quarta-feira, 24 de agosto de 2016

São Bartolomeu ou Natanael, apóstolo

A festa do apóstolo São Bartolomeu celebra-se a 24 de agosto. Também chamado Natanael, este filho do agricultor Tolmai nasceu em Caná da Galileia, pequena aldeia a uns 14 quilómetros de Nazaré, e foi um dos Doze que Jesus chamou ao seu colégio do discipulado (cf Mt 10,1-4; Mc 3,13-19; Lc 6,12-16; Jo 1,38-51; At 1,13) com vista ao apostolado.
Bartolomeu ou Bar-Tolmai é a designação que os evangelhos sinóticos e o Livros dos Atos dão ao apóstolo (cf Mt 10,3; Mc 3,18; Lc 6,14; At 1,13). Porém, o Evangelho de João chama-lhe Natanael (cf Jo 1,45.46.47.48.49). E os historiadores e os biblistas são unânimes em afirmar que Bartolomeu-Natanael se trata de uma só pessoa. O seu melhor amigo era Filipe e ambos eram viajantes. 
Segundo o Evangelho de João foi Filipe quem, no processo da chamada do Senhor, o encontrou e apresentou a Jesus. O 4.º evangelho pormenoriza esse processo (cf Jo 1,35-51). Antes de mais, os apóstolos foram recrutados por Jesus de entre os discípulos do Batista, que lhos apresentou, sendo que dois O seguiram de imediato e Lhe perguntarem onde morava, após o que foram, viram e ficaram:
“No dia seguinte, João [Batista] encontrava-se de novo ali com dois dos seus discípulos. Então, pondo o olhar em Jesus, que passava, disse: ‘Eis o Cordeiro de Deus! Ouvindo-o falar desta maneira, os dois discípulos seguiram Jesus. Jesus voltou-se e, notando que O seguiam, perguntou-lhes: ‘Que pretendeis?’ Eles disseram-lhe: ‘Rabi – que quer dizer Mestre – onde moras?’ Ele respondeu-lhes: ‘Vinde e vereis.’ Foram, pois, e viram onde morava e ficaram com Ele nesse dia. Eram as quatro da tarde.” (vv 35-39).
O dinamismo da escolha contou com a colaboração dos primeiros, que foram dando ao recado a outros e os apresentaram a Jesus, que desde logo talhou missão especial a Simão Pedro:
“André, o irmão de Simão Pedro, era um dos dois que ouviram João e seguiram Jesus. Encontrou primeiro o seu irmão Simão, e disse-lhe: ‘Encontrámos o Messias!’– que quer dizer Cristo. E levou-o até Jesus. Fixando nele o olhar, Jesus disse-lhe: ‘Tu és Simão, o filho de João. Hás de chamar-te Cefas’ – que significa Pedra. No dia seguinte, Jesus resolveu sair para a Galileia. Encontrou Filipe e disse-lhe: ‘Segue-me!’ Filipe era de Betsaida, cidade de André e de Pedro. Filipe encontrou Natanael e disse-lhe: ‘Encontrámos aquele sobre quem escreveram Moisés, na Lei, e os Profetas: Jesus, filho de José de Nazaré.’ Então disse-lhe Natanael: ‘De Nazaré pode vir alguma coisa boa?’ Filipe respondeu-lhe: ‘Vem e verás!’” (vv 40-45).
Depois, vem o encontro de Jesus e Natanael, em que Jesus elogia a sinceridade do novel discípulo, este reconhece Nele o Filho de Deus e o Rei de Israel; e Jesus, embora lhe censure o motivo da sua crença, promete a visão messiânico-escatológica que o apóstolo há de presenciar e em que há de participar:
“Jesus viu Natanael, que vinha ao seu encontro, e disse dele: ‘Aí vem um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento.’ Disse-lhe Natanael: ‘Donde me conheces?’ Respondeu-lhe Jesus: ‘Antes de Filipe te chamar, Eu vi-te quando estavas debaixo da figueira!’ Respondeu Natanael: ‘Rabi, Tu és o Filho de Deus! Tu és o Rei de Israel!’ Retorquiu-lhe Jesus: ‘Tu crês por Eu te ter dito: Vi-te debaixo da figueira? Hás de ver coisas maiores do que estas!’ E acrescentou: ‘Em verdade, em verdade vos digo: vereis o Céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo por meio do Filho do Homem’.” (vv 46-51).
***
É com base no elogio feito a Natanael por Jesus no primeiro encontro de Mestre e discípulo que a Liturgia das Horas (lex orandi lex credendi) chama a Natanael o apóstolo sincero e reconhece que ele se consagrou de coração sincero a Cristo. Depois, afirma que fora por ver a sinceridade que irradiava do coração do oriundo de Caná que o Salvador pôs nele o seu olhar e o quis unir “à sua missão divina de pregar ao velho mundo o que era nova doutrina” (vd hino e oração de Laudes).
De facto, até ao encontro com Jesus, Bartolomeu é preso à Lei e simples, mas cético e irónico. Deus, porém, revê-se comprazido nos que prosseguem diante dele na simplicidade do coração e detesta os corações duplos e hipócritas. Os que usam a dissimulação e a astúcia provocam a sua cólera. O Espírito Santo retira-se dos que são duplos e dissimulados (cf Sb 1,5). Ora, Natanael ganhou o coração do Senhor pela simplicidade e retidão do seu coração (cf Jo 1,47), pois Deus não desprezará a simplicidade, não rejeitará os que se aproximam dele com simplicidade (cf Jb 8,20). O Espírito Santo cumulá-los-á com os seus dons e as suas bênçãos (cf Pr 28,10).
***
Embora pouco se saiba da história de vida de Natanael e mesmo da sua missão autónoma, sabe-se que é efetivamente um dos Doze eleitos por Jesus para andarem com Ele, serem dotados dos seus poderes e enviados em missão como cordeiros para o meio de lobos. Amigo de Filipe, era homem simples e reto, aberto à esperança messiânica de Israel. Cético e irónico em relação ao perfil de Jesus, dada a cidade/aldeia da sua proveniência – Nazaré tinha má fama entre os habitantes de Caná –, porém, depois de convertido por influxo da conversa com Jesus, tornou-se um dos apóstolos mais ativos e presentes na vida pública de Jesus, fazendo jus ao elogio que dele fez o próprio Mestre: “Eis um verdadeiro israelita, no qual não há fingimento” (Jo 1,47). Teve mesmo o privilégio de estar ao lado de Jesus durante a Sua missão terrena. Compartilhou do Seu quotidiano, presenciou os Seus milagres, ouviu os Seus ensinamentos, viu Cristo ressuscitado nas margens do lago de Tiberíades e assistiu à Sua ascensão ao céu.
As palavras de Jesus em que se encontra plasmado o seu elogio a Natanael deixaram-no surpreendido. Na verdade, incluíam a verificação que nos deixa entrever um pouco do espírito de Natanael, o seu amor pela verdade. Com efeito, o apóstolo, para ser eficaz na sua missão, tem de procurar a verdade enquanto discípulo, deixando que a sua inteligência se abra ao mistério que se revela. É o que se verificará quando da primeira aparição de Jesus ressuscitado, em que os apóstolos passam do medo à paz, da procura à fé, da insuficiência humana à cumulação do dom do Espírito Santo, da indiferença para com o mal ao perdão dos pecados, do encerramento em casa ao envio apostólico a pregar o Reino de Deus. Por isso, este apóstolo é um ícone do verdadeiro crente que, iluminado pela Palavra, abandona de vez o ceticismo e a ironia teológica e, agudizando a sua acutilante capacidade visiva interior, reconhece, pela fé, em Jesus o Salvador esperado. Representa o outro lado da procura da fé, simétrico ao de Tomé, que prometeu, levado pela dúvida, não acreditar a não ser que lhe fosse possível o contacto direto com as chagas de Jesus, mas logo se prostrou quando o Ressuscitado se lhe apresentou como exigido e lhe deixou o apelo: não sejas incrédulo, mas crente. E todos aprendemos com Tomé o protesto de fé adorante, Meu Senhor e meu Deus, como de Bartolomeu, Tu és o Filho de Deus.
Diversas tradições colocam o apóstolo Bartolomeu em diferentes regiões do mundo, o que pode indicar um vastíssimo raio de ação. Segundo o que aduz uma das tradições, depois de ter pregado o Evangelho na região da Arménia e Índia, foi esfolado vivo na Pérsia, coroando a sua laboriosa vida missionária com a glória do martírio, no ano 51, perseguido por aqueles que não aceitavam a Boa Nova de Cristo. Porém, segundo a tradição não terá morrido pelo esfolamento, pelo que sofreu a morte por decapitação.
Em suma, Bartolomeu viu os prodígios operados pelo Mestre, ouviu a sua mensagem, assistiu à sua paixão e glorificação, após o que se tornou arauto da Boa Nova, aceitando com o mesmo entusiasmo as consequências dum testemunho comprometido. É um verdadeiro apóstolo, que nos inspira também ao seguimento de Jesus.
***
A meditação do encontro de Natanael/Bartolomeu com Jesus mostra-nos como o Senhor bem conhece o coração do homem, pelo que pode chamar, com autoridade, aqueles que pretende que o Sigam e estejam mais perto de Si. Chama para colocar os homens em relação com o Céu, para Se revelar no seu ser – “Filho do homem e Filho de Deus” – e missão, sempre em completa relação com o Pai e connosco, centro de confluência do movimento de Deus para os homens e da ânsia dos corações dos homens por Deus. Na verdade, quem se aproxima de Jesus como Natanael vê o céu aberto e os anjos de Deus subir e descer sobre o Filho do homem. Os Doze, estão com Jesus, hão de ver o Pai agir e permanecer no Filho do Homem numa intensa união que se manifestará plenamente na Paixão de Jesus, quando Ele for içado na cruz e reintroduzido na glória do Pai. Então se realizará o sonho de Jacob em Betel (cf Gn 28,10-22).
Somos todos chamados a contemplar esta profunda revelação e participar nela. A Eucaristia faz-nos reviver o mistério da morte e glorificação de Jesus, sacerdote e vítima da nova aliança ante o Pai em prol dos homens. Com Jesus, deveremos ser sacerdotes e vítimas fazendo a oblação de nós mesmos para glória e alegria de Deus e salvação da humanidade. E, ao mesmo tempo, pela comunhão do Corpo e Sangue de Cristo, participamos do banquete da salvação enquanto esperamos jubilosamente a última vinda de Cristo Salvador. O Senhor revela-Se-nos como aos Apóstolos, os doze alicerces sobre os quais se apoia a muralha da cidade, “a noiva, a esposa do Cordeiro” (Ap 21,9).
***

A Liturgia das Horas de S. Bartolomeu tomou para 2.ª leitura do Ofício de Leitura um excerto das homilias de S. João Crisóstomo, que nos dá o cerne da vida interior e da missão do apóstolo:

“A mensagem da cruz, anunciada por homens sem cultura, teve tal poder de persuasão que se estendeu a todo o orbe da terra; não o conseguiu com argumentos vulgares, mas falando de Deus e da verdadeira religião, da moral evangélica e do juízo futuro; e, deste modo, converteu em grandes sábios os que eram homens rudes e ignorantes. Vede como a loucura e a fraqueza de Deus vence a sabedoria e a força dos homens. A cruz invadiu a terra inteira, conquistou todos os povos. Quando tudo se conjugava para extinguir o nome do Crucificado, aconteceu o contrário. Este nome brilhou e difundiu-se cada vez mais, enquanto os inimigos caíam e desapareciam: homens vivos, que declararam guerra a um morto, não puderam vencê-lo! Por isso, quando um pagão me declara morto, está a mostrar ainda a sua loucura; quando me considera louco, então se manifesta que a minha sabedoria ultrapassa a dos sábios; quando me chama enfermo, então revela a sua própria fraqueza. Na verdade, o que por graça de Deus conseguiam realizar os publicanos e pecadores, nunca puderam sequer imaginá-los os filósofos nem os monarcas nem todas as forças do universo. 
“Pensando nisto, Paulo dizia: ‘A fraqueza de Deus é mais forte do que todos os homens’. Assim se revela que esta mensagem é divina. Como se explica que 12 homens apenas, sem instrução alguma, cuja vida decorria junto aos lagos e rios, em locais desertos, empreendessem obra de tão grandes proporções? Talvez nunca tivessem vindo à cidade, ao foro; como ousaram entrar em luta contra todo o mundo? Além disso, eram tímidos e pusilânimes, como demonstra quem escreveu a respeito deles, sem nada dissimular dos seus defeitos, o que constitui a maior prova da sua veracidade. Que diz ele então a respeito desses homens? Que quando Cristo foi preso, eles fugiram e o principal de todos O negou, apesar dos inúmeros milagres que tinham presenciado. 
“Como se explica então que aqueles homens não tenham resistido ao ataque dos judeus enquanto Cristo vivia e, depois de Cristo morto, sepultado e, como dizem os incréus, não ressuscitado (e assim sem poder falar-lhes), d’Ele tenham recebido coragem para enfrentar o mundo inteiro? Porventura não diriam de si para si:
‘Que é isto? Se Ele não pôde salvar-Se a Si mesmo, como poderá proteger-nos a nós? Se quando estava vivo não conseguiu defender-Se, como poderá, depois de morto, estender-nos a mão para nos ajudar? Se Ele, enquanto vivia, não convenceu um só povo, como havemos nós de convencer o mundo inteiro invocando o seu nome? Não seria certamente contra a razão não só fazer isso, mas até pensá-lo?’. 
“É evidente que, se não O tivessem visto ressuscitado e não tivessem garantias seguras do seu poder, não se teriam lançado a tão grande aventura.”
Face a isto, quem recusa ter a sua quota-parte na escola de discípulos e na ação apostólica?

2016.08.24 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário