domingo, 14 de agosto de 2016

A Batalha de Aljubarrota – 1385

Passa hoje, dia 14 de agosto, o 631.º aniversário da Batalha de Aljubarrota, batalha que marca o auge e momento decisivo da crise política de 1383-1385 e da concomitante guerra luso-castelhana. Num tempo de depressão coletiva, talvez seja oportuno recordar o feito épico.
Depois de levantar o cerco de Lisboa, D. João I de Castela voltou a reunir tropas para tentar de novo a conquista de Portugal, a fim de fazer valer o direito, por morte de D. Fernando, de sua esposa D. Beatriz à coroa portuguesa nos termos do tratado de Salvaterra. E, a 13 de agosto os Castelhanos chegavam a Leiria, tentando adiar o encontro com as tropas de D. João I de Portugal para o dia 14.
Nuno Álvares Pereira, vendo a superioridade numérica do inimigo, inverteu rapidamente as suas frentes de batalha, posicionando-as na estrada de Leiria-Lisboa. E as tropas portuguesas, embora com pior equipamento militar, derrotaram os Castelhanos mercê da qualidade do comando e das táticas indicadas pelo Condestável. Durante três dias se manteve a hoste lusa no campo de Aljubarrota, em sinal de vitória, em conformidade com o espírito cavaleiresco do tempo.
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De facto, D. João I, mestre de Avis, recém-aclamado Rei de Portugal nas Cortes de Coimbra (março de 1385), tentava em julho conquistar Torres Novas e Alenquer, enquanto os Castelhanos, atravessada a fronteira da Beira, se dirigiam para Coimbra, que não tentaram tomar, prosseguindo para Lisboa.
Reunidas em Abrantes, as tropas o rei português e as do seu Condestável Nuno Álvares Pereira, decidiram, depois da hesitação de alguns, intercetar os invasores, avançando até Tomar e Porto de Mós, ao mesmo tempo que os Castelhanos chegavam a Leiria. E, a 13 de agosto, os portugueses viram surgir das bandas de Leiria as avançadas castelhanas.
Como o sol já declinava e as suas tropas vinham cansadas, o rei de Castela, doente e numas andas, adiara o ataque para o dia subsequente. E, a 14, vendo o acanhado do seu acampamento, o comandante castelhano – cujos homens todo o dia 13 se haviam mantido formados à torreira do sol e sem comer – determinou fazer desfilar as suas incontáveis tropas pelo flanco esquerdo da posição, para evitar subir a colina íngreme e no duplo intuito de cortar de Lisboa os portugueses e paralisá-los de terror. Esta orgulhosa parada durou meio dia e assombrou a bisonha peonagem dos concelhos, mal armada, mal defendida em suas armaduras de ferro. Porém, o Condestável via a manobra castelhana e, sem se abalar, inverteu de súbito as suas frentes de batalha “de como as tinha ordenado com as costas para Leiria e as tornou contra onde estavam seus inimigos”, posicionando-as na estrada de Leiria-Lisboa, por Alcobaça, entre dois ribeiros a sul da Cavalaria.
Segundo os melhores cálculos, o Condestável dispunha de 1700 lanças, 800 besteiros e 4000 peões, ao todo 6500 homens, fortemente concentrados na sua posição, admiravelmente guarnecida. Por seu turno, os castelhanos traziam 5000 lanças, entre as quais muitos cavaleiros gascões e franceses, 2000 cavalos, 8000 besteiros e 15000 peões, num total de 30000 homens, com 700 carroças, milhares de animais carregando mantimentos e munições, 8000 cabeças de gado e muitos pajens e outra gente de serventia. Tão extenso e desordenado era o comboio castelhano que ainda a cauda da coluna vinha a léguas de distância quando a cavalaria da vanguarda se defrontou com os Portugueses.
Entretanto, o Condestável dispôs as suas forças em três alas, com uma forte reserva à retaguarda.
A vanguarda, de 600 lanças, alinhava-se com a frente para o sul, em torno do pendão do Condestável, a meio da charneca, terreno pouco acidentado, igualmente vantajoso para ambas as partes. A ala esquerda era a célebre ala dos namorados, comandada por Mem Rodrigues e Rui Mendes de Vasconcelos, 200 lanças de cavaleiros todos moços valorosos. Na ala direita, comandada por António Vasques, formavam 200 homens de armas, entre os quais os famosos arqueiros ingleses assoldados em Londres. As 700 lanças de reserva à retaguarda, comandadas pelo Rei, mantinham-se em ligação interior com a vanguarda por uma dupla manga de peões e de besteiros. Por todo o campo ondulavam os balsões e insígnias dos cavaleiros, a bandeira verde da ala dos namorados, o pendão real das quinas e castelos, o estandarte branco e piedoso do Condestável. O curral do parque, com os pajens, cavalos, armaduras e toda a bagagem da hoste, ficara estabelecido à retaguarda da reserva, bem guarnecida também por besteiros e homens de pé, que não só defendiam a carriagem, como apoiavam os flancos da reserva contra eventuais surpresas.
Já o sol baixava a poente, quando as trombetas de Castela soaram na tarde cálida:
Deu sinal a trombeta Castelhana,
Horrendo, fero, ingente e temeroso;
Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana
Atrás tornou as ondas de medroso.
Ouviu[-o] o Douro e a terra Transtagana;
Correu ao mar o Tejo duvidoso;
E as mães, que o som terríbil escuitaram,
Aos peitos os filhinhos apertaram. (Os Lusíadas, IV,28)

Camões descreve a batalha em tom hiperbólico, quer nas referências ao número e valor dos inimigos, quer nos pormenores dos preparativos e nas alusões aos lances de valentia.
O som da trombeta inimiga é qualificado, em gradação crescente, de “Horrendo, fero, ingente e temeroso”, que até atemoriza os elementos da natureza e, como é óbvio, as mães e os filhinhos que ouviram o famigerado sinal sonoro.                                              
A batalha começou pelo estrondear das catapultas, que nos portugueses causou espanto. Mas, a artilharia tosca, de pedra, rebentou aos primeiros tiros, matando alguns dos próprios artilheiros.
Refeita da primeira hesitação, a vanguarda do Condestável pôs-se em marcha, vagarosamente, consoante as instruções recebidas. Entretanto, nos seus cavalos de guerra, a extensa frente de batalha castelhana avançava bastante desordenada, apoiada pelo tiroteio dos besteiros, ameaçando envolver a escassa frente portuguesa. Porém, os cavaleiros castelhanos, com surpresa por verem os portugueses apeados, começaram a encurtar as suas lanças para as tornar mais manejáveis – o que lhes deteve o ímpeto e fez oscilar toda a linha, reduzindo-lhes a frente e deixando para trás os extremos, que se misturaram aos cavaleiros da retaguarda.
Assim se formou, em massa profunda, uma espécie de cunha, cujo choque foi tão violento, que toda a vanguarda portuguesa vacilou, rompeu ao centro, e, fletindo em ambos os lados, deixou penetrar pela brecha no seu campo quase toda a cavalaria da vanguarda inimiga.
Camões dá-nos a impressão de que transcreve o relato de quem presenciou o espetáculo, dado o realismo descritivo e teor visualizante e auditivo, marcado pelo ritmo martelado do tropel dos cavalos, em que avultam as consoantes oclusivas (p, t, c, b, d, g), as aliterações associadas a esse ritmo martelado e sugerindo onomatopaicamente os tiros e silvos das setas com a sucessão de consoantes sibilantes, dentais e nasais. A estrofe seguinte, a terminar com um subtil jogo de palavras (pouca e apouca), constituí um belo exemplo deste ambiente bélico:
Já pelo espesso ar os estridentes
Farpões, setas e vários tiros voam;
Debaixo dos pés duros dos ardentes
Cavalos treme a terra, os vales soam.
Espedaçam-se as lanças, e as frequentes
Quedas co’ as duras armas tudo atroam.
Recrescem os imigos sobre a pouca
Gente do fero Nuno, que os apouca. (Os Lusíadas, IV,31)

Desligadas, perplexas, à espera de ordens, as duas alas de Castela não se moveram para reforçar o ataque. Ao invés, na frente portuguesa, com admirável coesão, as duas linhas quebradas tornaram-se a fechar sobre si mesmas, reconstituindo a face do quadrado e cortando a frente da retaguarda inimiga; e, enquanto da ala direita lusa os arqueiros ingleses tranquilamente flechavam os cavaleiros castelhanos entrados no campo dos portugueses, a ala dos namorados acometia-os do seu lado com brava fúria. Imediatamente el-rei D. João de Portugal, avançando com a sua reserva de 700 lanças, acaba por esmagá-los entre a sua massa e a ala dos namorados.
Mais perplexas, pela unidade do ataque e pela incompreensão do que se passava, a retaguarda e uma das alas castelhanas recuaram intempestivamente, emaranhando-se nas próprias bagagens e produzindo maior confusão e um pânico súbito, que alastrou logo por todo o campo. O próprio rei castelhano, o primeiro a dar o exemplo, fugiu com a sua escolta para Santarém que ainda se lhe mantinha fiel. Os portugueses, redobrando de energia, precipitaram o espantoso desbarato de tão orgulhosa e poderosa hoste.
E apenas o Mestre de Alcântara fez ainda um desesperado esforço para evitar a vergonhosa derrota. Com a sua cavalaria fez um largo rodeio pela direita para atacar, à retaguarda, a peonagem do rei D. João I, de Portugal; mas, a essa altura, já o Condestável, vitorioso, pôde acorrer com a sua cavalaria aos seus peões e animá-los a repelir o tardio ataque. 
Falhado este derradeiro golpe, tornaram-se indescritíveis o terror e o desbarato dos castelhanos. À exceção do corpo de cavalaria, que retirou logo para Santarém, o resto, mesmo as duas alas que podiam ter coberto a retirada, abalaram em fuga desordenada por todo o campo. Fizeram-se milhares de prisioneiros, tomou-se toda a bagagem, o despojo foi magnífico. E tudo se resolveu em pouco mais de meia hora.
Chegado alta noite a Santarém, nem ali se sentiu seguro D. João de Castela, pelo que foi rio abaixo até Lisboa, onde embarcou numa galé da frota para Sevilha. E a hoste portuguesa manteve-se, durante três dias, no campo de Aljubarrota, em sinal de vitória, segundo o espírito cavaleiresco da época.
A estrondosa derrota desmoralizou irreversivelmente o inimigo – D. João I de Castela decretou luto por dois anos – e ainda os que resistiam em cidades portuguesas, a ponto de, a partir daquele momento, as operações militares se reduzirem quase só às zonas de fronteira. Por outro lado, o ambiente de contradições que ainda reinava no país levou os partidários de D. João I a acentuarem vivamente o triunfo e a considerá-lo um sinal de proteção divina, fazendo do acontecimento motivo de propaganda.
De facto, a descrição da batalha por Fernão Lopes e a construção do Mosteiro da Batalha, ou melhor, de Santa Maria da Vitória, mostram bem o aproveitamento ideológico que dele se fez.
Veja-se, por exemplo, o que refere Fernão Lopes sobre a Batalha na sua Crónica de D. João I.
O cronista descreve a façanha duma forma bem mais espontânea (e quase infantil) que Luís de Camões e numa ótica marcadamente providencialista:
“E sendo a batalha cada vez maior e muito ferida de ambas as partes, aprouve a Deus que a bandeira de Castela fosse derribada e com ela o pendão da divisa, e alguns dos Castelhanos começaram a voltar atrás. Os moços portugueses que tinham as bestas começaram a bradar em altas vozes: Já fogem! Já fogem! E os Castelhanos, para não fazerem deles mentirosos, começaram a fugir cada vez mais.”
***
Foi tal o caráter providencial e mítico da Batalha que lhe ficou agregada a lenda da “Padeira de Aljubarrota”. Segundo a lenda, Brites de Almeida, com a sua pá de padeira, teria morto sete castelhanos que encontrara escondidos no seu forno.
A padeira teria nascido em Faro, em 1350, de pais pobres e de condição humilde, donos de uma pequena taberna. Desde pequena, se revelou uma mulher corpulenta, ossuda e feia, de nariz adunco, boca muito rasgada e cabelos crespos. Estaria talhada para ser uma mulher destemida, valente e, de certo modo, desordeira. Teria 6 dedos nas mãos, o que teria alegrado os pais, pois julgaram ter em casa uma futura mulher muito trabalhadora. Contudo, isso não teria sucedido, sendo que Brites teria amargurado a vida dos progenitores, que faleceriam precocemente. Aos 26 anos, ela já estaria órfã, facto que se diz não a ter afligido muito.
Vendeu os parcos haveres que possuía, resolvendo levar uma vida errante, negociando de feira em feira. Muitas são as aventuras que supostamente viveu, desde a morte de um pretendente no fio da sua própria espada até à fuga para Espanha a bordo de um batel assaltado por piratas argelinos que a venderam como escrava a um poderoso senhor da Mauritânia.
Acabaria, entre uma lendária vida pouco virtuosa e confusa, por se fixar em Aljubarrota, onde se tornaria dona duma padaria e tomaria um rumo mais honesto de vida, casando com um lavrador do local. Encontrar-se-ia nesta vila quando se deu a batalha entre portugueses e castelhanos. Derrotados os castelhanos, 7 deles fugiram do campo da batalha para se albergarem nas redondezas. Encontraram abrigo na casa de Brites, que estava vazia porque a dona teria saído para ajudar nas escaramuças que ocorriam.
Quando Brites voltou, tendo encontrado a porta fechada, logo desconfiou da presença de inimigos e entrou alvoroçada à procura de castelhanos. Teria encontrado os 7 escondidos dentro do seu forno. Intimou-os a sair e a renderem-se. Porém, vendo que eles não respondiam, pois fingiam dormir ou não entender, bateu-lhes com a sua pá e matou-os. Diz-se também que, depois do sucedido, Brites teria reunido um grupo de mulheres e constituído uma espécie de milícia que perseguia os inimigos, matando sem dó nem piedade.
Apesar de mera lenda, é inegável que a história da padeira se tornou célebre e Brites foi transformada numa personagem portuguesa, uma heroína celebrada pelo povo nas suas canções e histórias tradicionais. Talvez o poeta de Mensagem tenha razão, quando vaticina:

O mito é o nada que é tudo.
 O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo —
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

2016.08.14 – Louro de Carvalho

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