Ricardo
Araújo Pereira, na secção “Boca do Inferno” da revista Visão, de 18 de agosto, publicou sob o título “Brincar aos
reclusozinhos” uma peça em que assegura:
“A
justiça, em Portugal, é divina. Nada se assemelha mais ao reino dos céus do que
o sistema judicial português: é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma
agulha do que um rico entrar na prisão”.
Na
verdade, Jesus apresentou muitos símiles alusivos ao Reino dos Céus. Porém, a
afirmação do Mestre sobre a dificuldade em os ricos entrarem no Reino não
decorre de nenhum símile (vulgarmente, parábola),
mas da narrativa dum episódio com a respetiva conclusão, recolhida nos
sinóticos (vd Mt 19,16-26; Mc 10,17-26; Lc 18,18-27):
“Aproximando-se, um jovem
disse-lhe: ‘Mestre, que hei de fazer de bom para alcançar a vida eterna?’ Jesus respondeu-lhe: ‘Porque me interrogas
sobre o que é bom? Bom é um só. Mas, se queres entrar na vida eterna, cumpre os
mandamentos.’ ‘Quais?’ –
perguntou ele. Retorquiu Jesus: ‘Não
matarás, não cometerás adultério, não roubarás, não levantarás falso
testemunho, honra teu pai e tua
mãe’; e ainda: ‘Amarás o teu próximo como a ti
mesmo.’ Disse-lhe o jovem: ‘Tenho cumprido
tudo isto. Que me falta ainda?’. Jesus respondeu: ‘Se queres ser perfeito, vai,
vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois,
vem e segue-me.’. Ao ouvir isto,
o jovem retirou-se contristado, porque possuía muitos bens.
“Jesus disse, então, aos
discípulos: ‘Em verdade vos digo que dificilmente um rico entrará no Reino dos
Céus. Repito-vos: É mais fácil passar
um camelo pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no Reino dos Céus.’. Ao
ouvirem isto, os discípulos ficaram estupefactos e disseram: ‘Então, quem pode
salvar-se?’. Fixando neles o olhar, Jesus
disse-lhes: ‘Aos homens é impossível, mas a Deus tudo é possível’.”
Em 14 de dezembro de 2014,
desenvolvi o tema em texto intitulado “Poderá
um rico salvar-se?”. Agora, apenas me detenho no que diz Clemente de
Alexandria “sobre a salvação dos ricos” (cf C. Folch Gomes, Antologia dos santos Padres, edições paulinas: 1985).
Critica
o nosso santo os que adulam os ricos por lhes acrescentarem à carga da riqueza
um novo peso, “quando o melhor seria diminuir o gravame da enfermidade, tantas
vezes mortal”. Assim, é melhor “ajudar os ricos com razões e meios que lhes
facilitem a salvação”: “suplicando a Deus” e “curando as suas almas com a graça
do Salvador, iluminando-as e conduzindo-os à posse da verdade”.
Alguns
ricos “ouvem com simplicidade” aquela palavra do Evangelho sobre a dificuldade
de os ricos entrarem no Reino e desesperam de se salvar; outros “entendem
corretamente a palavra do Senhor, mas descuidam-se das obras salvíficas e não
se preparam devidamente para alcançar o que esperam”. Ou seja, a culpa da não
entrada no Reino não é de Cristo mas dos próprios ricos e quiçá dos pregadores.
De facto, quem ama a verdade e os irmãos, não ataca petulantemente os ricos
também chamados à fé nem os lisonjeia. Ao invés, explica-lhes os oráculos do
Senhor, que não os excluem se obedecerem aos mandamentos, e faz-lhes ver que o
seu temor é irrazoável, pois, se o desejarem, o Senhor os acolherá de bom
grado. Depois, é preciso iniciá-los na esperança, no pressuposto de que a porta
da salvação não lhes está fechada nem se lhes abre sem o esforço de cada um.
