sexta-feira, 26 de agosto de 2016

A guerra do burkini

A questão do burkini, que está presentemente a mobilizar canetas, vozes e movimentos, não é dissociável dos contextos que afluem a justificar tudo e mais alguma coisa.
A França, enquanto pátria das liberdades, tornou-se lugar apetecível para muitos que esperavam trabalho, tolerância, integração e satisfação do desejo de continuarem com as suas culturas e religiões (quanto a religião, têm de excecionar-se os que alinharam pela maré do indiferentismo). Ora, a França, como qualquer país rico tudo tolera enquanto precisa das pessoas, do seu trabalho, do seu engenho e da sua exibição como mostra de pátria das liberdades. Não obstante, ciosa das suas leis e costumes, obriga sob pretexto da igualdade ao cumprimento, pelo menos aparente, das leis e posturas. Porém, não faz nem se preocupa em fazer a integração de quem quer que seja. Aceita, sim, a presença pública e a intervenção nos diversos quadros políticos – nacionais, regionais e municipais – de quem alinhe, se amolde. Além disso, sabe que, mercê das sucessivas ondas migratórias, lhe é difícil estabelecer com clareza quem é mesmo francês, pelo que se sente condenada a tolerar mais do que aquilo que pretendia.
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 A República Francesa tem já história no banimento de símbolos evocadores de religiões. Em 1989, Lionel Jospin, Ministro da Educação de François Mitterrand, proibiu o chador (veste que cobre o corpo todo, exceto rosto), usado pelas raparigas muçulmanas, nas escolas públicas.
A liberdade de expressão e de religião foram juguladas pela pretensa identidade do Estado. É verdade que a primeira parte do art.º 1.º da Constituição francesa estabelece:
“A França é uma República indivisível, laica, democrática e social. Assegura a igualdade de todos os cidadãos perante a lei sem distinção de origem, raça ou religião. Respeita todas as crenças. A sua organização é descentralizada.”
Argumentar que o Estado é laico tem em conta um princípio identitário tal como o da indivisibilidade e o da descentralização, o da igualdade e o do respeito por todas as crenças. A laicidade postula o princípio do governo do povo, pelo povo e para o povo, sem sujeição às religiões, mas respeitando-as e, sobretudo, não as combatendo. A índole aconfessional do Estado e do ensino público não significa anticonfessionalidade religiosa. Desta forma, as instituições públicas não devem tomar a iniciativa de exibir símbolos religiosos, o que não quer dizer que não permitam a sua utilização pelos cidadãos seus utentes, desde que seja assegurada a sã convivência. Porém, foi em nome do predito princípio identitário do Estado que foi proibido o uso do chador, por ser considerado um símbolo religioso. Mais se disse que, em França, os muçulmanos são franceses, pelo que nos espaços públicos da República francesa não podem usar o chador porque é um símbolo religioso e isso ofende os princípios identitários do país. Por outro lado, há que respeitar as leis do país onde se está, sendo que todas as religiões são iguais, pelo que nenhuma se deve manifestar de forma excessiva.
Em 2004, a questão foi retomada e reforçada com a adoção da lei que proíbe a adoção de “símbolos ostensivos” nas escolas públicas, especificando o véu islâmico, a “kippa” judaica e as cruzes cristãs. E, em 2011, foi proibido o uso da burca e do véu integral em locais públicos.
Trata-se de proibições implementadas em nome de um dos princípios republicanos constitutivos da identidade nacional, não em nome da segurança. Em 1989, ainda estavam longe de ocorrer os atentados de 11 de setembro de 2001 e, em 2004, as organizações terroristas islâmicas de hoje ainda não estavam ativas nos países ocidentais. E, sobretudo, a lei proibitória não invocava qualquer princípio atinente à segurança.
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Hoje, a proibição do burkini é sustentada nas “questões de segurança” e da não exibição dum símbolo de grupo extremista que tem aterrorizado a população. Foi com base neste pressuposto que uns trinta decretos municipais vieram proibir o uso do burkini. E porquê?
A polémica estalou a 28 de julho passado, quando a câmara municipal de Cannes decidiu proibir a utilização deste fato de banho de corpo inteiro. No encalço de tal decisão, várias autarquias do sul de França decidiram no mesmo sentido. Segundo a AMI (Amnistia Internacional),
“Alguns daqueles decretos municipais apresentam argumentos de segurança, de higiene e de ordem pública, que são manifestamente enganadores. Outros, ainda, justificam-se com o propósito de defender os direitos das mulheres. Porém, a retórica em torno da aprovação daqueles decretos tem vindo a estar centrada, e de forma universal, no estereotipar de uma minoria já profundamente estigmatizada”
As autoridades aduzem, ainda, que o burkini “manifesta declaradamente adesão a uma religião numa altura em que a França e alguns lugares de culto são alvo de ataques terroristas”, sendo que aquele fato de banho é “passível de ofender as convicções religiosas das outras utilizadoras da praia”.
