terça-feira, 23 de agosto de 2016

A propósito da imunidade diplomática

Passou a refletir-se, em Portugal, sobre as questões atinentes à imunidade diplomática devido aos factos ocorridos em Ponte de Sor no passado dia 16 de agosto. Dois filhos do embaixador do Iraque em Portugal, irmãos gémeos de 17 anos, alegadamente agrediram um adolescente de 15 anos a ponto de este ter sido helitransportado para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde passou estes dias na Unidade de Cuidados Intensivos em coma induzido. Os agressores, que declararam à SIC terem agido em legítima defesa, o que, a ser verdade, se tornou desproporcionado e excessivo, para não dizer muito longe da verdade. Porém, apesar de se encontrarem em parte incerta, eles referiram que não sairão de Portugal até o caso ser esclarecido. E, questionados sobre se perderam o controlo, um dos gémeos assume:
“Perdemos completamente e gostaria de pedir desculpa. E, nesta altura, temos de ter amor no coração, não podemos ter ódio. Mas acredito que a grande lição é que todos podemos aprender.” 
***
O insólito caso indignou a opinião pública. E o Presidente Marcelo mostrou-se “preocupado e chocado” e chegou a contactar, através da sua Casa Civil, o hospital onde está internado Rúben Cavaco, esperando que o jovem “possa recuperar dos seus graves ferimentos”.
A Procuradoria-Geral da República revelou que o caso deu origem à abertura dum inquérito.
O Governo iraquiano chamou o embaixador para explicações e reiterou o desejo de manter as relações diplomáticas com todos os países, incluindo Portugal, porfiando colaborar com o nosso país na investigação.
Por seu turno, o MNE pode declarar o diplomata persona non grata, mas não pode obrigar os seus filhos a prestar contas à justiça portuguesa. No estrangeiro também há vários casos em que a imunidade diplomática impede a ação dos tribunais, o que também já aconteceu em Portugal.
Os filhos do embaixador, de 17 anos, foram detidos, mas libertados quando apresentaram os seus passaportes diplomáticos. De acordo com a Convenção de Viena, aos diplomatas e aos seus familiares é dado “o privilégio da imunidade face a certas leis” nos países onde estão colocados. À luz da Convenção, os gémeos ficam assim à margem da lei, não podendo ser constituídos arguidos nem testemunhas do crime ocorrido em Ponte de Sor.
Além disso, o estatuto de diplomata impede a sua perseguição judicial, embora o Estado possa requerer o levantamento da imunidade do diplomata acreditado em Lisboa às autoridades iraquianas. Em última instância, o embaixador pode ser declarado persona non grata, tendo de abandonar o país. Ora, se Portugal não pode suspender a imunidade diplomática dos filhos do embaixador do Iraque, o Governo pode – e já admitiu fazê-lo,  se isso for necessário para se fazer justiça – pedir o levantamento ao país de origem, cujo Governo também acompanha o caso com “preocupação”. Por outro lado, o Governo iraquiano pode tomar a iniciativa de levantar a imunidade dos alegados agressores.
Em entrevista ao jornal Público, o Ministro dos Negócios Estrangeiros declarou:
“Se o levantamento da imunidade destas pessoas for necessário para que seja feita justiça relativamente a este caso gravíssimo, Portugal, através do MNE, diligenciará, junto das autoridades iraquianas, para que essa imunidade seja levantada (...)”.
E, citando especialistas académicos, o jornal I esclarece que, se o país de origem recusar o levantamento, a única solução será a expulsão dos membros do corpo diplomático pelo Governo do Estado acreditador – neste caso, Portugal.  Com efeito, a figura da imunidade diplomática – extensiva aos familiares dos diplomatas – assegura inviolabilidade às missões e aos diplomatas, bem como salvo-conduto, isenção fiscal e isenção de outras prestações públicas, de jurisdição civil e penal e de execução.  E Augusto Santos Silva, frisando que “a imunidade diplomática cobre a liberdade de circulação das pessoas”, explicitou: 
“É muito grave que possam estar envolvidas pessoas com imunidade diplomática, porque se trata dum instrumento muito importante do direito internacional que não pode ser pervertido desta forma”.
O Ministro ainda referiu que o MNE, no âmbito das suas competências, fará tudo para que os factos sejam apurados e, se houver acusação, que seja feito um “julgamento imparcial, justo e tão célere quanto possível”. Para Santos Silva, “todas as opções que o direito internacional confere ao Estado português estão em cima da mesa”.
 A Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas prevê também no seu art.º 9.º que o “Estado acreditador” possa, a qualquer momento “e sem ser obrigado a justificar a sua decisão, notificar o Estado acreditante de que o chefe de missão ou qualquer membro do pessoal diplomático da missão é 'persona non grata'”.
***
A imunidade diplomática configura a prerrogativa de Direito Público Internacional de que desfrutam os representantes diplomáticos estrangeiros e seus familiares que com ele vivam em território nacional diverso do seu país de origem. Neste sentido, apresenta-se como medida de respeito, na ordem internacional, entre os diversos órgãos estatais estrangeiros. E tem como suporte legal a Convenção sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena, a 18 de abril de 1961 e aprovada para adesão pelo Decreto-Lei n.º 48295, de 27 de março de 1968.