Citando
o exemplo de Zaqueu, que era rico e chefe de cobradores de impostos (vd
Lc 19,1-10),
Clemente ensina que “não há que abandonar” os bens capazes de utilidade para o
próximo –“aliás, as posses chamam-se bens
porque com elas se pode fazer bem e foram previstas por Deus em função da
utilidade para os homens”. Neste sentido, a riqueza é instrumental. Por isso, o
ilustre Padre da Igreja assegura:
“Se
usada corretamente, presta serviço à justiça. Se usada incorretamente, serve a
injustiça. Por natureza, está destinada a servir, não a mandar. Não há que
acusá-la do que não lhe cabe, isto é, do não ser nem boa nem má.”.
E
explica:
“A
riqueza não tem culpa. Toda a responsabilidade cabe ao que pode usá-la bem ou
mal, conforme a escolha que estabelece, isto é, segundo a mente e o juízo do
homem, ser livre e capaz de manejar por próprio arbítrio o que recebe em mãos.
O que importa destruir não são as riquezas, mas as paixões da alma que impedem
o bom uso das mesmas. Tornado bom e nobre, o homem pode empregá-las bem e
generosamente.”
É
neste sentido que se interpreta o dito do Senhor naquele contexto: “A Deus tudo é possível”. Deus
efetivamente dá o dom e a graça; ao homem compete responder com o esforço e a
retidão.
***
Seguindo
R. Araújo Pereira, confesso que se torna escandaloso o que se passa com a
justiça humana. Afora alguns casos de prisão preventiva, facilmente
substituível por caução – cujo pagamento é acessível a quem tem – são
raríssimos os casos em que um rico malha com os costados nos calabouços do
cárcere após sentença ou acórdão transitado em julgado. Cheira-me que os
pouquíssimos que lá vão parar já perderam a quase da totalidade dos bens que
tinham. De resto, os expedientes dilatórios e os meios de garantia (múltiplos
e, às vezes, excessivos),
como reclamação, recurso e aclaração fazem a sua função a troco das sucessivas
formas de pagamento e por entre os excessivos escolhos burocráticos.
Porém,
o gatuno do pacote de arroz de supermercado é sugado pelo sistema até ao
tutano, tal como o é pelo fisco aquele contribuinte que tenha uma falha de
atenção ou mesmo aquele sobre quem recaia um erro da “máquina”. Porém, a alguns
até se permite pagamento para não irem a julgamento; e para outros trabalham
bem psicólogos e psiquiatras para forçarem a não imputabilidade. Além disso, em
matéria cível, há instantes apelos a acordo para evitar decisão.
Na
verdade, se Jesus encontrou tantos elementos no mundo a que assemelhar o Reino
de Deus, é expectável que alguém queira assemelhar algo ao Reino de Deus. E a
nossa justiça é-lhe similar pelos piores dos motivos.
***
A
iniquidade do sistema não se pode situar no corpus
jurídico, mas em quem o manipula. A não ser que haja finalidades perversas na
mente de quem legisla – em regimes de exceção ou em caso de fácil alinhamento
com modas relativizantes – a lei é sensata e dá margem para que a sensatez do
operador judiciário, mormente do julgador, venha à tona e se faça impor.
A
este respeito, apraz-me citar o subcapítulo “O Livro da Aliança e a Faculdade
de Direito”, do capítulo 3 do livro Jesus
no Banco dos Réus, de David Limbaugh (Marcador Editora: 2015).
Refere
o autor que, enquanto jovem advogado, se sentiu intrigado ao deparar com as
leis que se seguem imediatamente ao Decálogo (Ex 20,1-21), que abrangem quatro capítulos,
quase na totalidade (Ex 20,22 – 23,19) e são “referidas na sua
totalidade como o Livro da Aliança” (Ex 24,7), ficando impressionado “com a
quantidade de leis atuais que se baseiam claramente na Bíblia”. Diz ele:
“
Existem leis no Livro da Aliança em matéria de responsabilidade civil,
contratos e propriedade – três das cinco cadeiras que frequentei no meu
primeiro semestre na Faculdade de Direito”.
E
exemplifica:
“Lembro-me
de estudar, nas aulas sobre responsabilidade civil, a legislação relativa a
quem alberga um animal perigoso, sobretudo aplicada aos cães. Segundo o nosso
professor, muitas pessoas pensavam erroneamente que os donos de cães não eram
responsabilizáveis pela primeira mordidela do seu cão. Na verdade, o dono do
cão (ou de qualquer outro animal) é responsável se tiver conhecimento prévio de
propensões violentas do animal, mesmo que nunca tenha mordido ou ferido ninguém
antes. Do modo como a discussão evoluiu, sempre presumi que esta regra fosse um
desenvolvimento posterior, que tivesse substituído a regra da primeira mordidela.”.
Mas,
ao ler o Êxodo, Limbaugh descobriu que a regra não era nova, mas derivava deste
escrito:
“Quando um boi marrar num homem ou numa mulher,
vindo a causar a morte, o boi será apedrejado e a sua carne não será comida,
mas o dono do boi será absolvido. Mas
se esse boi já antes marrava, e se o seu dono já tinha sido avisado e não o
guardava, e se causar a morte a um homem ou a uma mulher, o boi será apedrejado
e também o seu dono será morto.” (Ex 21,28-29).
O
conhecimento prévio das tendências violentas do animal, por parte do dono,
permite a responsabilização deste. Obviamente, em termos penais hoje não se
chega a tanto, mas a substância lá está. Mais, para Limbaugh, “a leitura de outras
leis específicas do Livro da Aliança revela, previsivelmente, outras
semelhanças impressionantes com as leis ainda hoje em vigor”.
***
Em
entrevista ao DN de hoje, 19 de
agosto, Valter Hugo Mãe também fala do Direito. Entendia que o curso de Direito “era um complemento, a busca
da arma” de que precisava para exercer a frontalidade. Queria dotar-se do “necessário
para poder protestar consistentemente, argumentar com o juiz, de alguma forma
fundamentar aquilo que já ia pressentindo – os desequilíbrios, as faltas de
partilha, as desigualdades”. Por isso, estudar Direito foi importante para si,
até porque “o curso de Direito estuda o discurso, o texto”. E, “se o
desligarmos da componente ética e o encararmos como uma oficina técnica, é algo
que se debruça sobre o escrever e o ler, como interpretamos o que escreveu o
legislador, qual a sua intenção, qual o lastro que carrega um texto”. Assegurando
que o curso de Direito “talvez seja mesmo a melhor das escolas para quem quer
escrever livros”, diz dos textos jurídicos o seguinte:
“Alguns são maravilhosos... Há uma secura no
texto jurídico – que não deve ter adjetivos, deve despir-se de emoções – que
não deixa de ter uma elegância própria. Há uma espécie de esplendorosa
exposição de uma ideia que se visa capturar com o mínimo possível de
subjetividade. Teoricamente, nós não devíamos ter dúvidas a interpretar uma
lei. Claro que, como estamos a falar de bichos que não se deixam caçar, haverá
sempre quem queira puxar a brasa à sua sardinha... Eventualmente, haverá quem
olhe anos a fio para o Código Civil e não descubra nada; mas, se for da sua
natureza intuir ali a presença da literatura, pode ser uma mais-valia.”.
E,
como estamos no quadro da similitude com o Reino dos Céus, convém reter a razão
por que o entrevistado deixou a advocacia. Não foi a lei, mas a dificuldade. E a
dificuldade residia no facto de aquilo
ser “cansativo, emocionalmente esgotante” e o entrevistado não se sentir “suficientemente
seguro para cuidar dos problemas das pessoas”. Mais:
“Tinha de usar a diplomacia jurídica, muito
lenta e muito chata. Penso até que foi quando percebi a existência real de uma
burocracia que só empecilhava…”.
***
Sendo assim, só é de estranhar como é que
tantos e tantas se sentem tão bem ou sem escrúpulos neste panorama cuja
dificuldade em atinar com a verdade é tão grande que se pode seriamente comparar
à dificuldade de um rico entrar no Reino dos Céus!
2016.08.19 – Louro de
Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário