terça-feira, 9 de agosto de 2016

Esperar pelo tribunal para defender e repor o bom nome

O JN de 8 de agosto publicou um artigo de opinião de Eduardo Vítor Rodrigues, Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia sob o título “Teoria da conspiração”, que denuncia a tentação de alguns “fazedores de opinião” se arrogarem o direito de caluniarem os adversários na Comunicação Social, pretendendo que eles utilizem a mesma ágora para defenderem e reporem o seu bom nome e reputação.
O articulista tem razão na denúncia de tal pretensão da parte de muitos. Reconheço que muitas vezes alguns se sentem frustrados e esvaziados de objetivo quando chamam a terreiro aqueles com quem querem contender e eles se metem em copas. Eu próprio passei por isso.
Rodrigues pensa com afinada razoabilidade na relevância da liberdade de pensamento e da sua expressão e adverte que este é um dos pilares fundamentais da nossa democracia e, como tal, configura “um direito assegurado constitucionalmente a todos os cidadãos”. Com razão reaviva a memória dos tempos da censura ou do exame prévio – “para não relativizarmos a liberdade e, em particular a liberdade de pensamento e de expressão” – e lança o olhar para os países em que hoje a expressão do pensamento é considerada delito de opinião e muitos são presos, torturados e mortos por via do uso dessa prerrogativa. Sobre este tipo de países assegura:
“Para aqueles que preferem navegar nas geografias da contemporaneidade, não faltam exemplos de povos e países amordaçados, nos quais o pensamento é policiado e a expressão desse mesmo pensamento pode levar a castigos tão pesados como a pena de morte”.
E, na revisitação que faz à CRP (Constituição da República Portuguesa) fixa-se primeiro no seu art.º 37.º (Liberdade de expressão e informação), cujo n.º 1 transcreve:
“Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”.
Depois, mencionando o art.º 26.º da CRP (outros direitos pessoais), que não cita, diz que a nossa Constituição, “logo a seguir aos artigos que garantem dimensões, aliás, intrínsecas à vida e à integridade pessoal, consagra o direito ao bom nome e reputação”. E sustenta que “este direito é defendido no já citado art.º 37.º”, especificamente no seu n.º 4:
A todas as pessoas, singulares ou coletivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de retificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos”.
Vale, entretanto, a pena, atentarmos um pouco no n.º 1 do art.º 26.º, que estipula:
“A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação”.
Está efetivamente em causa o bom nome e reputação, mas não só. Antes do bom nome e reputação, vem a referência à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil e à cidadania. O bom nome e reputação são significativos enquanto síntese daqueles predicados, os quais são vilipendiados quando o bom nome e reputação são postos em causa ou contraditados. Por seu turno, a imagem, a palavra, a reserva da intimidade da vida privada e familiar e postura legal contra quaisquer formas de discriminação são elementos que protegem e afirmam tudo aquilo que o bom nome e reputação significam.   
Por isso, os números seguintes do art.º 26.º vêm garantir a dignidade genética do ser humano e a dignidade das pessoas e das famílias e determinar que “a privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efetuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos”.
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O articulista do JN sustenta que “este caminho virtuoso, entre o direito de expressão das minhas opiniões e o direito do outro ao seu bom nome e reputação, deve ser gerido com sensatez”. É óbvio que se concorda com a premissa, o antecedente, mas não com a inferência, o consequente.
Eu penso que nunca devo nem posso, “para defender o meu ponto de vista, caluniar ou difamar, mesmo tendo “a certeza de que o alvo da calúnia ou da difamação tem o direito constitucional de se defender desse ataque” nos órgãos de comunicação social e, segundo o articulista, apenas nos tribunais. Atacar alguém para que ele exerça o direito de se defender é uma provocação à pessoa, ao Direito e até à organização judicial. Em termos teológicos uma atitude similar contra Deus – ofendê-Lo porque Ele é bom e perdoa ou lançar-se dum precipício porque Ele tem pena e poder e salva – é tentar a Deus ou invocá-Lo em vão.
Dá-me a impressão de que Rodrigues tem a perceção de que o direito de expressão do pensamento é um direito absoluto e, consequentemente, superior ao direito ao bom nome – o que não é aceitável.
Primeiro, quando calunio, não exprimo pensamento; lanço uma atoarda. Segundo, pelo caráter intrínseco das coisas e pelo ordenamento constitucional, o direito à vida, com tudo o que o envolve em prol da vida condigna (identidade, personalidade, cidadania, nome, reputação…, liberdade, segurança, domicílio, família), precede a liberdade de expressão de pensamento. Lá diziam os filósofos: primum vivere, deinde philosophari. Quando muito estes dois conjuntos de direitos serão equipolentes.
Ora, o articulista entende que, “num Estado de direito, a definição deste caminho virtuoso só encontra um árbitro, o tribunal”. Critica o facto comum de “o caluniador citar abundantemente os seus direitos constitucionais ignorando que os mesmos se estendem a todos os cidadãos e instituições, incluindo os visados”. Diz ser “típico, sobretudo das mentes mais confusas, esperar que o alvo da calúnia se defenda no espaço público criando uma oportunidade ao caluniador de iniciar um pseudodebate no qual vai agravando o grau das invenções e das acusações, numa escalada que o faz sentir uma pessoa cada vez mais importante, um líder de opinião alimentado por uma microlegião de adeptos que o consolam nas redes sociais com comentários solidários”.
É verdade o que afirma, exceto no atinente ao tribunal enquanto árbitro exclusivo para dirimir conflitos. A este respeito, o art.º 39.º e o n.º 3 do art.º 37.º colocam em alternativa “os tribunais judiciais” e “uma entidade administrativa independente”:
“As infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respetivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei”.
Além da via alternativa de solução pela dita entidade administrativa independente, a CRP considera que “as infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social” – não se sobrepondo assim a outros direitos fundamentais.
Quanto ao direito de resposta contemplado nos termos do n.º 4, parece-me temerário não o exercer quando necessário, tal como me parece necessário não banalizar o seu exercício por tudo e por nada ou quando outrem quer levar-nos intempestivamente ao seu exercício fazendo da Comunicação Social palco do teatro de conflitos desnecessário, ineficaz e inútil.
Algo similar se deve dizer em relação à defesa e recuperação do bom nome e reputação. Confiar exclusivamente nos tribunais pode acarretar processos judiciais que poderiam evitar-se através do exercício do direito de resposta ou pela arbitragem extrajudicial. O recurso ao tribunal – lento, caro e incómodo – por mais legítimo que seja, deve evitar-se, até porque os tribunais estão pejados de processos. Ademais, é de inteira justiça de medida que bom nome e reputação esvaziados, manchados ou denegridos na Comunicação Social sejam repostos na Comunicação Social, mesmo que tenha havido recurso aos tribunais ou à arbitragem extrajudicial.
Seja como for, aos detratores do bom nome e reputação de outrem não é lícito, como diz Rodrigues, “estranhar que os seus alvos não lhes respondam diretamente, descendo à sua imaginária ágora, que é quase sempre um pantanoso e doentio ecrã de computador onde são os heróis de um jogo que pensam dominar”. E não podem, ao serem “confrontados com a resposta dos visados pelas suas afirmações delirantes” através dos tribunais, “vitimar-se”, ou considerar-se “alvo de perseguição, chegando a comparar o recurso aos tribunais à censura fascista, numa clara violação do Estado de direito”.
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O que foi acima apontado sobre a relação entre os diversos conjuntos de direitos (pessoais e de expressão) não pretende minimizar o exercício da liberdade de expressão; apenas quer dizer que este não é um direito absoluto nem se sobrepõe aos direitos relativos à vida e à cidadania. Aliás, a redação do texto constitucional não muito díspar quer num caso quer noutro, mas é diferente e a diferença é significativa.
Assim, em relação aos direitos pessoais definidos no n.º 1 do art.º 26.º, apenas se preveem limites à “privação da cidadania” e “restrições à capacidade civil”, que “só podem efetuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos”. Não há pois, limites aos demais direitos pessoais. E, no respeitante à liberdade de expressão e de informação, reconhecida no art.º 37.º, o n.º 2 estabelece:
“O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”.
Ademais, não posso concordar que “a censura da opinião e da liberdade de expressão seja tão lamentável e grave” como “o recurso livre à difamação e à calúnia”. Os limites à liberdade de expressão ou os seus impedimentos não podem decorrer de ato censório, nomeadamente com base em motivos políticos, mas estarão sujeitos aos ditames da dignidade da pessoa humana e de outros valores como segredo de Estado e a segurança das pessoas – ao passo que os direitos pessoais fundamentais não estão sujeitos a limites, exceto os atinentes à cidadania e à capacidade cívica; e estes, na estrita observância da lei, mas nunca por motivos políticos.
E o recurso ao tribunal para fiscalizar os direitos dos cidadãos não é o único no Estado de direito a funcionar em normalidade democrática”, que até criou uma ERC (Entidade Reguladora da Comunicação Social), que assegura “o respeito pelos direitos, liberdades e garantias pessoais (vd art.º 39.º/1 alínea d).
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Equilíbrio, bom senso e ética!
2016.08.09 – Louro de Carvalho

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