Esta proibição desencadeou uma onda de manifestações um pouco por toda a França e até noutros países e a polémica agravou-se quando, há dias, uma mulher muçulmana foi obrigada por agentes da polícia a despir-se numa praia em Nice. As autoridades multaram a mulher por alegadamente não estar a usar “um traje adequado à boa moral e ao secularismo” no desrespeito claro por uma expressa determinação legal. De acordo com algumas testemunhas oculares, a mulher nem estava a utilizar um burkini, mas umas calças, uma túnica e um véu.
O antigo presidente francês Nicolas Sarkozy, no pressuposto de que irá “ser o presidente que restabelece a autoridade do Estado”, veio manifestar-se inequivocamente pela proibição total do burkini, declarando expressamente:
“Recuso-me a deixar que o burkini se imponha nas praias e piscinas de França… Devia haver uma lei para o banir em todo o território”.
Por seu turno, os membros do Governo mostram-se divididos em relação à posição sobre o assunto. A ministra da Educação veio pedir que não se atirem “achas para a fogueira”, mas Manuel Valls já apoiou os presidentes de câmara que implementaram a proibição.
E a AMI, no momento em que as autoridades judiciais francesas estavam a analisar uma contestação à medida, considerou discriminatória esta proibição e classificou-a como um ataque à liberdade de expressão e religiosa das mulheres. A este respeito, o diretor da AMI para a Europa, John Dalhuisen, refere em comunicado:
“O caso que foi agora submetido oferece uma oportunidade à justiça francesa para anular uma proibição que é discriminatória e que está a alimentar e é alimentada por preconceitos e intolerância”.
Segundo este responsável da AMI, trata-se duma oportunidade para as autoridades francesas “abandonarem” a medida que não protege os direitos das mulheres, antes é “invasiva e discriminatória e restringe as escolhas das mulheres, viola os seus direitos e conduz a abusos”.
John Dalhuisen entende que, se as autoridades francesas estão “verdadeiramente empenhadas em proteger a liberdade de expressão e os direitos das mulheres, estas proibições abusivas têm de ser imediatamente anuladas e de forma incondicional”.
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A questão pode ter ficado resolvida, pois o Conselho de Estado – a mais alta instância do tribunal administrativo em França – decidiu hoje, dia 26, suspender a proibição da utilização do burkini em Villeneuve-Loubet, decisão que fará jurisprudência para todos os casos de proibição. A decisão, segundo o jornal Le Figaro, foi tomada após a apresentação de requerimento pela Liga dos Direitos Humanos e pelo Coletivo Contra a Islamofobia, a exigir a suspensão da proibição do uso de burkini naquela estância balnear.
De acordo com o comunicado do Conselho de Estado, “a ordem contestada implicava uma séria e manifestamente ilegal infração das liberdades fundamentais“. Por isso, a decisão “cancela a ordem do juiz do tribunal administrativo de Nice, que aprovou o texto, e suspende esse artigo”.
Os juízes partiram para esta deliberação com a premissa de entender se a proibição, que de facto vai contra o princípio da liberdade religiosa, era proporcional ao risco para a ordem pública, que o tribunal de Nice invocou após o assassinato dum padre em Saint-Étienne, a 26 de julho.
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Faz sentido e é eficaz a proibição do burkini e dos demais símbolos islâmicos ou outros?
O burkini, para uns, representa um símbolo duma religião extremista; para outros é apenas uma escolha de vestuário. Mas esta peça de vestuário tem força suficiente para alimentar discussões inflamadas há semanas consecutivas. E o burkini não é comparável ao hábito de freira? – perguntam alguns.
Ora, a questão tem a ver com o rosto. A proibição de o tapar tem subjacente um argumento de segurança. Todos os rostos devem estar visíveis em público para salvaguardar determinadas situações. Assim, em assalto ou em roubo, pode ser preciso identificar rostos através de imagens de câmaras de vigilância no espaço público. Por isso, ninguém deve andar de rosto tapado por uma questão de segurança, dizem uns; a proibição do burkini é uma reação extrema em nome duma hiperinclusividade que está a falhar, pelo que nos devemos afastar daquilo que criticamos – o que nos diferencia como sociedade aberta, defendem outros.
No burkini, não colhe o argumento securitário porque a cara não está tapada. Não obstante, o corpo coberto, do cabelo aos pés, incomoda muitos. Depois, ressurge a questão da laicização, segundo a qual “a praia é um espaço público e as pessoas têm direito de ir à praia sem estarem rodeadas por símbolos religiosos”. Porém, alguns como Filipe Pathé Duarte, autor do livro “Jihadismo Global – Das Palavras aos Atos”, entendem que o burkini não é um símbolo de propaganda dos radicais islâmicos, esclarecendo:
 “Uma coisa é o islamismo (ativismo político de retórica islâmica), outra é o Islão (religião). Justificado no primeiro, não devemos impedir a prática do segundo. Pomo-nos em causa. Esta laicidade está a tornar-se antirreligiosa e anti-islâmica.”
Depois, a proibição do burkini poderá ser utilizada por radicais islâmicos “como perigosa arma de arremesso”. Por outro lado, Mónica Ferro, professora universitária no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, da Universidade de Lisboa, interroga-se:
“Quem somos nós para dizer àquelas mulheres que elas estão mais bem vestidas de uma maneira ou de outra? Aquelas pessoas querem impor-nos a sua forma de mundo ou somos nós que queremos impor a nossa?”
Sobre a pretensa eficácia daquele exótico (para nós) fato de banho, Mónica Ferro, emite opinião, em que é secundada por Carlos Gaspar e por Filipe Pathé Duarte, segundo a qual a eficácia é nula:
“Se nós as proibimos de estar na praia assim, elas vão deixar de ir à praia. E nós vamos deixar de interagir com elas, vamos deixar de as ver, vamos deixar de falar nelas. A proibição não vai libertar mulher nenhuma. Vai afastá-las com a ilusão de que a lei resultou.”
Pathé Duarte acha a medida “uma clara falta de bom senso político” e relaciona-a com o medo decorrente dos recentes atentados terroristas.
“É uma resposta precipitada perante o medo da violência jihadista. A Frente Nacional (extrema-direita francesa) adotou a laicidade como uma das suas bandeiras em nome duma homogeneidade étnica e comunitária de França.”
Mónica Ferro diz que a burca e o burkini nos lembram o radicalismo islâmico, fazendo-nos sentir inseguros por não sabermos quem está debaixo daquela peça de tecido.
Na base da proibição do uso do burkini poderia estar a plena integração de todas as religiões e a não exacerbação de nenhuma. Mas, segundo Gaspar, a lei não resulta, “só acentua os problemas de diferenciação”, pois leis como esta isolam a comunidade em vez de a integrarem. Com efeito, a comunidade não vai deixar de se comportar como os ensinamentos mandam. Vai apenas deixar de o fazer publicamente. Assim, o predito investigador sustenta:
“As pessoas, quando são proibidas de usar símbolos que consideram adequados à sua religião, tendem a não obedecer às proibições e passam a fazê-lo apenas em privado, porque se sentem marginalizadas, perseguidas e discriminadas, quando o objetivo devia ser integrar. Esta lei não é eficiente.”
Gaspar, além disso, sustenta que a proibição faz o jogo dos que pretendem isolar a comunidade islâmica da sociedade francesa, revelando uma vontade de mostrar que “somos diferentes deles”. Ora, isto não é integração.
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Também os investigadores fazem uma diferença, a meu ver, artificiosa entre o burkini e o hábito de freira. Não sei porque não incluem o de frade… Dizem eles que, se uma mulher que dedica a vida à religião vai à praia, o faz vestida com o hábito que só lhe deixa a cara destapada. E questionam porque nos indignamos com uma muçulmana de burkini e não com uma freira católica de hábito. Pathé Duarte admite que em conceito é a mesma coisa. Porém, julga que na ferira há um lastro identitário e simbólico, que justifica o hábito e refere que a freira faz parte do nosso quotidiano, habituando-nos nós a conviver com ela, pois, ela, “no nosso imaginário, não representa diferença”.
Ora, do meu ponto de vista, a freira representa mesmo diferença, que vulgarmente é aceite, mas que muitos desprezam, ao passo que a mulher muçulmana representa uma diferença que nós temos dificuldade em tolerar.
Gaspar reforça a ideia da diferença assegurando que efetivamente “há uma distinção”, pois, as freiras sempre andaram de hábito, o que constitui tradição. Porém, o burkini é uma novidade, tendo havido alguém que intentou levar esta construção da identidade muçulmana para as praias – pretensão a que a República francesa reagiu. Todavia, Gaspar esquece que muitas das freiras já não envergam o hábito e, sobretudo, não o usam em praia.
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Voltando um pouco ao início, não se afigura legítimo que a identidade do Estado, ficção jurídico-constitucional, embora relevante, se sobreponha às liberdades, garantias e direitos fundamentais. E trânsito livre, religião e expressão são constituintes basilares deste campo. Nada justifica a intolerância, a resposta a um fundamentalismo com outro fundamentalismo ou, ainda, o estabelecimento de diferenças fictícias, só porque mais convenientes. Ademais, a segurança tem de obter-se por meios bem mais eficazes que a proibição de trajes e símbolos, nomeadamente através da: prevenção, vigilância, punição do crime, garantia de pão, trabalho, educação, saúde, segurança social e integração sem descaraterização.

2016.08.26 – Louro de Carvalho

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