sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Semelhante ao Reino dos Céus

Ricardo Araújo Pereira, na secção “Boca do Inferno” da revista Visão, de 18 de agosto, publicou sob o título “Brincar aos reclusozinhos” uma peça em que assegura:
“A justiça, em Portugal, é divina. Nada se assemelha mais ao reino dos céus do que o sistema judicial português: é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar na prisão”.
Na verdade, Jesus apresentou muitos símiles alusivos ao Reino dos Céus. Porém, a afirmação do Mestre sobre a dificuldade em os ricos entrarem no Reino não decorre de nenhum símile (vulgarmente, parábola), mas da narrativa dum episódio com a respetiva conclusão, recolhida nos sinóticos (vd Mt 19,16-26; Mc 10,17-26; Lc 18,18-27):
“Aproximando-se, um jovem disse-lhe: ‘Mestre, que hei de fazer de bom para alcançar a vida eterna?’ Jesus respondeu-lhe: ‘Porque me interrogas sobre o que é bom? Bom é um só. Mas, se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos.’ ‘Quais?’ – perguntou ele. Retorquiu Jesus: ‘Não matarás, não cometerás adultério, não roubarás, não levantarás falso testemunho, honra teu pai e tua mãe; e ainda: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Disse-lhe o jovem: ‘Tenho cumprido tudo isto. Que me falta ainda?’. Jesus respondeu: ‘Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me.’. Ao ouvir isto, o jovem retirou-se contristado, porque possuía muitos bens.
“Jesus disse, então, aos discípulos: ‘Em verdade vos digo que dificilmente um rico entrará no Reino dos Céus. Repito-vos: É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no Reino dos Céus.’. Ao ouvirem isto, os discípulos ficaram estupefactos e disseram: ‘Então, quem pode salvar-se?’. Fixando neles o olhar, Jesus disse-lhes: ‘Aos homens é impossível, mas a Deus tudo é possível’.”

Em 14 de dezembro de 2014, desenvolvi o tema em texto intitulado “Poderá um rico salvar-se?”. Agora, apenas me detenho no que diz Clemente de Alexandria “sobre a salvação dos ricos” (cf C. Folch Gomes, Antologia dos santos Padres, edições paulinas: 1985).

Critica o nosso santo os que adulam os ricos por lhes acrescentarem à carga da riqueza um novo peso, “quando o melhor seria diminuir o gravame da enfermidade, tantas vezes mortal”. Assim, é melhor “ajudar os ricos com razões e meios que lhes facilitem a salvação”: “suplicando a Deus” e “curando as suas almas com a graça do Salvador, iluminando-as e conduzindo-os à posse da verdade”.
Alguns ricos “ouvem com simplicidade” aquela palavra do Evangelho sobre a dificuldade de os ricos entrarem no Reino e desesperam de se salvar; outros “entendem corretamente a palavra do Senhor, mas descuidam-se das obras salvíficas e não se preparam devidamente para alcançar o que esperam”. Ou seja, a culpa da não entrada no Reino não é de Cristo mas dos próprios ricos e quiçá dos pregadores. De facto, quem ama a verdade e os irmãos, não ataca petulantemente os ricos também chamados à fé nem os lisonjeia. Ao invés, explica-lhes os oráculos do Senhor, que não os excluem se obedecerem aos mandamentos, e faz-lhes ver que o seu temor é irrazoável, pois, se o desejarem, o Senhor os acolherá de bom grado. Depois, é preciso iniciá-los na esperança, no pressuposto de que a porta da salvação não lhes está fechada nem se lhes abre sem o esforço de cada um.
Citando o exemplo de Zaqueu, que era rico e chefe de cobradores de impostos (vd Lc 19,1-10), Clemente ensina que “não há que abandonar” os bens capazes de utilidade para o próximo –“aliás, as posses chamam-se bens porque com elas se pode fazer bem e foram previstas por Deus em função da utilidade para os homens”. Neste sentido, a riqueza é instrumental. Por isso, o ilustre Padre da Igreja assegura:
“Se usada corretamente, presta serviço à justiça. Se usada incorretamente, serve a injustiça. Por natureza, está destinada a servir, não a mandar. Não há que acusá-la do que não lhe cabe, isto é, do não ser nem boa nem má.”.
E explica:
“A riqueza não tem culpa. Toda a responsabilidade cabe ao que pode usá-la bem ou mal, conforme a escolha que estabelece, isto é, segundo a mente e o juízo do homem, ser livre e capaz de manejar por próprio arbítrio o que recebe em mãos. O que importa destruir não são as riquezas, mas as paixões da alma que impedem o bom uso das mesmas. Tornado bom e nobre, o homem pode empregá-las bem e generosamente.”
É neste sentido que se interpreta o dito do Senhor naquele contexto: “A Deus tudo é possível”. Deus efetivamente dá o dom e a graça; ao homem compete responder com o esforço e a retidão.
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Seguindo R. Araújo Pereira, confesso que se torna escandaloso o que se passa com a justiça humana. Afora alguns casos de prisão preventiva, facilmente substituível por caução – cujo pagamento é acessível a quem tem – são raríssimos os casos em que um rico malha com os costados nos calabouços do cárcere após sentença ou acórdão transitado em julgado. Cheira-me que os pouquíssimos que lá vão parar já perderam a quase da totalidade dos bens que tinham. De resto, os expedientes dilatórios e os meios de garantia (múltiplos e, às vezes, excessivos), como reclamação, recurso e aclaração fazem a sua função a troco das sucessivas formas de pagamento e por entre os excessivos escolhos burocráticos.
Porém, o gatuno do pacote de arroz de supermercado é sugado pelo sistema até ao tutano, tal como o é pelo fisco aquele contribuinte que tenha uma falha de atenção ou mesmo aquele sobre quem recaia um erro da “máquina”. Porém, a alguns até se permite pagamento para não irem a julgamento; e para outros trabalham bem psicólogos e psiquiatras para forçarem a não imputabilidade. Além disso, em matéria cível, há instantes apelos a acordo para evitar decisão.
Na verdade, se Jesus encontrou tantos elementos no mundo a que assemelhar o Reino de Deus, é expectável que alguém queira assemelhar algo ao Reino de Deus. E a nossa justiça é-lhe similar pelos piores dos motivos.
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A iniquidade do sistema não se pode situar no corpus jurídico, mas em quem o manipula. A não ser que haja finalidades perversas na mente de quem legisla – em regimes de exceção ou em caso de fácil alinhamento com modas relativizantes – a lei é sensata e dá margem para que a sensatez do operador judiciário, mormente do julgador, venha à tona e se faça impor.
A este respeito, apraz-me citar o subcapítulo “O Livro da Aliança e a Faculdade de Direito”, do capítulo 3 do livro Jesus no Banco dos Réus, de David Limbaugh (Marcador Editora: 2015).
Refere o autor que, enquanto jovem advogado, se sentiu intrigado ao deparar com as leis que se seguem imediatamente ao Decálogo (Ex 20,1-21), que abrangem quatro capítulos, quase na totalidade (Ex 20,22 – 23,19) e são “referidas na sua totalidade como o Livro da Aliança” (Ex 24,7), ficando impressionado “com a quantidade de leis atuais que se baseiam claramente na Bíblia”. Diz ele:
“ Existem leis no Livro da Aliança em matéria de responsabilidade civil, contratos e propriedade – três das cinco cadeiras que frequentei no meu primeiro semestre na Faculdade de Direito”.
E exemplifica:
“Lembro-me de estudar, nas aulas sobre responsabilidade civil, a legislação relativa a quem alberga um animal perigoso, sobretudo aplicada aos cães. Segundo o nosso professor, muitas pessoas pensavam erroneamente que os donos de cães não eram responsabilizáveis pela primeira mordidela do seu cão. Na verdade, o dono do cão (ou de qualquer outro animal) é responsável se tiver conhecimento prévio de propensões violentas do animal, mesmo que nunca tenha mordido ou ferido ninguém antes. Do modo como a discussão evoluiu, sempre presumi que esta regra fosse um desenvolvimento posterior, que tivesse substituído a regra da primeira mordidela.”.
Mas, ao ler o Êxodo, Limbaugh descobriu que a regra não era nova, mas derivava deste escrito:
“Quando um boi marrar num homem ou numa mulher, vindo a causar a morte, o boi será apedrejado e a sua carne não será comida, mas o dono do boi será absolvido. Mas se esse boi já antes marrava, e se o seu dono já tinha sido avisado e não o guardava, e se causar a morte a um homem ou a uma mulher, o boi será apedrejado e também o seu dono será morto.” (Ex 21,28-29).
O conhecimento prévio das tendências violentas do animal, por parte do dono, permite a responsabilização deste. Obviamente, em termos penais hoje não se chega a tanto, mas a substância lá está. Mais, para Limbaugh, “a leitura de outras leis específicas do Livro da Aliança revela, previsivelmente, outras semelhanças impressionantes com as leis ainda hoje em vigor”.
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Em entrevista ao DN de hoje, 19 de agosto, Valter Hugo Mãe também fala do Direito. Entendia que o curso de Direito “era um complemento, a busca da arma” de que precisava para exercer a frontalidade. Queria dotar-se do “necessário para poder protestar consistentemente, argumentar com o juiz, de alguma forma fundamentar aquilo que já ia pressentindo – os desequilíbrios, as faltas de partilha, as desigualdades”. Por isso, estudar Direito foi importante para si, até porque “o curso de Direito estuda o discurso, o texto”. E, “se o desligarmos da componente ética e o encararmos como uma oficina técnica, é algo que se debruça sobre o escrever e o ler, como interpretamos o que escreveu o legislador, qual a sua intenção, qual o lastro que carrega um texto”. Assegurando que o curso de Direito “talvez seja mesmo a melhor das escolas para quem quer escrever livros”, diz dos textos jurídicos o seguinte:
“Alguns são maravilhosos... Há uma secura no texto jurídico – que não deve ter adjetivos, deve despir-se de emoções – que não deixa de ter uma elegância própria. Há uma espécie de esplendorosa exposição de uma ideia que se visa capturar com o mínimo possível de subjetividade. Teoricamente, nós não devíamos ter dúvidas a interpretar uma lei. Claro que, como estamos a falar de bichos que não se deixam caçar, haverá sempre quem queira puxar a brasa à sua sardinha... Eventualmente, haverá quem olhe anos a fio para o Código Civil e não descubra nada; mas, se for da sua natureza intuir ali a presença da literatura, pode ser uma mais-valia.”.
E, como estamos no quadro da similitude com o Reino dos Céus, convém reter a razão por que o entrevistado deixou a advocacia. Não foi a lei, mas a dificuldade. E a dificuldade residia no facto de aquilo ser “cansativo, emocionalmente esgotante” e o entrevistado não se sentir “suficientemente seguro para cuidar dos problemas das pessoas”. Mais:
“Tinha de usar a diplomacia jurídica, muito lenta e muito chata. Penso até que foi quando percebi a existência real de uma burocracia que só empecilhava…”.
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Sendo assim, só é de estranhar como é que tantos e tantas se sentem tão bem ou sem escrúpulos neste panorama cuja dificuldade em atinar com a verdade é tão grande que se pode seriamente comparar à dificuldade de um rico entrar no Reino dos Céus!  

2016.08.19 – Louro de Carvalho

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