A
questão do burkini, que está presentemente
a mobilizar canetas, vozes e movimentos, não é dissociável dos contextos que
afluem a justificar tudo e mais alguma coisa.
A
França, enquanto pátria das liberdades, tornou-se lugar apetecível para muitos
que esperavam trabalho, tolerância, integração e satisfação do desejo de
continuarem com as suas culturas e religiões (quanto a religião, têm de excecionar-se os que alinharam pela maré do
indiferentismo). Ora, a França, como qualquer país rico tudo
tolera enquanto precisa das pessoas, do seu trabalho, do seu engenho e da sua
exibição como mostra de pátria das liberdades. Não obstante, ciosa das suas
leis e costumes, obriga sob pretexto da igualdade ao cumprimento, pelo menos
aparente, das leis e posturas. Porém, não faz nem se preocupa em fazer a
integração de quem quer que seja. Aceita, sim, a presença pública e a
intervenção nos diversos quadros políticos – nacionais, regionais e municipais
– de quem alinhe, se amolde. Além disso, sabe que, mercê das sucessivas ondas
migratórias, lhe é difícil estabelecer com clareza quem é mesmo francês, pelo
que se sente condenada a tolerar mais do que aquilo que pretendia.
***
A República Francesa tem já história no banimento de
símbolos evocadores de religiões. Em 1989, Lionel Jospin, Ministro da Educação
de François Mitterrand, proibiu o chador (veste que cobre
o corpo todo, exceto rosto), usado pelas raparigas muçulmanas, nas escolas
públicas.
A liberdade
de expressão e de religião foram juguladas pela pretensa identidade do Estado.
É verdade que a primeira parte do art.º 1.º da Constituição francesa
estabelece:
“A França é uma República indivisível, laica,
democrática e social. Assegura a igualdade de todos os cidadãos perante a lei
sem distinção de origem, raça ou religião. Respeita todas as crenças. A sua
organização é descentralizada.”
Argumentar
que o Estado é laico tem em conta um princípio identitário tal como o da
indivisibilidade e o da descentralização, o da igualdade e o do respeito por
todas as crenças. A laicidade postula o princípio do governo do povo, pelo povo
e para o povo, sem sujeição às religiões, mas respeitando-as e, sobretudo, não
as combatendo. A índole aconfessional do Estado e do ensino público não
significa anticonfessionalidade religiosa. Desta forma, as instituições
públicas não devem tomar a iniciativa de exibir símbolos religiosos, o que não
quer dizer que não permitam a sua utilização pelos cidadãos seus utentes, desde
que seja assegurada a sã convivência. Porém, foi em nome do predito princípio
identitário do Estado que foi proibido o uso do chador, por ser considerado um símbolo religioso. Mais se disse
que, em França, os muçulmanos são franceses, pelo que nos espaços públicos da
República francesa não podem usar o chador porque é um símbolo religioso e isso
ofende os princípios identitários do país. Por outro lado, há que respeitar as
leis do país onde se está, sendo que todas as religiões são iguais, pelo que
nenhuma se deve manifestar de forma excessiva.
Em 2004, a
questão foi retomada e reforçada com a adoção da lei que proíbe a adoção de
“símbolos ostensivos” nas escolas públicas, especificando o véu islâmico, a “kippa” judaica e as cruzes cristãs. E,
em 2011, foi proibido o uso da burca
e do véu integral em locais públicos.
Trata-se de
proibições implementadas em nome de um dos princípios republicanos constitutivos
da identidade nacional, não em nome da segurança. Em 1989, ainda estavam longe
de ocorrer os atentados de 11 de setembro de 2001 e, em 2004, as organizações terroristas
islâmicas de hoje ainda não estavam ativas nos países ocidentais. E, sobretudo,
a lei proibitória não invocava qualquer princípio atinente à segurança.
***
Hoje, a proibição
do burkini é sustentada nas “questões
de segurança” e da não exibição dum símbolo de grupo extremista que tem
aterrorizado a população. Foi com base neste pressuposto que uns trinta decretos municipais vieram
proibir o uso do burkini. E
porquê?
A polémica estalou a 28 de julho passado,
quando a câmara municipal de Cannes decidiu proibir a utilização deste fato de banho
de corpo inteiro. No encalço de tal decisão, várias autarquias do sul de França
decidiram no mesmo sentido. Segundo a AMI (Amnistia Internacional),
“Alguns daqueles decretos municipais apresentam argumentos de segurança, de higiene e de
ordem pública, que são manifestamente enganadores. Outros, ainda,
justificam-se com o propósito de defender os direitos das mulheres. Porém, a retórica em torno da aprovação daqueles
decretos tem vindo a estar centrada, e de forma universal, no estereotipar de
uma minoria já profundamente estigmatizada”
As
autoridades aduzem, ainda, que o burkini “manifesta declaradamente
adesão a uma religião numa altura em que a França e alguns lugares de culto são
alvo de ataques terroristas”, sendo que aquele fato de banho é “passível de ofender as convicções religiosas das
outras utilizadoras da praia”.
Esta proibição
desencadeou uma onda de manifestações um pouco por toda a França e até noutros
países e a polémica agravou-se quando, há dias, uma mulher muçulmana foi
obrigada por agentes da polícia a despir-se numa praia em Nice. As autoridades
multaram a mulher por alegadamente não estar a usar “um traje adequado à boa
moral e ao secularismo” no desrespeito claro por uma expressa determinação legal.
De acordo com algumas testemunhas oculares, a mulher nem estava a utilizar um burkini,
mas umas calças, uma túnica e um véu.
O antigo
presidente francês Nicolas Sarkozy, no pressuposto de que irá “ser o presidente
que restabelece a autoridade do Estado”, veio manifestar-se inequivocamente
pela proibição total do burkini,
declarando expressamente:
“Recuso-me a deixar que o burkini se
imponha nas praias e piscinas de França… Devia haver uma lei para o banir em
todo o território”.
Por seu
turno, os membros do Governo mostram-se divididos em relação à posição sobre o
assunto. A ministra da Educação veio pedir que não se atirem “achas para a
fogueira”, mas Manuel Valls já apoiou os presidentes de câmara que
implementaram a proibição.
E a AMI, no
momento em que as autoridades judiciais francesas estavam a analisar uma
contestação à medida, considerou discriminatória esta proibição e classificou-a
como um ataque à liberdade de expressão e religiosa das mulheres. A este
respeito, o diretor da AMI para a Europa, John Dalhuisen, refere em comunicado:
“O caso que foi agora submetido oferece uma oportunidade à justiça francesa
para anular uma proibição que é discriminatória e que está a alimentar e é
alimentada por preconceitos e intolerância”.
Segundo este
responsável da AMI, trata-se duma oportunidade para as autoridades francesas
“abandonarem” a medida que não protege os direitos das mulheres, antes é
“invasiva e discriminatória e restringe as escolhas das mulheres, viola os seus
direitos e conduz a abusos”.
John
Dalhuisen entende que, se as autoridades francesas estão “verdadeiramente
empenhadas em proteger a liberdade de expressão e os direitos das mulheres,
estas proibições abusivas têm de ser imediatamente anuladas e de forma
incondicional”.
***
A questão pode
ter ficado resolvida, pois o Conselho de Estado – a mais alta instância do
tribunal administrativo em França – decidiu hoje, dia 26, suspender a proibição
da utilização do burkini em
Villeneuve-Loubet, decisão que fará jurisprudência para todos os casos de
proibição. A decisão, segundo o jornal Le
Figaro, foi tomada após a apresentação de requerimento pela Liga dos Direitos Humanos e pelo Coletivo Contra a Islamofobia, a exigir a suspensão da proibição do uso
de burkini naquela estância balnear.
De acordo
com o comunicado do Conselho de Estado, “a ordem contestada implicava uma séria
e manifestamente ilegal infração
das liberdades fundamentais“. Por isso, a decisão “cancela a ordem do
juiz do tribunal administrativo de Nice, que aprovou o texto, e suspende esse
artigo”.
Os juízes
partiram para esta deliberação com a premissa de entender se a proibição, que
de facto vai contra o princípio da liberdade religiosa, era proporcional ao
risco para a ordem pública, que o tribunal de Nice invocou após o assassinato dum
padre em Saint-Étienne, a 26 de julho.
***
Faz sentido
e é eficaz a proibição do burkini e dos
demais símbolos islâmicos ou outros?
O burkini, para
uns, representa um símbolo duma religião extremista; para outros é apenas uma escolha
de vestuário. Mas esta peça de vestuário tem força suficiente para alimentar
discussões inflamadas há semanas consecutivas. E o burkini não é comparável ao hábito de freira? – perguntam alguns.
Ora, a
questão tem a ver com o rosto. A proibição de o tapar tem subjacente um argumento
de segurança. Todos os rostos devem estar visíveis em público para salvaguardar
determinadas situações. Assim, em
assalto ou em roubo, pode ser preciso identificar rostos através de imagens de
câmaras de vigilância no espaço público. Por isso, ninguém deve andar de
rosto tapado por uma questão de segurança, dizem uns; a proibição do burkini é uma reação extrema em nome
duma hiperinclusividade que está a falhar, pelo que nos devemos afastar daquilo
que criticamos – o que nos diferencia como sociedade aberta, defendem outros.
No burkini, não colhe o argumento securitário
porque a cara não está tapada. Não obstante, o corpo coberto, do cabelo aos pés,
incomoda muitos. Depois, ressurge a questão da laicização, segundo a qual “a praia é um espaço público e as pessoas têm
direito de ir à praia sem estarem rodeadas por símbolos religiosos”.
Porém, alguns como Filipe Pathé Duarte, autor do livro “Jihadismo
Global – Das Palavras aos Atos”,
entendem que o burkini não é um
símbolo de propaganda dos radicais islâmicos, esclarecendo:
“Uma coisa é o islamismo (ativismo
político de retórica islâmica), outra é o Islão (religião).
Justificado no primeiro, não devemos impedir a prática do segundo. Pomo-nos em
causa. Esta laicidade está a tornar-se antirreligiosa e anti-islâmica.”
Depois, a proibição do burkini poderá
ser utilizada por radicais islâmicos “como perigosa arma de arremesso”. Por outro lado, Mónica Ferro, professora
universitária no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, da
Universidade de Lisboa, interroga-se:
“Quem somos nós para dizer àquelas mulheres que elas estão mais bem
vestidas de uma maneira ou de outra? Aquelas pessoas querem impor-nos a sua
forma de mundo ou somos nós que queremos impor a nossa?”
Sobre a pretensa
eficácia daquele exótico (para nós) fato de banho, Mónica Ferro, emite opinião, em que é secundada por
Carlos Gaspar e por Filipe Pathé Duarte, segundo a qual a eficácia é nula:
“Se nós as proibimos de estar na praia assim, elas vão deixar de ir à
praia. E nós vamos deixar de interagir com elas, vamos deixar de as ver, vamos
deixar de falar nelas. A proibição
não vai libertar mulher nenhuma. Vai afastá-las com a ilusão de que a lei
resultou.”
Pathé Duarte
acha a medida “uma clara falta de bom senso político” e relaciona-a com o medo
decorrente dos recentes atentados terroristas.
“É uma resposta precipitada perante
o medo da violência jihadista.
A Frente Nacional (extrema-direita francesa) adotou a laicidade como uma das
suas bandeiras em nome duma homogeneidade étnica e comunitária de França.”
Mónica Ferro
diz que a burca e o burkini nos lembram o radicalismo
islâmico, fazendo-nos sentir inseguros por não sabermos quem está debaixo
daquela peça de tecido.
Na base da
proibição do uso do burkini poderia
estar a plena integração de todas as religiões e a não exacerbação de nenhuma.
Mas, segundo Gaspar, a lei não resulta, “só acentua os problemas de diferenciação”, pois leis como esta isolam a
comunidade em vez de a integrarem. Com efeito, a comunidade não vai
deixar de se comportar como os ensinamentos mandam. Vai apenas deixar de o
fazer publicamente. Assim, o predito investigador sustenta:
“As pessoas, quando são proibidas de usar símbolos que consideram adequados
à sua religião, tendem a não obedecer às proibições e passam a fazê-lo apenas
em privado, porque se sentem marginalizadas, perseguidas e discriminadas,
quando o objetivo devia ser integrar. Esta lei não é eficiente.”
Gaspar, além
disso, sustenta que a proibição faz o jogo dos que pretendem isolar a
comunidade islâmica da sociedade francesa, revelando uma vontade de mostrar que
“somos diferentes deles”. Ora, isto não é integração.
***
Também os
investigadores fazem uma diferença, a meu ver, artificiosa entre o burkini e o hábito de freira. Não sei
porque não incluem o de frade… Dizem eles que, se uma mulher que dedica a vida
à religião vai à praia, o faz vestida com o hábito que só lhe deixa a cara destapada.
E questionam porque nos indignamos com uma muçulmana de burkini e não com uma freira católica de hábito. Pathé Duarte
admite que em conceito é a mesma coisa. Porém, julga que na ferira há um lastro
identitário e simbólico, que justifica o hábito e refere que a freira faz parte
do nosso quotidiano, habituando-nos nós a conviver com ela, pois, ela, “no nosso imaginário, não representa
diferença”.
Ora, do meu
ponto de vista, a freira representa mesmo diferença, que vulgarmente é aceite,
mas que muitos desprezam, ao passo que a mulher muçulmana representa uma
diferença que nós temos dificuldade em tolerar.
Gaspar
reforça a ideia da diferença assegurando que efetivamente “há uma distinção”,
pois, as freiras sempre andaram de
hábito, o que constitui tradição. Porém, o burkini é uma novidade,
tendo havido alguém que intentou levar esta construção da identidade muçulmana
para as praias – pretensão a que a República francesa reagiu. Todavia, Gaspar
esquece que muitas das freiras já não envergam o hábito e, sobretudo, não o
usam em praia.
***
Voltando um
pouco ao início, não se afigura legítimo que a identidade do Estado, ficção
jurídico-constitucional, embora relevante, se sobreponha às liberdades,
garantias e direitos fundamentais. E trânsito livre, religião e expressão são
constituintes basilares deste campo. Nada justifica a intolerância, a resposta
a um fundamentalismo com outro fundamentalismo ou, ainda, o estabelecimento de
diferenças fictícias, só porque mais convenientes. Ademais, a segurança tem de
obter-se por meios bem mais eficazes que a proibição de trajes e símbolos,
nomeadamente através da: prevenção, vigilância, punição do crime, garantia de
pão, trabalho, educação, saúde, segurança social e integração sem
descaraterização.
2016.08.26 – Louro de Carvalho
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