Ir
a Fátima num sábado de agosto pode significar elevada sintonia com a veneração
da Mãe de Deus à qual a tradição litúrgica admite a possibilidade de, nos sábados
do tempo comum, se tomar para celebração a memória de Santa Maria, quer pela
Liturgia das Horas, quer pela ação eucarística. E visitar o santuário mariano
de Fátima no dia 27 de agosto, em que a Liturgia apresenta a celebração
facultativa da memória de Santa Mónica, mãe de Santo Agostinho, induz uma
aproximação espiritual entre o santuário erigido para promoção devocional e
cultual das dimensões da Penitência e da Oração e a economia apostólica das
lágrimas e oração da mãe pela conversão do filho mergulhado no vício, no erro,
na heresia e na mundanidade – porém, invadido da sede ansiosa incontornável de
Deus.
Só
não é expectável que o visitante (aliás os visitantes) ouse colocar-se à margem deste
dinamismo da misericórdia num santuário em que se releva a dimensão feminina da
misericórdia de Deus Pai e tudo nos encaminha por Maria para Jesus e com Ele,
por Ele e Nele para a Santíssima Trindade. Se tal dinamismo se encontra presente
na arquitetura do espaço do Santuário de Fátima, nas memórias e na sequência
habitual dos atos de culto e de devoção, a edificação da Basílica da Santíssima
Trindade permite o reforço desta hermenêutica do espaço fatimita. Assim, depois
de revisitar a capelinha das Aparições em que se torna indispensável a
saudação, o agradecimento e a prece a Santa Maria, e depois da contemplação da
Basílica refrescada da Senhora do Rosário (com um enquadramento
condigno da memória dos pastorinhos videntes) e do gracioso altar do recinto de oração – que dá
beleza ao espaço da liturgia campal e confere solenidade altaneira à
tradicional Basílica (é mister restaurar o uso do tricórnio
para os concelebrantes não apanharem sol e uma capa superparamental para não
apanharem chuva) –
surge a revisitação à moderníssima Basílica da Santíssima Trindade.
Entrar
pela Porta de Cristo, depois de mergulhar no contexto mariano, é agradável ler,
reler e interiorizar a trinomia da saudação paulina da frontaria: “A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor
de Deus [do Pai] e a comunhão do Espírito Santo”. Depois, há que entrar e
rezar na amplidão daquele espaço, fixar a imagem de Cristo, mirar o altar com a
relíquia da “portiuncula lapidis extracta
e tumulo Santi Petri…” (a marcar a comunhão do Santuário e
da Mensagem com a, e da, Igreja de Roma) e lançar o olhar para a imagem
da Virgem que apresenta aos filhos o coração maternal, símbolo da ternura e da
misericórdia de Deus e da graça e do carinho do Pai pelos filhos que ora se
afastam da casa paterna ora se julgam os únicos e zelosos cumpridores de todas
as leis, regulamentos e ordens, julgando-se melhores que os demais a quem têm a
tentação de banir.
Todavia,
é conveniente não esquecer que a entrada na Basílica está franqueada por mais
doze portas, cada uma correspondente ao nome e à missão específica de cada um
dos apóstolos. Servem com Cristo, reinam com Cristo: recebem com Ele e com a
Trindade o culto do povo de Deus. É de fazer sobressair o recolhimento da
capela do Santíssimo Sacramento, qual reserva eucarística e móbil da adoração
profunda dos crentes, e as capelas da reconciliação – tudo na cripta, mas a ter
em especial linha de conta neste Ano Jubilar da Misericórdia, simbolizado pela
Porta Santa, aberta à transposição dos crentes.
Mas
há mais.
Também
as estátuas daquelas testemunhas qualificadas da misericórdia nos dizem algo de
edificante, seja Pio XII (o primeiro Papa a fazer
uma intervenção de apoio à difusão da devoção e culto a Nossa Senhora de Fátima), Paulo VI (o
primeiro Papa a visitar Fátima como peregrino pela Paz), João Paulo II (que
visitou Fátima por três vezes)
ou o primeiro bispo da diocese restaurada Dom José Alves Correia da Silva (que
reconheceu a veridicidade das aparições e a validade da mensagem e aprovou o
culto de Fátima).
Confesso
– cada um tem a sua mania e eu tenho a minha – que me impressionou a pose do
Papa Paulo VI, em vestes prelatícias, ajoelhado e de mãos postas na direção da
Basílica de Nossa Senhora do Rosário. Lembrei-me da sua vinda a Fátima, a 13 de
maio de 1967, expressamente na qualidade de simples peregrino – “humilde e
confiante” – e tive memória das intenções referidas na sua homilia da missa da
peregrinação: “a paz interior da Igreja” (“a Igreja una, santa, católica e apostólica”), sem esquecer os cristãos não católicos, mas “irmãos nossos pelo baptismo”; e “o mundo, a paz do mundo” – mundo cujo quadro se apresenta “imenso e
dramático”, a necessitar do dom da paz.
***
Porém,
o que mais marcou esta ida a Fátima foi a aquisição do livrinho de Dom António
Couto, bispo de Lamego, sob o título “A
misericórdia – lugar e modo” (coleção “Minima
Theologica”, ed. Letras e Coisas: abril de 2016). Li de um fôlego as 81 páginas, mas prometo reler
ruminando.
Dom
António Couto estrutura a sua escrita de forma sólida e coerente. E a
parentesisação com palavras hebraicas e/ou gregas, bem como, de vez em quando, com
a abundante aposição numérica ao texto confere-lhe uma assinalável marca de
oralidade, secundada pela transcrição de perícopas bíblicas fidelizada aos
textos originais (até pelo uso adequado do hipérbato, do
sublinhado e do itálico)
– obviamente marca oralizante percetível sobretudo por quem já teve a
oportunidade de o ouvir. Em todo o caso, é de toda a conveniência tentar ler
tudo como quem escuta e depois ter em conta as anotações e todo o “paratexto”,
sobretudo as palavras e imagem de capa.
Quanto
ao conteúdo e sua organização já percebi – é ponto assente – que é muito
difícil Dom António Couto não ser surpreendente. E o que me surpreendeu mais
foi exatamente o primeiro capítulo “Deus também reza em clave de misericórdia”.
Surpreendem duas coisas: a postura orante de Deus; e a chave de leitura e
entendimento dessa marca orante, a misericórdia. Surpreendente não será a
factualidade, que pode estar remetida para o olvido, mas a clareza e a
fundamentação textual e argumentativa.
Não
posso esquecer a relevância da introdução histórico-filológica no termo da qual
o autor expõe a estrutura do livro. Mas desde logo há que atentar no destaque
dado à pertinência do imperativo da Imitatio
Dei: Porque Deus ama, exige não a retribuição, mas que se ame o outro. E o
amor deve implicar a dádiva da vida. Mais: à pergunta, “de que outro se trata?”, a resposta é dupla: o outro, diferente de
mim (estrangeiro); e outro que está contra mim (inimigo).
Quanto
ao primeiro capítulo, já referido, não posso deixar de pensar no estilo orante
de Deus, não por necessidade, mas por caraterística sua que remete para o facto
de o homem haver sido criado à imagem e semelhança de Deus. E Deus delibera
desejando que a misericórdia e a graça se sobreponham à ira.
Num
segundo capítulo, o autor desenvolve “A magna
charta do amor de Deus”, segundo os tópicos seguintes: o Deus que passa
expondo-se e rezando, a fórmula de graça e a fórmula de retribuição, os treze
atributos de Deus (Ex 34,6-7 – e porquê 13?) e o orante como sintetizador.
Sobre
o último tópico, é difícil encontrar análise e reflexão tão pertinentes,
completas e fundamentadas do salmo 51, o famoso Miserere. Vale a pena ler, meditar e assumir.
Quanto
à estrita temática da misericórdia, graça, amor e fidelidade, não posso dizer
que haja novidades em comparação com a preleção proferida em Santa Maria da
Feira, a 15 de julho, pp. Todavia, queria dar o braço a torcer, porque, ao
escrever de memória sobre a conferência daquele dia 15, não atinei com a
tipologia do plural atribuído por Dom António à palavra hebraica traduzível por
“as misericórdias” – “plural intensivo”
– a que dei outras designações, embora não de todo descabidas. Por outro lado, ficou
agora mais estreita a relação entre o amor e a misericórdia na certeza que é a
Deus que pertence a iniciativa, bem como a análise do salmo 137. Não tinha
reparado que a versão dos LXX tinha traduzido a palavra hebraica que significa “bom”
por chrestós como no salmo 34 e que
tal se repercute no Novo Testamento, por exemplo, logo na 1.ª carta de Pedro.
E
não deixa de ser gratificante reler, primeiro, a tradução antoniana dos textos
bíblicos que fundamentam a epígrafe do capítulo 3 “Jesus misericordioso,
transparência da misericórdia do Pai” e, depois, os comentários marcados pela
fidelidade aos textos originais, pela aguda reflexão teológica e pelo apelo à
assunção pessoal dos mesmos por parte dos leitores.
É
pertinente a chamada de atenção para a necessidade de nos colocarmos do lado
adequado para ouvirmos com proveito o relato dos episódios (históricos
e/ou parabólicos) em
que Jesus sustenta a sua ação misericordiosa perante as fomes das pessoas,
perante a dor, para o ensino aos discípulos ou para enaltecer o Pai das
misericórdias.
***
Com
efeito, ler os atributos de Deus ou as replicações de Moisés, o salmo 137 (o
do amor fiel e comprometido),
o salmo Miserere ou os textos lucanos
sobre a misericórdia – em especial, o capítulo 15 – com a chaves de leitura de
António Couto pode constituir uma forte mais-valia para a renovação pessoal e
para a revolução pastoral de que o mundo precisa da parte da Igreja. E Fátima, como espaço geográfico bafejado pela misericórdia,
será um bom ponto de apoio.
Parece
que deve ficar proibido dizer-se que as “mitras” anulam as inteligências ou
esconjurar Braga como o sítio do “torno” de amoldação dos bispos, como referem
as más-línguas.
2016.08.28 – Louro de Carvalho
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