quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Pela uniformidade quando necessário

O diferendo que opõe, em todo o país, o ME (Ministério da Educação) e as entidades proprietárias de estabelecimentos do ensino articular e cooperativo atualmente com contrato de associação, de que resultam já decisões dos TAF (tribunais administrativos e fiscais) sobre as providências cautelares apresentadas por 20 daquelas instituições em sentido divergente, reporta-me a uma conversa que, em tempos, mantive com um colega professor e advogado.
Dizia eu que me parecia que, sempre que um normativo legal destinado a interessados residentes em todo o território nacional, suscitasse dúvidas de interpretação ou mesmo de legalidade, não deveríamos ter necessidade de esperar que alguns dos atingidos recorressem aos tribunais territoriais (de comarca para o processo- crime e para o cível e administrativos e fiscais para as matérias relativas à relação da administração pública com os administrados). Além disso, não poderíamos esperar por decisões de tribunais territoriais necessariamente diferentes conforme o entendimento dos respetivos juízes e os possíveis recursos para tribunais superiores. Tratando-se de interpretação sobre a legalidade do normativo (não me refiro a inconstitucionalidade) e de aferição de critérios procedimentais, seria de inteira justiça que todos pudessem beneficiar (?) rapidamente – para o bem e para o mal – da decisão dum tribunal com competência em todo o território e não apenas os que intentaram ações, sobretudo quando o tempo urge e a indefinição acarreta prejuízos graves.
O colega, movido pelos ditames da formação académica e da organização dos poderes, dizia que não podia ser, dado que os tribunais apreciam os casos que lhes são colocados e um dos fatores da competência é precisamente a territorialidade. Pelo que a visão que eu apresentava não estava prevista nem no ordenamento constitucional nem no ordenamento jurisdicional.   
Obviamente não me cabia contestar palavras de quem sabe. Todavia, vim a verificar, como toda a gente, que fora criado o DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal) para investigar crimes de alta complexidade e que indiciariamente tivessem ocorrido em comarcas diferentes e, consequentemente um TCIC (Tribunal Central de Instrução Criminal), embora a fase processual de julgamento tramite num tribunal de comarca. Depois com a recente reforma da justiça, designadamente no atinente ao processo civil foram definidas muitas razões da competência dos tribunais.
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Ora, presentemente (e já houve situações parecidas em tempos idos) há um conflito que opõe seriamente os estabelecimentos de ensino privado com contrato de associação e o ME que, através de um despacho assinado este ano, a 20 de maio, pela secretária de Estado Adjunta e da Educação, Alexandra Leitão, quis limitar os apoios financeiros aos colégios que se encontram em zonas com falta ou insuficiência de oferta pública de escolas. 20 dos colégios atingidos decidiram avançar judicialmente para contestar o despacho que veio introduzir limitações geográficas o Despacho normativo n.º 1-H/2016, de 14 de abril, que deu nova redação ao n.º 9 do art.º 3.º do Despacho normativo n.º 7-B/2015, de 7 de maio – à origem dos alunos matriculados nos estabelecimentos privados.
Já me pronunciei sobre a questão através de um outro texto. Agora, passo a refletir sobre as decisões dos TAF sobre as providências cautelares apresentadas. A este respeito, há juízes que, independentemente de serem apenas juízes de turno ou juízes titulares do processo (ação principal), decidiram aceitar as providências cautelares sobre as quais lhes foi atribuída a tarefa; outros (menos) decidiram não aceitar as providências cautelares. Tecnicamente o que estava em causa era suspender ou não o referido despacho ministerial sobre as matrículas e, por consequência, os itens do aviso de abertura para a apresentação das candidaturas a contrato de associação (com vista ao financiamento) da parte dos colégios elegíveis. Assim, alguns TAF só não decidiram pela suspensão do dito despacho, porque alegadamente não surte efeito, já que os limites geográficos não existem. Neste caso, cantam vitória, de modo igual, os colégios e o ME.   
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Entretanto, um juiz do TAF de Coimbra (TAFC) decidiu a favor dos colégios de Cantanhede e Ançã, permitindo-lhes aceitar inscrições e proceder às matrículas de alunos sem limitação geográfica. E o gabinete de comunicação do ME fez saber que o Ministério iria interpor recurso destas duas sentenças junto do respetivo Tribunal Central Administrativo.
Porém, este caso merece especial atenção, porque o juiz, além de acolher a argumentação hipoteticamente factual dos colégios, aduziu falhas de legalidade.