A imunidade diplomática é uma forma de imunidade legal e uma política comum entre governos que assegura às missões diplomáticas inviolabilidade e aos diplomatas salvo-conduto, isenção fiscal e outras prestações públicas (como serviço militar obrigatório), bem como de jurisdição civil e penal e de execução. Refira-se que a imunidade não se restringe ao agente diplomático e família. Conforme a disciplina da predita Convenção de Viena também se estende às seguintes pessoas: os membros do pessoal administrativo e técnico da missão, além dos familiares que com eles vivam, desde que “não sejam nacionais do Estado acreditador nem nele tenham residência permanente” (art.º 37.º/2); e os membros do pessoal de serviço da missão que não sejam nacionais do Estado acreditador nem nele tenham residência permanente, quanto aos atos praticados no exercício de suas funções (art.º 37.º/3); Porém, os criados particulares dos membros da missão que não sejam nacionais do Estado acreditador nem nele tenham residência permanente “só gozarão de privilégios e imunidades na medida reconhecida pelo referido Estado. Todavia, o Estado acreditador deve exercer a sua jurisdição sobre tais pessoas de modo a não interferir demasiado com o desempenho das funções da missão” (art.º 37.º/4).
Em termos da sua natureza jurídica, trata-se de restrição ao princípio da territorialidade temperada, dado que, pelo reconhecimento da imunidade diplomática, o agente não responderá no País acreditador pelo delito cometido em território nacional, mas no seu país de origem.
Assim, ao diplomata (e imunes por extensão) que cometa um crime em Portugal não será aplicada a lei penal nem a jurisdição portuguesa, mas a lei penal e processual penal do país de origem, pois mantém-se subordinado à jurisdição do país que representa, sendo lá processado e julgado, só havendo condenação se nesse país os atos praticados também forem tipificados como crimes.
A sistemática da prerrogativa diplomática induz ao reconhecimento das seguintes dimensões:
- Imunidade material ou Inviolabilidade, segundo a qual o imune não está sujeito a qualquer forma de detenção ou prisão no país acreditador;
- Imunidade Processual ou Imunidade Formal ou Imunidade de Jurisdição, segundo a qual o imune não está subordinado à jurisdição penal do Estado acreditador, mas sim à jurisdição penal do Estado ao qual pertencem (jurisdição do Estado acreditante).
A existência da imunidade diplomática destina-se, não a dar vantagens aos indivíduos, mas a assegurar a realização eficaz das suas funções em nome dos seus Estados.
Ademais, a imunidade não é uma prerrogativa irrenunciável, pois admite a possibilidade de o Estado acreditante renunciar expressamente à imunidade de jurisdição dos seus agentes diplomáticos e das demais pessoas a que se estende.
***
A noção de privilégios e imunidades para diplomatas estrangeiros existe desde a Antiguidade: os legati romani eram considerados sagrados e a sua violação era motivo para guerra justa. E, na Idade Média, como as relações internacionais se davam entre Chefes de Estado, ofender um embaixador significava ofender o Chefe de Estado que o havia enviado, o que justificava as precauções da imunidade. Porém, a primeira teoria articulada a justificar os privilégios e as imunidades para diplomatas foi a da extraterritorialidade, delineada por Hugo Grócio, no século XVII. Segundo esta, uma ficção jurídica fazia da Embaixada uma parte do território do Estado acreditante. Hoje, a teoria da extraterritorialidade foi abandonada em prol da teoria do interesse da função, segundo a qual a finalidade do privilégio e imunidade não é o benefício dos indivíduos, mas a garantia do eficaz desempenho das funções das missões diplomáticas na sua tarefa de representação dos Estados acreditantes.
Os privilégios e imunidades classificam-se: em inviolabilidade; imunidade de jurisdição civil e penal; e isenção fiscal, além de outros direitos como liberdade de culto e isenção de prestações pessoais.
A inviolabilidade atinge a sede da Missão, as residências particulares dos diplomatas, os bens ali situados, os meios de locomoção, a correspondência e as comunicações diplomáticas.
Da imunidade de jurisdição resulta que os atos da Missão e os dos respetivos diplomatas não podem ser apreciados em juízo pelos tribunais do Estado acreditador (além da imunidade de jurisdição civil e administrativa, os agentes diplomáticos gozam de imunidade de jurisdição penal). A imunidade de execução é absoluta – eventuais decisões judiciais ou administrativas desfavoráveis à Missão ou aos diplomatas não podem ser forçadas pelas autoridades do Estado acreditador.
A isenção fiscal abrange o Estado acreditante, o chefe da Missão, a Missão e os agentes diplomáticos; e inclui os impostos (nacionais, regionais e municipais) e os direitos aduaneiros, mas exclui as taxas a cobrar por serviços prestados (convém ter em conta a definição de “taxa” em direito tributário).
A imunidade diplomática não confere ao diplomata o direito de se considerar acima da legislação do Estado acreditador – é obrigação expressa do agente diplomático cumprir as leis daquele Estado, o qual tem, como se vê fazer justiça em caso de prevaricação.
***
Enfim, a quanto obrigas, diplomacia!

2016.08.23 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário