domingo, 14 de agosto de 2016

Os mártires Ponciano e Hipólito ou os rivais mártires

Celebra-se a 13 de agosto a memória de dois santos mártires de que as menções litúrgicas são de papa, para Ponciano, e de presbítero, para Hipólito. A referência que a Liturgia das Horas lhes faz é do teor seguinte:
“Ponciano foi ordenado bispo de Roma no ano de 231. Desterrado para a Sardenha, juntamente com o presbítero Hipólito, pelo imperador Maximino, no ano 235, aí morreu, depois de ter abdicado do seu pontificado. O seu corpo foi sepultado no cemitério de Calixto e o de Hipólito no cemitério que está junto à Via Tiburtina. A Igreja Romana presta culto a ambos os mártires já desde o princípio do século IV.”
Fica, pois, a saber-se como foi o seu fim e pouco mais. Diz-se que o seu culto remonta ao início do século IV, mas não se refere que Ponciano era celebrado a 19 de novembro antes do Concílio Vaticano II e que Hipólito era celebrado juntamente com o mártir Cassiano. Não se faz referência à rivalidade que existia entre os dois – Hipólito e Ponciano – quase até à hora da morte dos dois nem à condenação a trabalhos forçados no âmbito da deportação. Dois rivais que tiveram fim semelhante. Por isso, há que tirar desde já a lição:
A história destes dois santos mostra que as fragilidades humanas podem redundar em santidade. Hipólito e Ponciano, que eram adversários, foram agraciados com a conversão e tornaram-se santos mártires da Igreja. Hipólito, mesmo na sua radicalidade, acabou por reconhecer a eleição legítima do Papa Ponciano, devido à manifestação de profundo zelo pastoral daquele pontífice e da sua renúncia para que Roma pudesse eleger em liberdade o seu bispo legítimo. Martirizados juntos, proclamam, em uníssono, o amor radical a Jesus Cristo.
***
O imperador Alexandre Severo aceitara a diversidade religiosa no Império. Entretanto, a própria Igreja tornou-se palco de divisões internas por motivos doutrinais, disciplinares e pastorais. Ponciano e Hipólito viveram em Roma no século III. Estes dois eclesiásticos envolveram-se e foram envolvidos num cisma na Igreja, que os considerava papas, com a aceitação da designação, de um e de outro, pelos respetivos sequazes. 
Hipólito, de língua grega, foi um dos escritores eclesiásticos mais destacados da Igreja de Roma dos primeiros séculos. Presbítero da Igreja de Roma, entrou em conflito logo com o Papa Calisto, dizendo que o novo papa não considerava a legislação sobre o casamento e a penitência e estava a divergir da tradição apostólica. Descontente com o comando da Igreja, proclamou-se papa ao lado de Ponciano, sucessor imediato de Calisto I. 
Em 230, com a morte de Severo, subiu ao trono o imperador Maximino de Trácia que retomou a perseguição religiosa. Imediatamente deportou os dois “papas” para minas de trabalhos forçados, na Sardenha, onde morreram martirizados. 
Para que o seu rebanho não ficasse sem pastor, Ponciano renunciou ao sólio petrino. Foi, assim, o primeiro Papa a ser deportado e o primeiro a resignar. Eram factos novos para a Igreja, que ele administrou com sabedoria, sagacidade e muita humildade.
O gesto da renúncia papal comoveu Hipólito, que percebeu o sincero zelo apostólico de Ponciano. Por isso, também renunciou à sua postura, pondo termo ao prolongado cisma, e reconciliou-se com a Igreja de Roma, antes de morrer, em 235, no mesmo ano que Ponciano. 
Os corpos destes dois mártires foram, provavelmente no ano seguinte no pontificado de Fabião (segundo alguns, apenas em 256 n pontificado de Estêvão I), trasladados para Roma, para os lugares onde se encontram sepultados. 
***
Hipólito de Roma foi o mais importante teólogo do século III na antiga Igreja de Roma, cidade onde provavelmente nasceu. Alguns sustentam que nem foi romano nem latino de nascimento, mas oriundo do Oriente helénico. Como presbítero da Igreja de Roma sob o pontificado do Papa Zeferino (reinante entre 199 e 217), destacou-se pela sua erudição e eloquência. Foi nesta época que Orígenes, então um jovem, o ouviu pregar. Acusou o Papa Zeferino de modalismo – heresia que ensinava que Pai e Filho eram apenas nomes diferentes para o mesmo sujeito.
Hipólito, por sua vez, defendia a doutrina do Logos dos apologistas gregos, que distinguia o Pai do Logos (em latim, Verbum). Conservador do ponto de vista ético, escandalizou-se quando o Papa Calisto I  (reinante entre 217 e 222) estendeu a absolvição aos cristãos que tinham cometido pecados graves, como o adultério, desrespeitando alegadamente a doutrina e disciplina da Penitência e do Matrimónio. Terá sido nesse período que permitiu ser eleito como antipapa ou rival do bispo de Roma, além de ter continuado a atacar os papas Urbano I (reinante entre 222 e 230) e, a seguir, Ponciano (reinante entre 230 e 235).
Fócio apresenta-o na sua Biblioteca como discípulo de Ireneu, que se crê ter sido discípulo de Policarpo e se supõe que o próprio Hipólito assim se considerava. Porém, é duvidosa a veridicidade desta afirmação de Fócio bem como a suposição de Hipólito.
Hipólito entrou, então, em conflito com os papas coevos e parece ter sido mesmo o líder dum grupo cismático como um bispo rival de Roma. Por isso, é considerado como o primeiro antipapa. Opôs-se aos bispos de Roma sob o pretexto de estes afrouxarem as regras da penitência para acomodarem um grande número de novos convertidos da religião pagã. Porém, como vimos, já estava reconciliado com a Igreja quando morreu como mártir.
Foi por entender que o novo Pontífice, ao relaxar a legislação demasiado dura sobre o casamento e a penitência, estava a abandonar a tradição católica – justificando, com este motivo, a sua posição irredutível – que Hipólito – semelhante em génio e obras a Orígenes – escreveu o tratado sobre A Tradição Apostólica, fonte de primeira importância, para conhecermos a Igreja do seu tempo. Queixava-se também de Calisto por este papa ter vindo a ser condescendente quanto ao facto de se cometer um pecado mortal não ser razão suficiente para depor um bispo, como alegava Hipólito em contrário. Reclamava também do facto de o Papa ter admitido às ordens quem se tinha casado duas ou três vezes e de ter reconhecido a legitimidade dos matrimónios entre os escravos e mulheres livres, o que estava proibido pela lei civil. Combateu as mais variadas heresias e foi grande defensor da sã doutrina e disciplina. Hipólito era um homem pouco dado ao perdão.
Ora, as suas atitudes pouco conciliatórias, num tempo de discussão teológica e abertura em termos disciplinares, só poderiam causar problemas no seio da Igreja. As suas “implicâncias” eram tão “ferozes”, as suas críticas tão “ácidas”, o seu palavreado tão propenso à discussão, que começaram a “minar” a autoridade papal com grandes recriminações que atingiam com francas e amplas censuras diretamente o Papa Zeferino, por ser, em sua opinião, não suficientemente preparado para detetar e denunciar as heresias.
Por ocasião da eleição de Calisto I, Hipólito interrompeu as relações com a Igreja de Roma, e, reunindo os seus inúmeros seguidores, consentiu em ser ordenado Bispo de Óstia e em ser colocado como papa (antipapa). Como opositor ao Papa, fundou uma igreja própria, arrastando no cisma parte do clero e do povo de Roma. A sua postura intransigente, a que se aliaram as suas divergências pessoais de oposição e a não disfarçada inveja – porque Calisto fora o preferido pelo clero em detrimento dele como sucessor do Papa Zeferino – fizeram nascer um cisma que durou vinte anos e continuou durante o pontificado de Ponciano, que logrou, com a sua magnanimidade, reconduzir Hipólito e o seu grupo à unidade da Igreja.
***
Ponciano foi Papa de 21 de julho de 230 a 29 de setembro de 235. Durante o seu pontificado, suportou, como se viu, o cisma de Hipólito, que chegou ao fim. Ponciano e outros líderes da Igreja, entre eles Hipólito, foram exilados para a Sardenha pelo imperador Maximino de Trácia e como consequência, ele renunciou ao papado no dia 25 ou 28 de setembro de 235 de 235, para permitir à Igreja eleger outro líder que estivesse presente em Roma, sendo eleito o Papa Antero, de origem grega, cujo pontificado durou apenas 40 dias e a que se seguiu o pontificado de Fabião (236-250).
Morreu de esgotamento, graças ao tratamento desumano nas minas da Sardenha, onde trabalhava. De acordo com a tradição, morreu na ilha de Tavolara.
Ponciano confirmou a condenação de alguns textos de Orígenes, de conteúdo gnóstico, proferida por Demétrio de Alexandria; ordenou o canto dos salmos nas igrejas; prescreveu o “Confiteor” nos ritos iniciais da missa; e introduziu a fórmula de saudação “Dominus vobiscum”.
A sua festa era celebrada a 19 de novembro, mas atualmente é celebrada junto com a do seu rival  Hipólito, a 13 de agosto.
Pelo Catálogo Liberiano é possível verificar que em 13 de agosto, provavelmente de 236 (ou 256 segundo alguns), eles foram enterrados em Roma, como se viu, Hipólito no cemitério na Via Tiburtina e Ponciano, nas Catacumbas de São Calisto. Este documento também indica que, por volta de 255, Hipólito já era considerado um mártir cristão e que se lhe atribui a posição de padre e não a de bispo – mais uma indicação de que antes da sua morte ele já tinha sido recebido novamente no seio da Igreja.
***
Se de Ponciano se pode dizer, “Tal vida, tal fim”, de Hipólito de dirá que, pelo menos soube bem morrer.
Sob a égide deles se poderá dizer, como São Cipriano, bispo e mártir:
“Ditosa a nossa Igreja, que assim é iluminada com o esplendor da bondade divina e ilustrada nos nossos tempos com o glorioso sangue dos mártires. Se antes a vida dos irmãos a adornava com a brancura da inocência, agora reveste-a da púrpura do sangue dos mártires. […]. Esforcemo-nos, agora, todos e cada um de nós, por alcançar a honra de uma e outra altíssima dignidade, a fim de recebermos ou as coroas brancas de uma vida santa ou as coroas de púrpura do martírio.”
E porque não olhar para os numerosos mártires de hoje com este pensamento elogioso e compromissivo?

2016.08.13 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário