a 20 de dezembro de 2012 e, depois
de Bento XVI reconhecer as suas virtudes heroicas, foi beatificado em 19 de
outubro de 2014 pelo Papa Francisco.
Na homilia da missa da beatificação,
Francisco recordou o seu “testemunho profético de amor a Cristo e à sua
Igreja”, definindo-o como o “grande timoneiro do Concílio”, “cristão corajoso”
e “apóstolo incansável”. E sublinhou como Paulo VI observava “atentamente os
sinais dos tempos”, buscando “adaptar os caminhos e os métodos às necessidades
de nossos dias e às condições da sociedade”, pois, enquanto se formava uma
sociedade secularizada e hostil”, “soube conduzir, com sabedoria e às vezes em
solidão, o timão da barca de Pedro sem nunca perder a alegria e a confiança no
Senhor”.
Paulo VI soube realmente dar a Deus o que é de Deus,
dedicando toda a sua vida “ao compromisso sagrado e solene de continuar no
tempo e na terra a missão de Cristo”.
***
Entretanto,
Paulo VI e o Concílio de que ele foi timoneiro são acusados de obnubilar a
figura de Maria no mistério de Cristo e da Igreja. A este respeito, o editor português
do livro de Charlene Spretnak, “Saudades
de Maria” (2009, da “Caleidoscópio”), faz a sua sinopse nos termos seguintes:
“A meio da década de 1960, a Igreja decidiu implementar
reformas com vista à modernização. Uma delas, a minimização de Maria. Esta
decisão dividiu, durante as décadas subsequentes, a Igreja em dois polos: a
direita católica, a reclamar a Virgem nas suas formas tradicionais; e a
esquerda católica, intitulada de progressista, a defender a redução de Maria à
sua condição simples de referência bíblica, rejeitando qualquer glorificação da
camponesa de Nazaré como Rainha dos céus.
Para a autora, católica e feminista, esta ala erra tremendamente quando tenta
fazer desaparecer Maria, reduzindo drasticamente a sua presença tanto
visualmente quanto teologicamente. Spretnak desafia esta atitude da Igreja
Católica moderna e apresenta aos
leitores a argumentação duma poderosa manifestação do Sagrado Feminino, que
ainda resiste em milhões de lares católicos que mantêm Maria no seu antigo
lugar de Rainha dos céus.”
E G. M. Behler, no livro “Louange
biblique de la Vierge” (1967, Desclée de
Brouwer), diz:
“Em nossos dias parece que a devoção à Virgem Maria perdeu o
entusiasmo de outrora. Na realidade, a Igreja, no seu conjunto, é mais ‘marial’
a partir do Vaticano II. Reconhece em Maria o seu protótipo e o seu modelo,
procura assemelhar-se Àquela que é ‘Mãe da Igreja’. Maria não aparece separada
de Igreja, mas unida a ela de modo indissolúvel.”
Em
que ficamos? Foi errada a recomendação da reforma litúrgica de, na edificação de
novas igrejas, se mostrar alguma sobriedade contra a multiplicação de imagens da
Virgem ou de santos e santas, desviando a atenção cultual do essencial? Não era
necessário purificar algumas devoções e reorientá-las no sentido cristocêntrico?
Pode atribuir-se ao Concílio ou aos Papas alguns exageros, mesmo que lamentáveis?
Esperava-se que o Concílio não discutisse, que repetisse a doutrina tradicional,
que os bispos se limitassem a assinar?
Quanto
ao concílio e postura subsequente, é de perguntar:
O
Vaticano II alterou a visão cristã sobre Nossa Senhora? Dará a dita espiritualidade
tradicional espaço a superstição e a mariolatria? Não será mais saudável
abandonar devoções barrocas e abraçar
o justo cristocentrismo? Que dizer de vocábulos como medalhas, consagração, escravidão, terços, coroinhas, novenas, romarias e litânias?
Ora,
tanto a comemoração dos 50 anos de abertura do Concílio Vaticano II como os da
sua clausura nos oferecem o ensejo de situar o verdadeiro sentido mariológico
contido no capítulo VIII da constituição dogmática Lumen Gentium, sobre a Igreja, distribuído por cinco subcapítulos que abrangem os
últimos 18 números do documento (52-69).
Ao
longo dos séculos, várias formas de piedade cristã se desenvolveram em torno da
Virgem Maria. É o amor a Nossa Senhora, estribado na sua indispensável função
na economia da Salvação, que encontra sempre novos modos de se exprimir e de se
propagar. Embora muitos dentro da própria Igreja tenham tentado afastar os
fiéis de algumas práticas devocionais, sob o pretexto de devoções barrocas e
excessivas, nada disto foi abolido ou posto de lado.
Nem
o Vaticano II, o grande marco católico do século XX, representou uma rutura na
visão do Magistério acerca do papel e função da bem-aventurada Virgem
Santíssima na história da salvação. Ao invés, as linhas conciliares sobre Maria
trouxeram consigo uma verdadeira riqueza espiritual para os fiéis,
incentivando-os a reconhecer nelas um fundamento doutrinal sólido para a
devoção e amor à Virgem Mãe.
O
mencionado texto conciliar – sem pretender
propor toda a doutrina acerca de Maria nem dirimir as questões ainda não cabalmente
esclarecidas pelos teólogos – oferece uma síntese de duas escolas
marianas existentes à época: a escola
eclesiológica e a escola cristológica. Estas duas
tendências totalmente católicas, reunidas num Congresso Mariano Internacional,
em 1958, em Lourdes, entraram num embate: enquanto a escola eclesiológica
concebia Maria como a maior de entre os santos e, na expressão que o Concílio
utilizou depois, como membro eminente e
inteiramente singular da Igreja, a outra focava-se de modo especial no seu
papel salvífico singular na história. A tendência cristológica condensava as suas
formulações no antiquíssimo título de Maria, Mãe de Deus. Para estes teólogos, Jesus
não estabeleceu Maria como mera intercessora, mas, tendo-a escolhido para vir
ao mundo uma vez, assume-a como associada ao seu reino entre as pessoas. Ora, durante
o Concílio, foi confiado a dois prelados o encargo da elaboração das linhas-força
a respeito da Santíssima Virgem: o cardeal Franz König, de Viena, pela escola
eclesiológica; e o cardeal Rufino Santos, das Filipinas, pela escola
cristológica. No momento de optar por elaborar um documento específico para
Nossa Senhora ou integrar a doutrina num outro documento, nomeadamente o que tratasse
da Igreja, os padres conciliares, encabeçados por aqueles dois membros do sacro
colégio cardinalício, estavam visivelmente divididos. Entre os mais de 2000 votantes,
decidiu-se incluir o texto sobre Maria no documento sobre a Igreja por um
diferença de apenas 17 votos.
Não
obstante, o resultado final da Constituição dogmática Lumen Gentium redundou
num verdadeiro equilíbrio entre as duas escolas marianas. Pode dizer-se a Constituição
sobre a Igreja integrou a mariologia na sua economia doutrinal e fixou um mínimo denominador comum da mariologia
para o catolicismo. Assim, enquanto considera Maria a realização exemplar (o tipo) da Igreja, reconhece que, “de modo inteiramente singular, pela
obediência, fé, esperança e ardente caridade, ela cooperou na obra do Salvador
para a restauração da vida sobrenatural das almas”, chegando a chamá-la de
nossa “mãe na ordem da graça”. E, se como
refere a Lumen Gentium, “conservam os seus direitos as opiniões que
nas escolas católicas livremente se propõem acerca daquela que na santa Igreja
ocupa depois de Cristo o lugar mais elevado e também o mais próximo de nós”,
também conservam os seus direitos os bispos e sobretudo os Sumos Pontífices.
E é aqui que entra o papel notável de Paulo VI.
Se
as palavras do Concílio parecem pouco audazes – a Lumen Gentium diz
que Maria é “Mãe dos membros (de Cristo)”, não utilizando a palavra Igreja –, no dia 21 de novembro de 1964,
o Papa Paulo VI pronunciou um discurso no qual, surpreendentemente, proclamou
Maria como “Mãe da Igreja”.
Embora pertença ao Magistério ordinário, não se trata de um discurso rotineiro
do Santo Padre, mas de um momento “solene”: o do encerramento da 3.ª sessão conciliar.
Disse o Pontífice:
“Para glória da Virgem e para
nosso conforto, proclamamos Maria Santíssima 'Mãe da Igreja', isto é, de todo o Povo de Deus, tanto dos fiéis
como dos pastores, que lhe chamam Mãe amorosíssima; e queremos que com este
título suavíssimo seja a Virgem doravante honrada e invocada por todo o povo
cristão”.
E
insistiu:
“Quanto
a nós, da mesma sorte que a convite do Papa João XXIII, a 11 de outubro de 1961,
entrámos na aula conciliar juntamente 'cum Maria, Matre Jesu', assim
também, ao terminar a terceira sessão, deste mesmo templo saímos no nome
santíssimo e suavíssimo de Maria, Mãe da Igreja”.
Ora,
o Papa Pio XII, na encíclica Humani Generis, tinha afirmado:
“Se
os romanos pontífices em suas constituições pronunciam de caso pensado uma
sentença em matéria controvertida, é evidente que, segundo a intenção e vontade
dos mesmos pontífices, essa questão já não pode ser tida como objeto de livre
discussão entre os teólogos”.
Assim,
à luz do ensinamento de Pio XII, embora haja alguma dificuldade por parte de alguns
teólogos em reconhecer Maria como Mater
Ecclesiae, se há uma declaração do Magistério – mesmo que ordinário –
ancorando e explicitando tal entendimento, o conselho é de que “o católico deve
reconhecer o Papa como Pai, Pastor e Mestre universal, e estar unido a ele de
espírito e coração”, pelo que se deve
levar em conta o seu parecer, enquanto vigário de Cristo e chefe visível da
Igreja.
Ante
a Virgem Maria, é legítimo tomar partido pela escola eclesiológica – aparentemente,
mais em voga hoje – ou pela escola cristológica. Não é possível, porém,
rejeitando os postulados conciliares e evocando um desviante “espírito ecuménico”,
relegar Maria – cuja memória todas as gerações exaltam, proclamando-a
bem-aventurada – para um papel de simples coadjuvante na história da
salvação.
***
E,
a 28 de março de 1965, Paulo VI, o Papa da Mater
Ecclesiae, benzeu a “rosa de ouro” que – que tem inscrito em faixa “Paulus
VI Deiparae patrocinium pro tota Ecclesia implorans auream Rosam Fatimensi
templo D. D. - Die XIII Maii MCMLXV” – iria ser entregue ao
Santuário de Fátima pelo cardeal Ferdinando Cento, legado pontifício, a 13 de
maio, na peregrinação aniversária. Das palavras que o Papa proferiu no ato da bênção,
destaca-se:
“Amados filhos, sentimos também Nós a alegria de procedermos hoje
à bênção da Rosa de Ouro que destinámos ao Santuário de Fátima. Esta é o testemunho
do Nosso paternal afeto que mantemos pela nobre Nação Portuguesa; é penhor da
Nossa devoção que temos ao insigne Santuário, onde foi levantado à Mãe de Deus
um Seu altar.”
Além das visitas que
fez a vários santuários marianos, dos discursos e homilias que fez alusivas a
Maria, deu relevo ao papel da Virgem no Credo
do Povo de Deus (n.os 14 e
15 da homilia em que se insere o credo) e
publicou duas encíclicas e três exortações apostólicas marcadamente marianas.
As encíclicas são: a Mense Maio (de 29 de abril de 1965), para
implorar da Virgem Maria o êxito do Concílio e a Paz no mundo; e a Christi
Matri Rosarii (de 15 de setembro de 1966), para
a verdadeira e duradoura paz. As exortações apostólicas são: a Signum Magnum (de 13 de
maio de 1967), consagrada ao culto da
Virgem Maria, Mãe da Igreja e Modelo de todas as virtudes; a Recurrens mensis october (de 7 de outubro de 1967), a incitar o povo de Deus à recitação do rosário
para obter a paz; e a Marialis Cultus
(de 2 de fevereiro de 1974), para a reta ordenação e desenvolvimento do culto
à Bem-aventurada Virgem Maria.
***Quando se exalta a piedade
mariana de João Paulo II, expressa no seu Totus
Tuus ou os belos discursos e orações de Bento XVI, bem como as insistentes referências
discursivas e atitudinais de Francisco a Maria, é de justiça fazer menção
explícita do Papa da Mater Eclesiae,
Paulo VI, e do Vaticano II, que não esqueceu o papel de Maria na economia da
Salvação quer do ângulo de Cristo quer do ângulo da Igreja. Maria acompanha Cristo
na glória e é próxima da Igreja e dos seus membros nas alegrias e dramas, nos
temores e esperanças.Por fim, prosseguir cum Maria in Ecclesia et per Mariam ad Iesum
et ad homines.
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