domingo, 7 de agosto de 2016

O lado mariológico e mariano de Paulo VI, o Papa da Mater Ecclesiae

Passou no dia 6 de agosto o 38.º aniversário da morte do Beato Papa Paulo VI.
Dele se pode dizer resumidamente: Giovanni Battista Montini (seu nome original) nasceu, em Concesio, na província de Brescia, em 26 de setembro de 1897; foi eleito pontífice em 21 de junho de 1963; guiou com sabedoria a Igreja num período de grandes mudanças, levando a bom termo o Concílio Vaticano II, convocado e inaugurado por São João XXIII; iniciou as grandes viagens internacionais dos Papas; e promoveu o claro compromisso ecuménico da Igreja. 
Foi declarado “Venerável” a 20 de dezembro de 2012 e, depois de Bento XVI reconhecer as suas virtudes heroicas, foi beatificado em 19 de outubro de 2014 pelo Papa Francisco.
Na homilia da missa da beatificação, Francisco recordou o seu “testemunho profético de amor a Cristo e à sua Igreja”, definindo-o como o “grande timoneiro do Concílio”, “cristão corajoso” e “apóstolo incansável”. E sublinhou como Paulo VI observava “atentamente os sinais dos tempos”, buscando “adaptar os caminhos e os métodos às necessidades de nossos dias e às condições da sociedade”, pois, enquanto se formava uma sociedade secularizada e hostil”, “soube conduzir, com sabedoria e às vezes em solidão, o timão da barca de Pedro sem nunca perder a alegria e a confiança no Senhor”. 
Paulo VI soube realmente dar a Deus o que é de Deus, dedicando toda a sua vida “ao compromisso sagrado e solene de continuar no tempo e na terra a missão de Cristo”.
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Entretanto, Paulo VI e o Concílio de que ele foi timoneiro são acusados de obnubilar a figura de Maria no mistério de Cristo e da Igreja. A este respeito, o editor português do livro de Charlene Spretnak, “Saudades de Maria” (2009, da “Caleidoscópio”), faz a sua sinopse nos termos seguintes:
“A meio da década de 1960, a Igreja decidiu implementar reformas com vista à modernização. Uma delas, a minimização de Maria. Esta decisão dividiu, durante as décadas subsequentes, a Igreja em dois polos: a direita católica, a reclamar a Virgem nas suas formas tradicionais; e a esquerda católica, intitulada de progressista, a defender a redução de Maria à sua condição simples de referência bíblica, rejeitando qualquer glorificação da camponesa de Nazaré como Rainha dos céus. Para a autora, católica e feminista, esta ala erra tremendamente quando tenta fazer desaparecer Maria, reduzindo drasticamente a sua presença tanto visualmente quanto teologicamente. Spretnak desafia esta atitude da Igreja Católica moderna e apresenta aos leitores a argumentação duma poderosa manifestação do Sagrado Feminino, que ainda resiste em milhões de lares católicos que mantêm Maria no seu antigo lugar de Rainha dos céus.
E G. M. Behler, no livro “Louange biblique de la Vierge” (1967, Desclée de Brouwer), diz:
“Em nossos dias parece que a devoção à Virgem Maria perdeu o entusiasmo de outrora. Na realidade, a Igreja, no seu conjunto, é mais ‘marial’ a partir do Vaticano II. Reconhece em Maria o seu protótipo e o seu modelo, procura assemelhar-se Àquela que é ‘Mãe da Igreja’. Maria não aparece separada de Igreja, mas unida a ela de modo indissolúvel.”
Em que ficamos? Foi errada a recomendação da reforma litúrgica de, na edificação de novas igrejas, se mostrar alguma sobriedade contra a multiplicação de imagens da Virgem ou de santos e santas, desviando a atenção cultual do essencial? Não era necessário purificar algumas devoções e reorientá-las no sentido cristocêntrico? Pode atribuir-se ao Concílio ou aos Papas alguns exageros, mesmo que lamentáveis? Esperava-se que o Concílio não discutisse, que repetisse a doutrina tradicional, que os bispos se limitassem a assinar?
Quanto ao concílio e postura subsequente, é de perguntar:
O Vaticano II alterou a visão cristã sobre Nossa Senhora? Dará a dita espiritualidade tradicional espaço a superstição e a mariolatria? Não será mais saudável abandonar devoções barrocas e abraçar o justo cristocentrismo? Que dizer de vocábulos como medalhas, consagração, escravidão, terços, coroinhas, novenas, romarias e litânias?
Ora, tanto a comemoração dos 50 anos de abertura do Concílio Vaticano II como os da sua clausura nos oferecem o ensejo de situar o verdadeiro sentido mariológico contido no capítulo VIII da constituição dogmática Lumen Gentium, sobre a Igreja, distribuído por cinco subcapítulos que abrangem os últimos 18 números do documento (52-69).
Ao longo dos séculos, várias formas de piedade cristã se desenvolveram em torno da Virgem Maria. É o amor a Nossa Senhora, estribado na sua indispensável função na economia da Salvação, que encontra sempre novos modos de se exprimir e de se propagar. Embora muitos dentro da própria Igreja tenham tentado afastar os fiéis de algumas práticas devocionais, sob o pretexto de devoções barrocas e excessivas, nada disto foi abolido ou posto de lado.
Nem o Vaticano II, o grande marco católico do século XX, representou uma rutura na visão do Magistério acerca do papel e função da bem-aventurada Virgem Santíssima na história da salvação. Ao invés, as linhas conciliares sobre Maria trouxeram consigo uma verdadeira riqueza espiritual para os fiéis, incentivando-os a reconhecer nelas um fundamento doutrinal sólido para a devoção e amor à Virgem Mãe.
O mencionado texto conciliar – sem pretender propor toda a doutrina acerca de Maria nem dirimir as questões ainda não cabalmente esclarecidas pelos teólogos oferece uma síntese de duas escolas marianas existentes à época: a escola eclesiológica e a escola cristológica. Estas duas tendências totalmente católicas, reunidas num Congresso Mariano Internacional, em 1958, em Lourdes, entraram num embate: enquanto a escola eclesiológica concebia Maria como a maior de entre os santos e, na expressão que o Concílio utilizou depois, como membro eminente e inteiramente singular da Igreja, a outra focava-se de modo especial no seu papel salvífico singular na história. A tendência cristológica condensava as suas formulações no antiquíssimo título de Maria, Mãe de Deus. Para estes teólogos, Jesus não estabeleceu Maria como mera intercessora, mas, tendo-a escolhido para vir ao mundo uma vez, assume-a como associada ao seu reino entre as pessoas. Ora, durante o Concílio, foi confiado a dois prelados o encargo da elaboração das linhas-força a respeito da Santíssima Virgem: o cardeal Franz König, de Viena, pela escola eclesiológica; e o cardeal Rufino Santos, das Filipinas, pela escola cristológica. No momento de optar por elaborar um documento específico para Nossa Senhora ou integrar a doutrina num outro documento, nomeadamente o que tratasse da Igreja, os padres conciliares, encabeçados por aqueles dois membros do sacro colégio cardinalício, estavam visivelmente divididos. Entre os mais de 2000 votantes, decidiu-se incluir o texto sobre Maria no documento sobre a Igreja por um diferença de apenas 17 votos.  
Não obstante, o resultado final da Constituição dogmática Lumen Gentium redundou num verdadeiro equilíbrio entre as duas escolas marianas. Pode dizer-se a Constituição sobre a Igreja integrou a mariologia na sua economia doutrinal e fixou um mínimo denominador comum da mariologia para o catolicismo. Assim, enquanto considera Maria a realização exemplar (o tipo) da Igreja, reconhece que, “de modo inteiramente singular, pela obediência, fé, esperança e ardente caridade, ela cooperou na obra do Salvador para a restauração da vida sobrenatural das almas”, chegando a chamá-la de nossa mãe na ordem da graça. E, se como refere a Lumen Gentium, “conservam os seus direitos as opiniões que nas escolas católicas livremente se propõem acerca daquela que na santa Igreja ocupa depois de Cristo o lugar mais elevado e também o mais próximo de nós”, também conservam os seus direitos os bispos e sobretudo os Sumos Pontífices.
E é aqui que entra o papel notável de Paulo VI.
Se as palavras do Concílio parecem pouco audazes – a Lumen Gentium diz que Maria é “Mãe dos membros (de Cristo)”, não utilizando a palavra Igreja –, no dia 21 de novembro de 1964, o Papa Paulo VI pronunciou um discurso no qual, surpreendentemente, proclamou Maria comoMãe da Igreja. Embora pertença ao Magistério ordinário, não se trata de um discurso rotineiro do Santo Padre, mas de um momento “solene”: o do encerramento da 3.ª sessão conciliar. Disse o Pontífice:
Para glória da Virgem e para nosso conforto, proclamamos Maria Santíssima 'Mãe da Igreja', isto é, de todo o Povo de Deus, tanto dos fiéis como dos pastores, que lhe chamam Mãe amorosíssima; e queremos que com este título suavíssimo seja a Virgem doravante honrada e invocada por todo o povo cristão”.
E insistiu:
“Quanto a nós, da mesma sorte que a convite do Papa João XXIII, a 11 de outubro de 1961, entrámos na aula conciliar juntamente 'cum Maria, Matre Jesu', assim também, ao terminar a terceira sessão, deste mesmo templo saímos no nome santíssimo e suavíssimo de Maria, Mãe da Igreja”.
Ora, o Papa Pio XII, na encíclica Humani Generis, tinha afirmado:
“Se os romanos pontífices em suas constituições pronunciam de caso pensado uma sentença em matéria controvertida, é evidente que, segundo a intenção e vontade dos mesmos pontífices, essa questão já não pode ser tida como objeto de livre discussão entre os teólogos”.
Assim, à luz do ensinamento de Pio XII, embora haja alguma dificuldade por parte de alguns teólogos em reconhecer Maria como Mater Ecclesiae, se há uma declaração do Magistério – mesmo que ordinário – ancorando e explicitando tal entendimento, o conselho é de que “o católico deve reconhecer o Papa como Pai, Pastor e Mestre universal, e estar unido a ele de espírito e coração”, pelo que se deve levar em conta o seu parecer, enquanto vigário de Cristo e chefe visível da Igreja.
Ante a Virgem Maria, é legítimo tomar partido pela escola eclesiológica – aparentemente, mais em voga hoje – ou pela escola cristológica. Não é possível, porém, rejeitando os postulados conciliares e evocando um desviante “espírito ecuménico”, relegar Maria – cuja memória todas as gerações exaltam, proclamando-a bem-aventurada – para um papel de simples coadjuvante na história da salvação.
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E, a 28 de março de 1965, Paulo VI, o Papa da Mater Ecclesiae, benzeu a “rosa de ouro” que – que tem inscrito em faixa “Paulus VI Deiparae patrocinium pro tota Ecclesia implorans auream Rosam Fatimensi templo D. D. - Die XIII Maii MCMLXV” – iria ser entregue ao Santuário de Fátima pelo cardeal Ferdinando Cento, legado pontifício, a 13 de maio, na peregrinação aniversária. Das palavras que o Papa proferiu no ato da bênção, destaca-se:
“Amados filhos, sentimos também Nós a alegria de procedermos hoje à bênção da Rosa de Ouro que destinámos ao Santuário de Fátima. Esta é o testemunho do Nosso paternal afeto que mantemos pela nobre Nação Portuguesa; é penhor da Nossa devoção que temos ao insigne Santuário, onde foi levantado à Mãe de Deus um Seu altar.”
Além das visitas que fez a vários santuários marianos, dos discursos e homilias que fez alusivas a Maria, deu relevo ao papel da Virgem no Credo do Povo de Deus (n.os 14 e 15 da homilia em que se insere o credo) e publicou duas encíclicas e três exortações apostólicas marcadamente marianas.
As encíclicas são: a Mense Maio (de 29 de abril de 1965), para implorar da Virgem Maria o êxito do Concílio e a Paz no mundo; e a Christi Matri Rosarii (de 15 de setembro de 1966), para a verdadeira e duradoura paz. As exortações apostólicas são: a Signum Magnum (de 13 de maio de 1967), consagrada ao culto da Virgem Maria, Mãe da Igreja e Modelo de todas as virtudes; a Recurrens mensis october (de 7 de outubro de 1967), a incitar o povo de Deus à recitação do rosário para obter a paz; e a Marialis Cultus (de 2 de fevereiro de 1974), para a reta ordenação e desenvolvimento do culto à Bem-aventurada Virgem Maria.
***Quando se exalta a piedade mariana de João Paulo II, expressa no seu Totus Tuus ou os belos discursos e orações de Bento XVI, bem como as insistentes referências discursivas e atitudinais de Francisco a Maria, é de justiça fazer menção explícita do Papa da Mater Eclesiae, Paulo VI, e do Vaticano II, que não esqueceu o papel de Maria na economia da Salvação quer do ângulo de Cristo quer do ângulo da Igreja. Maria acompanha Cristo na glória e é próxima da Igreja e dos seus membros nas alegrias e dramas, nos temores e esperanças.Por fim, prosseguir cum Maria in Ecclesia et per Mariam ad Iesum et ad homines.

2016.08.07 – Louro de Carvalho

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