A festa do
apóstolo São Bartolomeu celebra-se a 24 de agosto. Também chamado Natanael,
este filho do agricultor Tolmai nasceu em Caná da Galileia, pequena aldeia a uns
14 quilómetros de Nazaré, e foi um dos Doze que Jesus chamou ao seu colégio do
discipulado (cf Mt 10,1-4; Mc 3,13-19; Lc 6,12-16; Jo 1,38-51; At 1,13) com vista ao apostolado.
Bartolomeu ou Bar-Tolmai é a designação que os
evangelhos sinóticos e o Livros dos Atos dão ao apóstolo (cf Mt 10,3; Mc 3,18; Lc 6,14; At 1,13). Porém, o Evangelho de João chama-lhe Natanael (cf Jo
1,45.46.47.48.49). E os
historiadores e os biblistas são unânimes em afirmar que Bartolomeu-Natanael se
trata de uma só pessoa. O seu melhor amigo era Filipe e ambos eram
viajantes.
Segundo o Evangelho
de João foi Filipe quem, no processo da chamada do Senhor, o encontrou e
apresentou a Jesus. O 4.º evangelho pormenoriza esse processo (cf Jo
1,35-51). Antes de mais, os apóstolos foram
recrutados por Jesus de entre os discípulos do Batista, que lhos apresentou,
sendo que dois O seguiram de imediato e Lhe perguntarem onde morava, após o que
foram, viram e ficaram:
“No dia seguinte, João [Batista]
encontrava-se de novo ali com dois dos seus discípulos. Então, pondo o olhar em Jesus, que
passava, disse: ‘Eis o Cordeiro de Deus!’ Ouvindo-o falar desta maneira, os dois
discípulos seguiram Jesus. Jesus
voltou-se e, notando que O seguiam, perguntou-lhes: ‘Que pretendeis?’ Eles
disseram-lhe: ‘Rabi – que quer dizer Mestre – onde moras?’ Ele respondeu-lhes: ‘Vinde e vereis.’
Foram, pois, e viram onde morava e ficaram com Ele nesse dia. Eram as quatro da
tarde.” (vv 35-39).
O dinamismo
da escolha contou com a colaboração dos primeiros, que foram dando ao recado a outros
e os apresentaram a Jesus, que desde logo talhou missão especial a Simão Pedro:
“André, o irmão de Simão Pedro, era um
dos dois que ouviram João e seguiram Jesus. Encontrou
primeiro o seu irmão Simão, e disse-lhe: ‘Encontrámos o Messias!’– que quer
dizer Cristo. E levou-o até Jesus.
Fixando nele o olhar, Jesus disse-lhe: ‘Tu és Simão, o filho de João. Hás de
chamar-te Cefas’ – que significa Pedra. No dia seguinte, Jesus resolveu sair para
a Galileia. Encontrou Filipe e disse-lhe: ‘Segue-me!’ Filipe era de Betsaida, cidade
de André e de Pedro. Filipe encontrou
Natanael e disse-lhe: ‘Encontrámos aquele sobre quem escreveram Moisés, na Lei,
e os Profetas: Jesus, filho de José de Nazaré.’ Então disse-lhe Natanael: ‘De Nazaré pode
vir alguma coisa boa?’ Filipe respondeu-lhe: ‘Vem e verás!’” (vv 40-45).
Depois, vem o
encontro de Jesus e Natanael, em que Jesus elogia a sinceridade do novel discípulo,
este reconhece Nele o Filho de Deus e o Rei de Israel; e Jesus, embora lhe
censure o motivo da sua crença, promete a visão messiânico-escatológica que o
apóstolo há de presenciar e em que há de participar:
“Jesus viu Natanael, que vinha ao seu
encontro, e disse dele: ‘Aí vem um verdadeiro israelita, em quem não há
fingimento.’ Disse-lhe Natanael: ‘Donde me conheces?’ Respondeu-lhe Jesus:
‘Antes de Filipe te chamar, Eu vi-te quando estavas debaixo da figueira!’
Respondeu Natanael: ‘Rabi, Tu és o Filho de Deus! Tu és o Rei de Israel!’ Retorquiu-lhe Jesus: ‘Tu crês por Eu te ter
dito: Vi-te debaixo da figueira? Hás
de ver coisas maiores do que estas!’ E
acrescentou: ‘Em verdade, em verdade vos digo: vereis o Céu aberto e os anjos
de Deus subindo e descendo por meio do Filho do Homem’.” (vv 46-51).
***
É com base
no elogio feito a Natanael por Jesus no primeiro encontro de Mestre e discípulo
que a Liturgia das Horas (lex orandi
lex credendi) chama a
Natanael o apóstolo sincero e reconhece que ele se consagrou de coração sincero
a Cristo. Depois, afirma que fora por ver a sinceridade que irradiava do
coração do oriundo de Caná que o Salvador pôs nele o seu olhar e o quis unir “à
sua missão divina de pregar ao velho mundo o que era nova doutrina” (vd hino e
oração de Laudes).
De facto,
até ao encontro com Jesus, Bartolomeu é preso à Lei e simples, mas cético e
irónico. Deus, porém, revê-se comprazido nos que prosseguem diante dele na
simplicidade do coração e detesta os corações duplos e hipócritas. Os que usam
a dissimulação e a astúcia provocam a sua cólera. O Espírito Santo retira-se dos
que são duplos e dissimulados (cf Sb 1,5). Ora, Natanael
ganhou o coração do Senhor pela simplicidade e retidão do seu coração (cf Jo 1,47), pois Deus não desprezará a simplicidade, não
rejeitará os que se aproximam dele com simplicidade (cf Jb 8,20). O Espírito Santo cumulá-los-á com os seus dons e as
suas bênçãos (cf Pr 28,10).
***
Embora pouco
se saiba da história de vida de Natanael e mesmo da sua missão autónoma,
sabe-se que é efetivamente um dos Doze eleitos por Jesus para andarem com Ele, serem
dotados dos seus poderes e enviados em missão como cordeiros para o meio de
lobos. Amigo de Filipe, era homem simples e reto, aberto à esperança messiânica
de Israel. Cético e irónico em relação ao perfil de Jesus, dada a cidade/aldeia
da sua proveniência – Nazaré tinha má fama entre os habitantes de Caná –, porém, depois de convertido por influxo da conversa
com Jesus, tornou-se um dos apóstolos mais ativos e presentes na vida pública
de Jesus, fazendo jus ao elogio que dele fez o próprio Mestre: “Eis um verdadeiro israelita, no qual não há fingimento” (Jo 1,47). Teve mesmo o privilégio de estar ao lado de
Jesus durante a Sua missão terrena. Compartilhou do Seu quotidiano, presenciou
os Seus milagres, ouviu os Seus ensinamentos, viu Cristo ressuscitado nas
margens do lago de Tiberíades e assistiu à Sua ascensão ao céu.
As palavras
de Jesus em que se encontra plasmado o seu elogio a Natanael deixaram-no
surpreendido. Na verdade, incluíam a verificação que nos deixa entrever um
pouco do espírito de Natanael, o seu amor pela verdade. Com efeito, o apóstolo,
para ser eficaz na sua missão, tem de procurar a verdade enquanto discípulo,
deixando que a sua inteligência se abra ao mistério que se revela. É o que se
verificará quando da primeira aparição de Jesus ressuscitado, em que os
apóstolos passam do medo à paz, da procura à fé, da insuficiência humana à
cumulação do dom do Espírito Santo, da indiferença para com o mal ao perdão dos
pecados, do encerramento em casa ao envio apostólico a pregar o Reino de Deus.
Por isso, este apóstolo é um ícone do verdadeiro crente que, iluminado pela
Palavra, abandona de vez o ceticismo e a ironia teológica e, agudizando a sua acutilante
capacidade visiva interior, reconhece, pela fé, em Jesus o Salvador esperado.
Representa o outro lado da procura da fé, simétrico ao de Tomé, que prometeu,
levado pela dúvida, não acreditar a não ser que lhe fosse possível o contacto
direto com as chagas de Jesus, mas logo se prostrou quando o Ressuscitado se
lhe apresentou como exigido e lhe deixou o apelo: não sejas incrédulo, mas crente. E todos aprendemos com Tomé o protesto
de fé adorante, Meu Senhor e meu Deus,
como de Bartolomeu, Tu
és o Filho de Deus.
Diversas tradições colocam o apóstolo Bartolomeu em
diferentes regiões do mundo, o que pode indicar um vastíssimo raio de ação.
Segundo o que aduz uma das tradições, depois de ter pregado o Evangelho na região da Arménia e Índia, foi esfolado
vivo na Pérsia, coroando a sua laboriosa vida missionária com a glória do martírio,
no ano 51, perseguido
por aqueles que não aceitavam a Boa Nova de Cristo. Porém, segundo
a tradição não terá morrido pelo esfolamento, pelo que sofreu a morte por
decapitação.
Em suma,
Bartolomeu viu os prodígios operados pelo Mestre, ouviu a sua mensagem,
assistiu à sua paixão e glorificação, após o que se tornou arauto da Boa Nova,
aceitando com o mesmo entusiasmo as consequências dum testemunho comprometido.
É um verdadeiro apóstolo, que nos inspira também ao seguimento de Jesus.
***
A meditação
do encontro de Natanael/Bartolomeu com Jesus mostra-nos como o Senhor bem conhece
o coração do homem, pelo que pode chamar, com autoridade, aqueles que pretende
que o Sigam e estejam mais perto de Si. Chama para colocar os homens em relação
com o Céu, para Se revelar no seu ser – “Filho
do homem e Filho de Deus” – e missão, sempre em completa relação com o Pai
e connosco, centro de confluência do movimento de Deus para os homens e da
ânsia dos corações dos homens por Deus. Na verdade, quem se aproxima de Jesus
como Natanael vê o céu aberto e os anjos de Deus subir e descer sobre o Filho
do homem. Os Doze, estão com Jesus, hão de ver o Pai agir e permanecer no Filho
do Homem numa intensa união que se manifestará plenamente na Paixão de Jesus,
quando Ele for içado na cruz e reintroduzido na glória do Pai. Então se
realizará o sonho de Jacob em Betel (cf Gn 28,10-22).
Somos todos chamados
a contemplar esta profunda revelação e participar nela. A Eucaristia faz-nos
reviver o mistério da morte e glorificação de Jesus, sacerdote e vítima da nova
aliança ante o Pai em prol dos homens. Com Jesus, deveremos ser sacerdotes e
vítimas fazendo a oblação de nós mesmos para glória e alegria de Deus e
salvação da humanidade. E, ao mesmo tempo, pela comunhão do Corpo e Sangue de
Cristo, participamos do banquete da salvação enquanto esperamos jubilosamente a
última vinda de Cristo Salvador. O Senhor revela-Se-nos como aos Apóstolos,
os doze alicerces sobre os quais se apoia a muralha da cidade, “a noiva, a esposa do Cordeiro” (Ap 21,9).
***
A Liturgia das
Horas de S. Bartolomeu tomou para 2.ª leitura do Ofício de Leitura um excerto
das homilias de S. João Crisóstomo, que nos dá o cerne da vida interior e da missão
do apóstolo:
“A
mensagem da cruz, anunciada por homens sem cultura, teve tal poder de persuasão
que se estendeu a todo o orbe da terra; não o conseguiu com argumentos
vulgares, mas falando de Deus e da verdadeira religião, da moral evangélica e do
juízo futuro; e, deste modo, converteu em grandes sábios os que eram homens
rudes e ignorantes. Vede como a loucura e a fraqueza de Deus vence a sabedoria
e a força dos homens. A cruz
invadiu a terra inteira, conquistou todos os povos. Quando tudo se conjugava
para extinguir o nome do Crucificado, aconteceu o contrário. Este nome brilhou
e difundiu-se cada vez mais, enquanto os inimigos caíam e desapareciam: homens
vivos, que declararam guerra a um morto, não puderam vencê-lo! Por isso, quando
um pagão me declara morto, está a mostrar ainda a sua loucura; quando me
considera louco, então se manifesta que a minha sabedoria ultrapassa a dos
sábios; quando me chama enfermo, então revela a sua própria fraqueza. Na
verdade, o que por graça de Deus conseguiam realizar os publicanos e pecadores,
nunca puderam sequer imaginá-los os filósofos nem os monarcas nem todas as
forças do universo.
“Pensando
nisto, Paulo dizia: ‘A fraqueza de Deus é mais forte do que todos os homens’.
Assim se revela que esta mensagem é divina. Como se explica que 12 homens
apenas, sem instrução alguma, cuja vida decorria junto aos lagos e rios, em locais
desertos, empreendessem obra de tão grandes proporções? Talvez nunca tivessem
vindo à cidade, ao foro; como ousaram entrar em luta contra todo o mundo? Além
disso, eram tímidos e pusilânimes, como demonstra quem escreveu a respeito
deles, sem nada dissimular dos seus defeitos, o que constitui a maior prova da
sua veracidade. Que diz ele então a respeito desses homens? Que quando Cristo
foi preso, eles fugiram e o principal de todos O negou, apesar dos inúmeros
milagres que tinham presenciado.
“Como
se explica então que aqueles homens não tenham resistido ao ataque dos judeus
enquanto Cristo vivia e, depois de Cristo morto, sepultado e, como dizem os
incréus, não ressuscitado (e assim sem poder falar-lhes), d’Ele tenham recebido coragem para enfrentar o mundo
inteiro? Porventura não diriam de si para si:
‘Que é
isto? Se Ele não pôde salvar-Se a Si mesmo, como poderá proteger-nos a nós? Se
quando estava vivo não conseguiu defender-Se, como poderá, depois de morto,
estender-nos a mão para nos ajudar? Se Ele, enquanto vivia, não convenceu um só
povo, como havemos nós de convencer o mundo inteiro invocando o seu nome? Não
seria certamente contra a razão não só fazer isso, mas até pensá-lo?’.
“É
evidente que, se não O tivessem visto ressuscitado e não tivessem garantias
seguras do seu poder, não se teriam lançado a tão grande aventura.”
Face a isto, quem recusa ter a sua quota-parte na escola de
discípulos e na ação apostólica?
2016.08.24 – Louro de
Carvalho
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