O juiz acolheu os argumentos dos estabelecimentos financiados pelo Estado para garantir ensino gratuito aos alunos, aceitando como certo que a aplicação do despacho levaria, a breve termo, ao seu encerramento, já que muitos dos alunos não residem na área geográfica dos dois colégios. Sendo assim, estaria criado um “facto consumado”, antes do desfecho da guerra jurídica em curso entre os colégios e o ME, tendo o TAFC considerado “legítimo” que os colégios o tentem evitar através de providências cautelares, mas, quando muito, sujeitando-se a uma eventual sentença favorável ao ME no culminar do processo da ação principal.
Mas o juiz considera que as novas normas de matrícula decididas pelo ME e a decisão de cortar o financiamento a novas turmas de início de ciclo (5.º, 7.º e 10.º ano), serão provavelmente postas em causa pelos tribunais, o que também pesou na sua decisão de suspender os efeitos do despacho de abril. Aduz o magistrado que, para a sua decisão, pesa o “interesse legalmente protegido” dos colégios “a integrar a rede pública de ensino com financiamento por contratos de associação pelos três anos” em que ficaram habilitados a tal por concurso público realizado em 2015. Pesa também, segundo o douto juiz, “o interesse de quem procura a escola em aceder ou continuar a aceder a um determinado meio de prestação do serviço público de ensino obrigatório, até agora acessível, quando não é certo que possam permanecer na ordem jurídica, antes é provável o contrário, as normas administrativas que geram este dano”.
E, como possíveis ilegalidades, o TAFC aponta a violação CPA (Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo DL n.º 4 /2015, de 7 de janeiro), quer pelos moldes em que foi publicitada a elaboração do diploma de abril, quer pelo facto de o ME não ter procedido à audiência prévia dos interessados. No primeiro caso, considera não ter sido cumprido o estipulado no n.º 1 do art.º 98.º do CPA, que estabelece os termos em que deve ser feita a publicitação do início do procedimento. Isto porque, frisa, se limitou a anunciar a elaboração dum despacho sobre o regime de matrículas no âmbito da escolaridade obrigatória, quando na prática acabou por estipular “quem pode e não pode a priori frequentar as escolas com contratos de associação”, o que não constava do aviso que foi publicado. No segundo caso, o ME terá violado os n.os 1 e 3 artigo 100.º do CPA ao não ter procedido à audiência prévia dos interessados.
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Não sei se o TAFC tem razão.
O financiamento está regulado por contrato celebrado ao abrigo da Portaria n.º 172-A/2015, de 5 de junho, que invoca os artigos 10.º e 16.º do Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo (aprovado pelo DL n.º 152/2013 de 4 de novembro), que nada dizem sobre a questão. Segundo a legislação em vigor, o sistema de matrículas é regulado por despacho normativo. O ME deu toda a sua publicidade à sua intenção, avistou-se com respeitantes dos interessados e indicou o conteúdo da alteração que o despacho iria produzir (nisso é que foi contestado publicamente, mas a contestação não é fonte de ilegalidade). E o aviso de abertura do concurso é meridianamente claro, o que refere o despacho da Secretária de Estado. Pode não se concordar com ele, mas essa é outra questão. Além disso, deve ter-se em consideração o que legalmente vem estabelecido sobre contratos. Nesta fase contratual, o ME comporta-se como uma entidade privada.
Quanto ao art.º 100.º do CPA, é de referir que, se o ME justificou a dispensa de audição prévia com a necessidade de o diploma estar concluído em tempo útil de modo a não perturbar a vida das escolas, conforme previsto no CPA (norma mencionada), não se vê razão para o acusar de não cumprimento do mesmo CPA.
Ademais, tendo o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo estabelecido que os contratos e os procedimentos são definidos por portaria, não se vê motivo por que não se possa seguir o estabelecido em termos gerais dos contratos (incluindo a denúncia), dado que a portaria não os restringe.
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Tenha razão o ME ou tenham-na os colégios, a matéria deveria estar decidida já para que todos os interessados pudessem agir em conformidade. Deveria existir uma entidade (Procuradoria-Geral da República, Provedor de Justiça ou outra a criar) que, em caso de dúvida generalizada e iminência de incómodo e mesmo prejuízos, fizesse a promoção diretamente junto do STA, que decidiria com caráter de urgência e tal decisão teria força obrigatória geral. Os interessados não teriam que intentar ações para cada caso, não se correria o risco de haver decisões não tomadas em tempo útil e não se andaria de TAF para TACN/S e para STA – de Anás para Caifás, do sinédrio para Pilatos, de Pilatos para Herodes, de Herodes para Pilatos e de Pilatos para o Calvário.
E certamente que não faltariam processos nos TAF no atinente à relação da administração com os administrados por atitudes, comportamentos perfeitamente localizados perante as leis – sejam departamentos do Estado, sejam autarquias. E o país não esperaria tanto tempo.

2016.08.10 – Louro de Carvalho 

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