Celebra-se a 13 de agosto a memória de dois santos mártires de que as
menções litúrgicas são de papa, para Ponciano, e de presbítero, para Hipólito.
A referência que a Liturgia das Horas lhes faz é do teor seguinte:
“Ponciano
foi ordenado bispo de Roma no ano de 231. Desterrado para a Sardenha,
juntamente com o presbítero Hipólito, pelo imperador Maximino, no ano 235, aí
morreu, depois de ter abdicado do seu pontificado. O seu corpo foi sepultado no
cemitério de Calixto e o de Hipólito no cemitério que está junto à Via
Tiburtina. A Igreja Romana presta culto a ambos os mártires já desde o
princípio do século IV.”
Fica, pois, a saber-se como foi o seu fim e pouco mais. Diz-se que o seu
culto remonta ao início do século IV, mas não se refere que Ponciano era
celebrado a 19 de novembro antes do Concílio Vaticano II e que Hipólito era
celebrado juntamente com o mártir Cassiano. Não se faz referência à rivalidade
que existia entre os dois – Hipólito e Ponciano – quase até à hora da morte dos
dois nem à condenação a trabalhos forçados no âmbito da deportação. Dois rivais
que tiveram fim semelhante. Por isso, há que tirar desde já a lição:
A história
destes dois santos mostra que as fragilidades humanas podem redundar em
santidade. Hipólito e Ponciano, que eram adversários, foram agraciados com a
conversão e tornaram-se santos mártires da Igreja. Hipólito, mesmo na sua
radicalidade, acabou por reconhecer a eleição legítima do Papa Ponciano, devido
à manifestação de profundo zelo pastoral daquele pontífice e da sua renúncia
para que Roma pudesse eleger em liberdade o seu bispo legítimo. Martirizados
juntos, proclamam, em uníssono, o amor radical a Jesus Cristo.
***
O imperador Alexandre
Severo aceitara a diversidade religiosa no Império. Entretanto, a própria
Igreja tornou-se palco de divisões internas por motivos doutrinais,
disciplinares e pastorais. Ponciano e Hipólito viveram em Roma no século III.
Estes dois eclesiásticos envolveram-se e foram envolvidos num cisma na Igreja,
que os considerava papas, com a aceitação da designação, de um e de outro,
pelos respetivos sequazes.
Hipólito, de
língua grega, foi um dos escritores eclesiásticos mais destacados da Igreja de
Roma dos primeiros séculos. Presbítero da Igreja de Roma, entrou em conflito
logo com o Papa Calisto, dizendo que o novo papa não considerava a legislação
sobre o casamento e a penitência e estava a divergir da tradição apostólica.
Descontente com o comando da Igreja, proclamou-se papa ao lado de Ponciano,
sucessor imediato de Calisto I.
Em 230, com
a morte de Severo, subiu ao trono o imperador Maximino de Trácia que retomou a
perseguição religiosa. Imediatamente deportou os dois “papas” para minas de
trabalhos forçados, na Sardenha, onde morreram martirizados.
Para que o seu
rebanho não ficasse sem pastor, Ponciano renunciou ao sólio petrino. Foi,
assim, o primeiro Papa a ser deportado e o primeiro a resignar. Eram factos
novos para a Igreja, que ele administrou com sabedoria, sagacidade e muita
humildade.
O gesto da
renúncia papal comoveu Hipólito, que percebeu o sincero zelo apostólico de
Ponciano. Por isso, também renunciou à sua postura, pondo termo ao prolongado
cisma, e reconciliou-se com a Igreja de Roma, antes de morrer, em 235, no mesmo
ano que Ponciano.
Os corpos
destes dois mártires foram, provavelmente no ano seguinte no pontificado de
Fabião (segundo
alguns, apenas em 256 n pontificado de Estêvão I), trasladados para Roma, para os lugares onde se encontram
sepultados.
***
Hipólito de Roma foi o mais importante teólogo do século III na antiga Igreja de Roma, cidade onde
provavelmente nasceu. Alguns sustentam que nem foi romano nem latino de
nascimento, mas oriundo do Oriente helénico. Como presbítero da Igreja de Roma sob
o pontificado do Papa Zeferino (reinante entre 199 e 217), destacou-se pela sua erudição e
eloquência. Foi nesta época que Orígenes, então um jovem, o ouviu pregar.
Acusou o Papa Zeferino de modalismo – heresia que
ensinava que Pai e Filho eram apenas nomes diferentes para o mesmo sujeito.
Hipólito, por
sua vez, defendia a doutrina do Logos
dos apologistas gregos, que distinguia o Pai do Logos (em latim, Verbum). Conservador do ponto de vista
ético, escandalizou-se quando o Papa Calisto I (reinante entre 217 e 222) estendeu a
absolvição aos cristãos que tinham cometido pecados graves, como o adultério,
desrespeitando alegadamente a doutrina e disciplina da Penitência e do
Matrimónio. Terá sido nesse período que permitiu ser eleito como antipapa ou
rival do bispo de Roma, além de ter continuado a atacar os papas Urbano I (reinante entre 222 e 230) e, a seguir,
Ponciano (reinante entre 230 e 235).
Fócio
apresenta-o na sua Biblioteca como discípulo de Ireneu, que se crê
ter sido discípulo de Policarpo e
se supõe que o próprio Hipólito assim se considerava. Porém, é duvidosa a
veridicidade desta afirmação de Fócio bem como a suposição de Hipólito.
Hipólito entrou,
então, em conflito com os papas coevos e parece ter sido mesmo o líder dum
grupo cismático como um bispo rival de Roma. Por isso, é considerado como o
primeiro antipapa. Opôs-se aos bispos de Roma sob o pretexto de estes
afrouxarem as regras da penitência para acomodarem um grande número de novos
convertidos da religião pagã. Porém, como vimos, já estava reconciliado com a
Igreja quando morreu como mártir.
Foi por
entender que o novo Pontífice, ao relaxar a legislação demasiado dura sobre o
casamento e a penitência, estava a abandonar a tradição católica – justificando,
com este motivo, a sua posição irredutível – que Hipólito – semelhante em génio
e obras a Orígenes – escreveu o tratado sobre A
Tradição Apostólica, fonte de primeira importância, para conhecermos a
Igreja do seu tempo. Queixava-se também de Calisto por este papa ter vindo a
ser condescendente quanto ao facto de se cometer um pecado mortal não ser razão
suficiente para depor um bispo, como alegava Hipólito em contrário. Reclamava
também do facto de o Papa ter admitido às ordens quem se tinha casado duas ou
três vezes e de ter reconhecido a legitimidade dos matrimónios entre os
escravos e mulheres livres, o que estava proibido pela lei civil. Combateu as
mais variadas heresias e foi grande defensor da sã doutrina e disciplina.
Hipólito era um homem pouco dado ao perdão.
Ora, as suas
atitudes pouco conciliatórias, num tempo de discussão teológica e abertura em
termos disciplinares, só poderiam causar problemas no seio da Igreja. As suas
“implicâncias” eram tão “ferozes”, as suas críticas tão “ácidas”, o seu
palavreado tão propenso à discussão, que começaram a “minar” a autoridade papal
com grandes recriminações que atingiam com francas e amplas censuras
diretamente o Papa Zeferino, por ser, em sua opinião, não suficientemente
preparado para detetar e denunciar as heresias.
Por ocasião
da eleição de Calisto I, Hipólito interrompeu as relações com a Igreja de Roma,
e, reunindo os seus inúmeros seguidores, consentiu em ser ordenado Bispo de Óstia e em ser colocado como papa (antipapa). Como opositor ao Papa, fundou uma igreja própria,
arrastando no cisma parte do clero e do povo de Roma. A sua postura intransigente,
a que se aliaram as suas divergências pessoais de oposição e a não disfarçada
inveja – porque Calisto fora o preferido pelo clero em detrimento dele como
sucessor do Papa Zeferino – fizeram nascer um cisma que durou vinte anos e
continuou durante o pontificado de Ponciano, que logrou, com a sua
magnanimidade, reconduzir Hipólito e o seu grupo à unidade da Igreja.
***
Ponciano foi Papa de 21 de julho de 230 a 29 de setembro
de 235. Durante o seu pontificado, suportou, como se viu, o cisma de
Hipólito, que chegou ao fim. Ponciano e outros líderes da Igreja, entre eles
Hipólito, foram exilados para a Sardenha pelo imperador Maximino de Trácia e como consequência, ele renunciou ao
papado no dia 25 ou 28 de setembro de 235 de
235, para permitir à Igreja
eleger outro líder que estivesse presente em Roma, sendo eleito o Papa Antero,
de origem grega, cujo pontificado durou apenas 40 dias e a que se seguiu o
pontificado de Fabião (236-250).
Morreu de
esgotamento, graças ao tratamento desumano nas minas da Sardenha, onde
trabalhava. De acordo com a tradição, morreu na ilha de Tavolara.
Ponciano
confirmou a condenação de alguns textos de Orígenes, de conteúdo gnóstico,
proferida por Demétrio de Alexandria; ordenou o canto dos salmos nas igrejas; prescreveu o “Confiteor” nos ritos iniciais da missa;
e introduziu a fórmula de saudação “Dominus
vobiscum”.
A sua festa
era celebrada a 19 de novembro, mas atualmente é celebrada junto com a do seu
rival Hipólito, a 13 de agosto.
Pelo Catálogo Liberiano é possível
verificar que em 13 de agosto, provavelmente de 236 (ou 256 segundo alguns), eles foram enterrados em Roma,
como se viu, Hipólito no cemitério na Via Tiburtina e Ponciano, nas Catacumbas de São
Calisto. Este documento também indica que, por volta de 255, Hipólito já era
considerado um mártir cristão e que se lhe atribui a posição de padre e não a
de bispo – mais uma indicação de que antes da sua morte ele já tinha sido
recebido novamente no seio da Igreja.
***
Se de
Ponciano se pode dizer, “Tal vida, tal
fim”, de Hipólito de dirá que, pelo menos soube bem morrer.
Sob a égide
deles se poderá dizer, como São Cipriano, bispo e mártir:
“Ditosa a
nossa Igreja, que assim é iluminada com o esplendor da bondade divina e
ilustrada nos nossos tempos com o glorioso sangue dos mártires. Se antes a vida
dos irmãos a adornava com a brancura da inocência, agora reveste-a da púrpura
do sangue dos mártires. […]. Esforcemo-nos, agora, todos e cada um de nós, por
alcançar a honra de uma e outra altíssima dignidade, a fim de recebermos ou as
coroas brancas de uma vida santa ou as coroas de púrpura do martírio.”
E porque não
olhar para os numerosos mártires de hoje com este pensamento elogioso e
compromissivo?
2016.08.13 – Louro de Carvalho
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