Passou a
refletir-se, em Portugal, sobre as questões atinentes à imunidade diplomática
devido aos factos ocorridos em Ponte de Sor no passado dia 16 de agosto. Dois filhos
do embaixador do Iraque em Portugal, irmãos gémeos de 17 anos, alegadamente agrediram
um adolescente de 15 anos a ponto de este ter sido helitransportado para o
Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde passou estes dias na Unidade de
Cuidados Intensivos em coma induzido. Os agressores, que declararam à SIC terem
agido em legítima defesa, o que, a ser verdade, se tornou desproporcionado e
excessivo, para não dizer muito longe da verdade. Porém, apesar de se encontrarem
em parte incerta, eles referiram que não sairão de Portugal até o caso ser
esclarecido. E, questionados sobre se perderam o controlo, um dos
gémeos assume:
“Perdemos completamente e gostaria de pedir
desculpa. E, nesta altura, temos de ter amor no coração, não podemos ter ódio.
Mas acredito que a grande lição é que todos podemos aprender.”
***
O
insólito caso indignou a opinião pública. E o Presidente Marcelo mostrou-se “preocupado
e chocado” e chegou a contactar, através da sua Casa Civil, o hospital onde
está internado Rúben Cavaco, esperando que o jovem “possa recuperar dos seus
graves ferimentos”.
A Procuradoria-Geral da República revelou
que o caso deu origem à abertura dum inquérito.
O Governo iraquiano chamou o embaixador para
explicações e reiterou o desejo de manter as relações diplomáticas com todos os
países, incluindo Portugal, porfiando colaborar com o nosso país na
investigação.
Por seu turno, o MNE pode
declarar o diplomata persona non grata, mas
não pode obrigar os seus filhos a prestar contas à justiça portuguesa. No
estrangeiro também há vários casos em que a imunidade diplomática impede a ação
dos tribunais, o que também já aconteceu em Portugal.
Os filhos do embaixador, de 17 anos, foram detidos,
mas libertados quando apresentaram os seus passaportes diplomáticos. De acordo
com a Convenção de Viena, aos diplomatas e aos seus familiares é dado “o
privilégio da imunidade face a certas leis” nos países onde estão colocados. À luz
da Convenção, os gémeos ficam assim à margem da lei, não podendo ser
constituídos arguidos nem testemunhas do crime ocorrido em Ponte de Sor.
Além disso, o estatuto de diplomata impede a sua
perseguição judicial, embora o Estado possa requerer o levantamento da
imunidade do diplomata acreditado em Lisboa às autoridades iraquianas. Em
última instância, o embaixador pode ser declarado persona non grata, tendo de abandonar o país. Ora, se Portugal não pode suspender a imunidade
diplomática dos filhos do embaixador do Iraque, o Governo pode – e já admitiu fazê-lo,
se
isso for necessário para se fazer justiça – pedir o levantamento ao país de origem, cujo
Governo também acompanha o caso com “preocupação”. Por outro lado, o Governo iraquiano
pode tomar a
iniciativa de levantar a imunidade dos
alegados agressores.
Em entrevista ao jornal Público, o Ministro dos Negócios
Estrangeiros declarou:
“Se o levantamento da
imunidade destas pessoas for necessário para que seja feita justiça relativamente
a este caso gravíssimo, Portugal, através do MNE, diligenciará, junto das
autoridades iraquianas, para que essa imunidade seja levantada (...)”.
E, citando especialistas académicos, o
jornal I esclarece que, se o país de
origem recusar o levantamento, a única solução será a expulsão dos membros do corpo
diplomático pelo Governo do Estado acreditador – neste caso, Portugal. Com
efeito, a figura da imunidade diplomática – extensiva aos familiares dos
diplomatas – assegura inviolabilidade às missões e aos diplomatas, bem como salvo-conduto,
isenção fiscal e isenção de outras prestações públicas, de jurisdição civil e
penal e de execução. E Augusto Santos Silva, frisando que “a
imunidade diplomática cobre a liberdade de circulação das pessoas”, explicitou:
“É muito grave que
possam estar envolvidas pessoas com imunidade diplomática, porque se trata dum
instrumento muito importante do direito internacional que não pode ser pervertido
desta forma”.
O Ministro ainda referiu que o MNE, no
âmbito das suas competências, fará tudo para que os factos sejam apurados e, se
houver acusação, que seja feito um “julgamento imparcial, justo e tão célere
quanto possível”. Para Santos Silva, “todas as opções que o
direito internacional confere ao Estado português estão em cima da mesa”.
A Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas prevê também no seu art.º
9.º que o “Estado acreditador” possa, a qualquer momento “e sem ser obrigado a
justificar a sua decisão, notificar o Estado acreditante de que o chefe de
missão ou qualquer membro do pessoal diplomático da missão é 'persona non
grata'”.
***
A imunidade
diplomática configura a
prerrogativa de Direito Público Internacional de que desfrutam os
representantes diplomáticos estrangeiros e seus familiares que com ele vivam em
território nacional diverso do seu país de origem. Neste sentido, apresenta-se
como medida de respeito, na ordem internacional, entre os diversos órgãos
estatais estrangeiros. E tem como suporte legal a Convenção sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena, a 18 de
abril de 1961 e aprovada para adesão pelo Decreto-Lei n.º 48295, de 27 de março
de 1968.
A imunidade diplomática é uma forma de imunidade legal e uma
política comum entre governos que assegura às missões diplomáticas
inviolabilidade e aos diplomatas salvo-conduto, isenção fiscal e outras prestações públicas (como serviço
militar obrigatório), bem como de jurisdição civil e penal e de execução. Refira-se que a imunidade não se restringe ao agente diplomático e
família. Conforme a disciplina da predita Convenção de Viena também se estende
às seguintes pessoas: os membros do pessoal administrativo e técnico da missão,
além dos familiares que com eles vivam, desde que “não sejam nacionais do
Estado acreditador nem nele tenham residência permanente” (art.º 37.º/2); e os membros do pessoal de serviço
da missão que não sejam nacionais do Estado acreditador nem nele tenham
residência permanente, quanto aos atos praticados no exercício de suas funções
(art.º 37.º/3); Porém, os criados particulares dos
membros da missão que não sejam nacionais do Estado acreditador nem nele tenham
residência permanente “só gozarão de privilégios e imunidades na medida
reconhecida pelo referido Estado. Todavia, o Estado acreditador deve exercer a
sua jurisdição sobre tais pessoas de modo a não interferir demasiado com o desempenho
das funções da missão” (art.º
37.º/4).
Em termos
da sua natureza jurídica, trata-se de restrição ao princípio da territorialidade temperada, dado
que, pelo reconhecimento da imunidade diplomática, o agente não responderá no
País acreditador pelo delito cometido em território nacional, mas no seu país
de origem.
Assim, ao diplomata (e imunes por extensão) que cometa um crime em Portugal não
será aplicada a lei penal nem a jurisdição portuguesa, mas a lei penal e
processual penal do país de origem, pois mantém-se subordinado à jurisdição do
país que representa, sendo lá processado e julgado, só havendo condenação se
nesse país os atos praticados também forem tipificados como crimes.
A sistemática da prerrogativa
diplomática induz ao reconhecimento das seguintes dimensões:
- Imunidade
material ou Inviolabilidade, segundo
a qual o imune não está sujeito a qualquer forma de detenção ou prisão no país acreditador;
- Imunidade
Processual ou Imunidade Formal ou
Imunidade de Jurisdição, segundo a qual
o imune não está subordinado à jurisdição penal do Estado acreditador, mas sim
à jurisdição penal do Estado ao qual pertencem (jurisdição do Estado acreditante).
A existência da imunidade diplomática destina-se,
não a dar vantagens aos indivíduos, mas a assegurar a realização eficaz das
suas funções em nome dos seus Estados.
Ademais, a imunidade não é uma
prerrogativa irrenunciável, pois admite a possibilidade de o Estado acreditante
renunciar expressamente à imunidade de jurisdição dos seus agentes diplomáticos
e das demais pessoas a que se estende.
***
A noção de privilégios e imunidades
para diplomatas estrangeiros existe desde a Antiguidade: os legati
romani eram considerados
sagrados e a sua violação era motivo para guerra justa. E, na Idade Média, como as relações
internacionais se davam entre Chefes de Estado, ofender um embaixador
significava ofender o Chefe de Estado que o havia enviado, o que justificava as
precauções da imunidade. Porém, a primeira teoria articulada a justificar os
privilégios e as imunidades para diplomatas foi a da extraterritorialidade,
delineada por Hugo Grócio, no século
XVII. Segundo esta, uma ficção jurídica fazia da Embaixada uma parte do
território do Estado acreditante. Hoje, a teoria da extraterritorialidade foi
abandonada em prol da teoria do interesse da função, segundo a qual a
finalidade do privilégio e imunidade não é o benefício dos indivíduos, mas a
garantia do eficaz desempenho das funções das missões diplomáticas na sua
tarefa de representação dos Estados acreditantes.
Os privilégios e imunidades
classificam-se: em inviolabilidade; imunidade de jurisdição civil e penal; e isenção fiscal, além
de outros direitos como liberdade
de culto e isenção de prestações
pessoais.
A inviolabilidade atinge a sede da Missão,
as residências particulares dos diplomatas, os bens ali situados, os meios de
locomoção, a correspondência e as comunicações diplomáticas.
Da imunidade de jurisdição resulta
que os atos da Missão e os dos respetivos diplomatas não podem ser apreciados
em juízo pelos tribunais do Estado acreditador (além da imunidade de jurisdição civil e administrativa,
os agentes diplomáticos gozam de imunidade de jurisdição penal). A imunidade de execução é absoluta
– eventuais decisões judiciais ou administrativas desfavoráveis à Missão ou aos
diplomatas não podem ser forçadas pelas autoridades do Estado acreditador.
A isenção fiscal abrange o Estado
acreditante, o chefe da Missão, a Missão e os agentes diplomáticos; e inclui os impostos (nacionais, regionais e municipais) e os direitos aduaneiros, mas exclui as
taxas a cobrar por serviços prestados (convém ter em conta a definição de “taxa” em direito tributário).
A imunidade diplomática não confere
ao diplomata o direito de se considerar acima da legislação do Estado
acreditador – é obrigação expressa do agente diplomático cumprir as leis
daquele Estado, o qual tem, como se vê fazer justiça em caso de prevaricação.
***
Enfim, a quanto obrigas, diplomacia!
2016.08.23 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário