domingo, 28 de agosto de 2016

Em Fátima no dia de Santa Mónica

Ir a Fátima num sábado de agosto pode significar elevada sintonia com a veneração da Mãe de Deus à qual a tradição litúrgica admite a possibilidade de, nos sábados do tempo comum, se tomar para celebração a memória de Santa Maria, quer pela Liturgia das Horas, quer pela ação eucarística. E visitar o santuário mariano de Fátima no dia 27 de agosto, em que a Liturgia apresenta a celebração facultativa da memória de Santa Mónica, mãe de Santo Agostinho, induz uma aproximação espiritual entre o santuário erigido para promoção devocional e cultual das dimensões da Penitência e da Oração e a economia apostólica das lágrimas e oração da mãe pela conversão do filho mergulhado no vício, no erro, na heresia e na mundanidade – porém, invadido da sede ansiosa incontornável de Deus.
Só não é expectável que o visitante (aliás os visitantes) ouse colocar-se à margem deste dinamismo da misericórdia num santuário em que se releva a dimensão feminina da misericórdia de Deus Pai e tudo nos encaminha por Maria para Jesus e com Ele, por Ele e Nele para a Santíssima Trindade. Se tal dinamismo se encontra presente na arquitetura do espaço do Santuário de Fátima, nas memórias e na sequência habitual dos atos de culto e de devoção, a edificação da Basílica da Santíssima Trindade permite o reforço desta hermenêutica do espaço fatimita. Assim, depois de revisitar a capelinha das Aparições em que se torna indispensável a saudação, o agradecimento e a prece a Santa Maria, e depois da contemplação da Basílica refrescada da Senhora do Rosário (com um enquadramento condigno da memória dos pastorinhos videntes) e do gracioso altar do recinto de oração – que dá beleza ao espaço da liturgia campal e confere solenidade altaneira à tradicional Basílica (é mister restaurar o uso do tricórnio para os concelebrantes não apanharem sol e uma capa superparamental para não apanharem chuva) – surge a revisitação à moderníssima Basílica da Santíssima Trindade.
Entrar pela Porta de Cristo, depois de mergulhar no contexto mariano, é agradável ler, reler e interiorizar a trinomia da saudação paulina da frontaria: “A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus [do Pai] e a comunhão do Espírito Santo”. Depois, há que entrar e rezar na amplidão daquele espaço, fixar a imagem de Cristo, mirar o altar com a relíquia da “portiuncula lapidis extracta e tumulo Santi Petri…” (a marcar a comunhão do Santuário e da Mensagem com a, e da,  Igreja de Roma) e lançar o olhar para a imagem da Virgem que apresenta aos filhos o coração maternal, símbolo da ternura e da misericórdia de Deus e da graça e do carinho do Pai pelos filhos que ora se afastam da casa paterna ora se julgam os únicos e zelosos cumpridores de todas as leis, regulamentos e ordens, julgando-se melhores que os demais a quem têm a tentação de banir.
Todavia, é conveniente não esquecer que a entrada na Basílica está franqueada por mais doze portas, cada uma correspondente ao nome e à missão específica de cada um dos apóstolos. Servem com Cristo, reinam com Cristo: recebem com Ele e com a Trindade o culto do povo de Deus. É de fazer sobressair o recolhimento da capela do Santíssimo Sacramento, qual reserva eucarística e móbil da adoração profunda dos crentes, e as capelas da reconciliação – tudo na cripta, mas a ter em especial linha de conta neste Ano Jubilar da Misericórdia, simbolizado pela Porta Santa, aberta à transposição dos crentes.
Mas há mais.
Também as estátuas daquelas testemunhas qualificadas da misericórdia nos dizem algo de edificante, seja Pio XII (o primeiro Papa a fazer uma intervenção de apoio à difusão da devoção e culto a Nossa Senhora de Fátima), Paulo VI (o primeiro Papa a visitar Fátima como peregrino pela Paz), João Paulo II (que visitou Fátima por três vezes) ou o primeiro bispo da diocese restaurada Dom José Alves Correia da Silva (que reconheceu a veridicidade das aparições e a validade da mensagem e aprovou o culto de Fátima).
Confesso – cada um tem a sua mania e eu tenho a minha – que me impressionou a pose do Papa Paulo VI, em vestes prelatícias, ajoelhado e de mãos postas na direção da Basílica de Nossa Senhora do Rosário. Lembrei-me da sua vinda a Fátima, a 13 de maio de 1967, expressamente na qualidade de simples peregrino – “humilde e confiante” – e tive memória das intenções referidas na sua homilia da missa da peregrinação: “a paz interior da Igreja” (a Igreja una, santa, católica e apostólica”), sem esquecer  os cristãos não católicos, mas “irmãos nossos pelo baptismo”; e “o mundo, a paz do mundo” – mundo cujo quadro se apresenta “imenso e dramático”, a necessitar do dom da paz.
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Porém, o que mais marcou esta ida a Fátima foi a aquisição do livrinho de Dom António Couto, bispo de Lamego, sob o título “A misericórdia – lugar e modo” (coleção “Minima Theologica”, ed. Letras e Coisas: abril de 2016). Li de um fôlego as 81 páginas, mas prometo reler ruminando.
Dom António Couto estrutura a sua escrita de forma sólida e coerente. E a parentesisação com palavras hebraicas e/ou gregas, bem como, de vez em quando, com a abundante aposição numérica ao texto confere-lhe uma assinalável marca de oralidade, secundada pela transcrição de perícopas bíblicas fidelizada aos textos originais (até pelo uso adequado do hipérbato, do sublinhado e do itálico) – obviamente marca oralizante percetível sobretudo por quem já teve a oportunidade de o ouvir. Em todo o caso, é de toda a conveniência tentar ler tudo como quem escuta e depois ter em conta as anotações e todo o “paratexto”, sobretudo as palavras e imagem de capa.  
Quanto ao conteúdo e sua organização já percebi – é ponto assente – que é muito difícil Dom António Couto não ser surpreendente. E o que me surpreendeu mais foi exatamente o primeiro capítulo “Deus também reza em clave de misericórdia”. Surpreendem duas coisas: a postura orante de Deus; e a chave de leitura e entendimento dessa marca orante, a misericórdia. Surpreendente não será a factualidade, que pode estar remetida para o olvido, mas a clareza e a fundamentação textual e argumentativa.
Não posso esquecer a relevância da introdução histórico-filológica no termo da qual o autor expõe a estrutura do livro. Mas desde logo há que atentar no destaque dado à pertinência do imperativo da Imitatio Dei: Porque Deus ama, exige não a retribuição, mas que se ame o outro. E o amor deve implicar a dádiva da vida. Mais: à pergunta, “de que outro se trata?”, a resposta é dupla: o outro, diferente de mim (estrangeiro); e outro que está contra mim (inimigo).
Quanto ao primeiro capítulo, já referido, não posso deixar de pensar no estilo orante de Deus, não por necessidade, mas por caraterística sua que remete para o facto de o homem haver sido criado à imagem e semelhança de Deus. E Deus delibera desejando que a misericórdia e a graça se sobreponham à ira.
Num segundo capítulo, o autor desenvolve “A magna charta do amor de Deus”, segundo os tópicos seguintes: o Deus que passa expondo-se e rezando, a fórmula de graça e a fórmula de retribuição, os treze atributos de Deus (Ex 34,6-7 – e porquê 13?) e o orante como sintetizador.
Sobre o último tópico, é difícil encontrar análise e reflexão tão pertinentes, completas e fundamentadas do salmo 51, o famoso Miserere. Vale a pena ler, meditar e assumir.
Quanto à estrita temática da misericórdia, graça, amor e fidelidade, não posso dizer que haja novidades em comparação com a preleção proferida em Santa Maria da Feira, a 15 de julho, pp. Todavia, queria dar o braço a torcer, porque, ao escrever de memória sobre a conferência daquele dia 15, não atinei com a tipologia do plural atribuído por Dom António à palavra hebraica traduzível por “as misericórdias” – “plural intensivo” – a que dei outras designações, embora não de todo descabidas. Por outro lado, ficou agora mais estreita a relação entre o amor e a misericórdia na certeza que é a Deus que pertence a iniciativa, bem como a análise do salmo 137. Não tinha reparado que a versão dos LXX tinha traduzido a palavra hebraica que significa “bom” por chrestós como no salmo 34 e que tal se repercute no Novo Testamento, por exemplo, logo na 1.ª carta de Pedro.
E não deixa de ser gratificante reler, primeiro, a tradução antoniana dos textos bíblicos que fundamentam a epígrafe do capítulo 3 “Jesus misericordioso, transparência da misericórdia do Pai” e, depois, os comentários marcados pela fidelidade aos textos originais, pela aguda reflexão teológica e pelo apelo à assunção pessoal dos mesmos por parte dos leitores.
É pertinente a chamada de atenção para a necessidade de nos colocarmos do lado adequado para ouvirmos com proveito o relato dos episódios (históricos e/ou parabólicos) em que Jesus sustenta a sua ação misericordiosa perante as fomes das pessoas, perante a dor, para o ensino aos discípulos ou para enaltecer o Pai das misericórdias.
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Com efeito, ler os atributos de Deus ou as replicações de Moisés, o salmo 137 (o do amor fiel e comprometido), o salmo Miserere ou os textos lucanos sobre a misericórdia – em especial, o capítulo 15 – com a chaves de leitura de António Couto pode constituir uma forte mais-valia para a renovação pessoal e para a revolução pastoral de que o mundo precisa da parte da Igreja. E Fátima, como espaço geográfico bafejado pela misericórdia, será um bom ponto de apoio.
Parece que deve ficar proibido dizer-se que as “mitras” anulam as inteligências ou esconjurar Braga como o sítio do “torno” de amoldação dos bispos, como referem as más-línguas.

2016.08.28 – Louro de Carvalho   

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