segunda-feira, 15 de agosto de 2016

De olhos postos na Assunção de Maria

Celebra a Igreja Católica, a 15 de agosto, a solenidade da Assunção da Virgem Santa Maria. É a evocação solene do fim de Maria, cujo significado, apesar de misterioso, se torna deveras interpelante. As referências bíblicas a Maria, sendo escassas, apresentam alcance invulgar.
Lucas relata a anunciação em que o mensageiro divino A saúda como a Cheia de Graça e Ela se disponibiliza para cooperar com o Espírito Santo na encarnação do Verbo de Deus, assumindo, à ordem divina, a qualidade e o múnus de mãe do Senhor (cf Lc 1,26-38); descreve com pormenor os acontecimentos conexos com o nascimento de Jesus, acentuando que “Maria conservava todas estas coisas ponderando-as em seu coração” (cf Lc 2,1-20.51); refere as palavras de Simeão a Maria, aquando da apresentação no Templo, de que uma espada de dor trespassaria a sua alma (cf Lc 2,35); e sublinha a interpelação que Maria faz a Jesus, quando, depois de O procurarem pressurosamente, O encontram no Templo a dialogar com os doutores (cf Lc 2,41-52). Por sua vez, Mateus, depois de a mencionar na genealogia de Jesus, explica a José o que se passou com Maria, sua esposa, como o cumprimento da promessa messiânica (cf Mt 1,18-25) e refere a adoração dos magos, a fuga de José, Maria e o menino para o Egito e o regresso para Nazaré (cf Mt 2,11.13-14.20.21.).
Por estas indubitáveis referências, vemos como a donzela de Nazaré, levada pela fé na Palavra, se disponibilizou para o serviço de Deus pela função maternal enquanto o filho precisava dos seus cuidados de mãe. E Lucas, no capítulo 11 (cf Lc 11,27), mostra Jesus a sobrepor à mera maternidade corporal a lógica da fé, em que assenta a maternidade total. Ao elogio da mulher que do meio da multidão erguera a voz a clamar, “Felizes as entranhas que te trouxeram e os seios que te amamentaram!”, o Mestre-orador retorquiu: “Felizes, antes, os que escutam a Palavra de Deus e a põem em prática”.
A maternidade de Maria não se circunscreve ao Jesus físico: estende-se e intensifica-se nos discípulos, sobretudo com a oração e a espera do Espírito Santo. A mãe de Jesus estava com os discípulos (cf At 1,14). Razão tinha o Concílio Vaticano II ao reconhecer que Ela é mãe dos membros de Cristo (LG 53) e o Papa Paulo VI ao proclamá-La “Mãe da Igreja” (encerramento da III sessão conciliar). Com efeito, Ela esteve presente no Calvário. Os sinóticos falam de algumas mulheres sem especificarem a mãe de Jesus. Porém, João foca-se na visão de Jesus em relação à Sua Mãe e, percebendo o mandato, acolhe-o:
“Junto à cruz de Jesus estavam, de pé, sua mãe e a irmã da sua mãe, Maria, a mulher de Clopas, e Maria Madalena. Jesus, ao ver ali ao pé a sua mãe e o discípulo que Ele amava, disse à mãe: ‘Mulher, eis o teu filho!’. Depois, disse ao discípulo: ‘Eis a tua mãe!’. E, desde aquela hora, o discípulo acolheu-a como sua.” (Jo 19,25-28).
A Mãe, que viu, sofreu o transe redentor em comunhão íntima com o Filho, ganha agora a missão de mãe amorosa dos discípulos que A acolhem e dela recebem o apoio efetivo para a proclamação do apostolado da redenção. E, partir daqui, em casa dos discípulos há de ir apontando como em Caná: “Eles não têm vinho… pão, saúde, conforto, paz, alegria, amor”. E os discípulos e os que estão matriculados na escola do discipulado têm de escutar a recomendação da Mãe: “Fazei o que Ele vos disser” (cf Jo 2,3.5).
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Porém, o texto emblemático, porque inteiramente profético, é o Magnificat (Lc 1,46b-55), canto de louvor que Lucas coloca nos lábios de Maria após o anúncio de Gabriel e do Sim Mariano.
Este cântico da misericórdia anuncia a nova sociedade, onde não há marginalizados.
Os marginalizados tornam-se, por obra de Deus, incluídos. A própria missão angélica é ação inclusiva. Deus quer o homem do seu lado, a viver a sua vocação eterna. E Gabriel inicia o reatamento da amizade Deus-Homem rompida por Adão e Eva.  Aquela a quem o anjo se dirige a convidá-la a colaborar com a ação redentora de Deus, é jovem, pobre, moradora dum lugar desprezível e de má fama – Nazaré. Mas ela chama-se “Maria”, cujo significado originário e bem familiar é “Queridinha do Papá”. E o anjo não a chama já “Maria”, mas “Cheia de Graça”. O Senhor não está só perto dela, próximo dela, mas com ela envolvendo-a e dentro dela.  
Ao invés da postura de Eva, que se deixou aliciar pela ideia de ser igual ao Todo Poderoso ao aceitar o repto da Serpente, Maria declara-se “a Serva do Senhor” e, como Abraão, o Pai na fé, torna-se totalmente disponível para o que Ele lhe indicar. E, imediatamente ao momento em que sente que traz em si o Verbo, encarnado em seu seio, Maria apronta-se e vai servir Isabel. É o início da nova sociedade: os mais importantes servem os subalternos. Aliás, esta sociedade já havia sido iniciada quando o Verbo Se fez homem e/ou a Trindade fez do homem a sua morada permanente.
O Papa hoje, à recitação do Angelus ante a multidão reunida na Praça de São Pedro comenta o Evangelho do encontro entre Maria e Isabel (Lc 1,39-56), sublinhando que “Maria levantou-se e com pressa foi até a região montanhosa, a uma cidade de Judá”. Depois, faz o paralelo entre o que sucedeu então e o que hoje contemplamos:
“Naqueles dias, Maria corria em direção a uma pequena cidade próxima de Jerusalém para encontrar Isabel. Hoje contemplamo-La na sua estrada em direção à Jerusalém celeste, para encontrar finalmente o rosto do Pai e rever o rosto do seu Filho Jesus. Muitas vezes na sua vida terrena havia percorrido áreas montanhosas, até a última dolorosa estação do Calvário, associada ao mistério da paixão de Cristo. Agora, vemo-La chegar à montanha de Deus, “vestida como o sol, com a lua sob seus pés e, na cabeça, uma coroa de doze estrelas” e atravessar os limites da pátria celeste (cf Ap 12,1)”.
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A primeira leitura da Liturgia da Palavra da Missa da solenidade apresenta o grande sinal que apareceu no céu: a luta da Mulher contra o Dragão. A Mulher apresenta-se vestida de sol, isto é, de Deus (a luz originária) e com a lua sob os pés, significando sobrepor-se à noite de trevas e ser possuidora de eternidade. A coroa de doze estrelas (12 é o número das tribos de Israel e dos Apóstolos) que Lhe encima a cabeça identifica-a como a vitoriosa.
Muitos identificam esta mulher com a Virgem Maria, dando à luz Jesus. Porém, tratando-se de literatura não histórica, mas apocalíptica, teremos de a referenciar como a Igreja, que lutará pelos séculos contra as forças draconianas do mal. E a sua geração do Cristo místico, tão dolorosa, há de espelhar-se na maternidade de Maria, que serve de protótipo da Igreja, a qual com Cristo e sob o amparo de Maria será a vitoriosa descendência da Mulher do livro do Génesis (cf Gn 3,15). Já o Dragão significa as forças do mal que dificultam e até impedem o testemunho dos cristãos, desvirtuando e pervertendo a estrutura social e familiar e desejando engolir o que vai contra os seus interesses de morte. Mas, na sua impotência e limites, o Dragão só arrasta um terço das estrelas.
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Maria, a serva do Senhor, que vimos no Evangelho, é a Mulher que está totalmente identificada com Deus e, por isso, aparece no Apocalipse como a vencedora e protetora dos cristãos. Identificando-se com ela pelo sim dado a Deus, as comunidades cristãs são verdadeiras encarnações do Verbo, atuam no mundo como servas da Vida e lutando por ela, destroem a morte e geram filhos para Deus.
A perícopa da 1.ª Carta aos Coríntios, que se toma como 2.ª leitura, fala da ressurreição e do aniquilamento das forças hostis ao Reino, da destruição da cultura da morte. A reflexão de Paulo induz-nos a conclusão de que a tarefa de Cristo só estará completa quando Ele vencer o Mal através das nossas ações. Daí, a urgência de aceitarmos ser servos do Senhor como Maria, para que, pela nossa vida, Cristo complete sua Missão Redentora. A Senhora da Glória conduz-nos ao êxito, à vitória de Cristo, que destruiu o pecado e a morte e quis servir-Se da nossa participação no ato redentor. Sendo de Deus, sendo de Cristo, sendo da Vida, estaremos com Ele e com Ele reinaremos eternamente, no céu.
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Francisco diz que “Maria foi a primeira a acreditar no Filho de Deus e é a primeira a subir aos céus em corpo e alma”. Porque “acolheu e tomou conta de Jesus quando Ele ainda era criança”, passou a ser a primeira acolhida pelos braços do Filho “para ser levada ao Reino eterno do Pai”.
Moça humilde e simples duma cidade perdida na periferia do Império, “porque acolheu e viveu o Evangelho, foi admitida por Deus para estar pela eternidade ao lado do trono do Filho”. Ela própria profetizou que o Todo-poderoso “tira os poderosos dos tronos e eleva os humildes”.
A Assunção de Maria – diz o Papa – é, pois, grande mistério que diz respeito a todos, ao nosso futuro. Maria precede-nos na estrada para que são encaminhados os que, diante do Batismo, ligaram a sua vida a Jesus, como Maria O entrelaçou com a sua própria vida.
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Leonardo Boff, no seu livro O Rosto Materno de Deus (Vozes: 1979), comentando a Assunção de Maria (diz ele, após a sua morte e ressurreição), como fruto do interesse dos cristãos desde os séculos V e VI, não por “curiosidade frívola”, mas como “expressão de amor”, mostra como a fé, na busca da verdade até à definição dogmática de Pio XII, assegura que a Assunção é efetivamente o “fim” da Mãe de Deus, não como termo cronológico, mas como culminância de atributo e dom. Por isso, interroga-se sobre o significado da Assunção para Maria, para Deus e para nós.
Para Maria, significa o definitivo encontro com o Filho que A precedeu na glória: Mãe e Filho vivem agora o amor e união inimagináveis e transparentes e em íntima relação com o Pai e o Espírito Santo. Maria já não precisa de crer. A Deus, a assunção de Maria permite uma relação mais profunda com Ela, sendo Ela agora “o sujeito capaz de acolher a comunicação pessoal e absoluta de Deus”. Realiza-se entre Deus e Ela a união hipostática, a inauguração da “história da síntese suprema, do retorno absoluto e da unidade sem confusão”. Para nós, a assunção mostra que “a Mãe de Deus, já glorificada no céu na totalidade da pessoa (corpo e alma) é imagem e primícias da Igreja que há de atingir a sua proporia perfeição (LG 68). Maria mostra-nos que “já vive agora, em corpo e alma, o que nós havemos de viver quando atingirmos o céu”. Por isso, de olhos postos nela, termos de afinar as marcas da nossa peregrinação no serviço solidário, no culto da Palavra, na oração, na similitude com Cristo. 
A solenidade de hoje pré-anuncia, assim, os “novos céus e a nova terra”, com a vitória de Cristo ressuscitado sobre a morte e a derrota definitiva do mal. Para tanto, a exaltação da humilde mulher da Galileia, expressada no Magnificat, torna-se canto da humanidade, que se compraz em ver o Senhor que se inclina misericordiosamente sobre todos os homens e todas as mulheres, humildes criaturas, e assume com Ele todos no céu.
Mas ainda há tanto que fazer!...

2016.08.15 – Louro de Carvalho

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