domingo, 28 de agosto de 2016

Saudades dos ex-presidentes

A prestação presidencial do Professor Marcelo Rebelo de Sousa está marcada pela alegada hiperatividade, espelhada na multiplicidade de deslocações e na pretensa gestão de afetos. De garante da unidade e de agente da suprema representação do Estado bem poderia passar a acumular o múnus de provedor dos cidadãos e das populações, marcando presença junto de quem sofre ou perante situações problemáticas.
Porém, estar em todo o lado, antes, com e depois do Governo é fenómeno que desfaz categoricamente a asserção de que o Presidente não tem funções executivas (asserção que, aliás, eu descarto como já tentei demonstrar em tempos).
Nos pouco mais de cinco meses de exercício da suprema magistratura da República, já percorreu o país de norte a sul e de lés-a-lés; já visitou inúmeros países, quer em privado quer em visita oficial; e já falou de tudo e mais alguma coisa, a ponto de ter aproveitado até às últimas o capital de fatores e elementos da larga popularidade que lhe granjearam o prestígio académico, a intervenção privilegiada nos órgãos de comunicação social e nas grandes ágoras e a índole atípica da campanha eleitoral que se resumiu a uma descontraída “passeata” pelas vias urbanas e rurais do país ávido de estabilidade – que dera a vitória eleitoral nas legislativas a um quadrante político e a maioria parlamentar a outro – e psicossocialmente órfão de uma verdadeira presidência da República.
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É evidente que não se espera um bom desempenho presidencial a partir da qualificação académica do titular, mas, sim, do exercício orientado nos bastidores pelo pessoal da Casa Civil e da Casa Militar. Todavia, não se pode esperar que também a qualificação académica do titular obnubile a pureza da função presidencial. E isso parece estar a acontecer. O professor de Direito Público (leia-se: Direito Constitucional e Direito Administrativo) e de Ciência Política, salvo honrosas exceções, não oferece pela via das qualificações uma considerável mais-valia à Presidência, antes pelo contrário, até por omissão. Salvo, os emblemáticos discursos de tomada de posse, da comemoração da revolução abrilina – momentos em que o Presidente da Assembleia da República (segunda figura na hierarquia do Estado) não lhe ficou atrás em profundidade e largueza de vistas – e a alocução no Parlamento Europeu, as suas intervenções públicas, em geral, não passam de vulgaridades que as câmaras de vídeo registam para memória futura. E, a meu ver, soube a omissão escandalosa o facto de Sua Excelência não ter usado da palavra na cerimónia de posse dos cinco juízes eleitos na Assembleia da República para o Tribunal Constitucional. Porém, quando este tribunal político de fiscalização constitucional e legal das leis, celebrou os 40 anos da Constituição, o Presidente, alegadamente sábio, meteu-se pela hipótese de, no tempo próprio, a Lei fundamental poder ser revista em diversos pontos que especificou – coisa que não se perdoou ao seu antecessor imediato, que foi criticado por meter a foice em seara alheia, talvez com o subtexto subjacente de que não estaria preparado academicamente nestas matérias.
E, como em tempos palpitei, parece que, habituando-nos à palavra sobre tudo e mais alguma coisa, o Presidente não acautela para futuro a eficácia das suas palavras, pertinentes em tempo de crise, em que o poder da palavra tem de se fazer sentir. É certo que é muito agradável ver Sua Excelência em toda a parte, até a descascar a maçã e a comê-la para a família visitada guardar as cascas como relíquia, e ouvi-lo a propósito de quaisquer circunstâncias. Contudo, o Presidente também tem de se conter e resguardar para quando o futuro lhe reservar um papel concreto necessariamente mais interventivo.
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Quanto à relação com o Parlamento e com o Governo, dá-me a impressão que Marcelo se coloca demasiadas vezes ao lado da maioria parlamentar a “abençoar” as suas opções políticas ou a dar testemunho da sua inocuidade. Por outro lado, habituou os portugueses à explicação dos motivos por que promulga ou veta diplomas do Parlamento e do Governo. No caso do veto de diplomas parlamentares, a justificação é obrigatória. Nos outros casos, não. Os diplomas do Governo vetados perdem existência e o mais que o Governo pode fazer é transformá-los em propostas de lei. E a promulgação não significa concordância com o teor do diploma. Só excecionalmente se percebe a conveniência duma justificação pública para a promulgação, como os outros presidentes fizeram. De resto, as justificações até podem ser contraproducentes. Deixo dois exemplos.
O Presidente promulgou o Orçamento do Estado. Dizem que fez um trabalho pedagógico ao explicar as suas virtualidades, advertir para algumas limitações e afirmar que esperava pelo resultado de algumas medidas. Aqui e agora, pergunto-me: se os resultados das medidas duvidosas forem catastróficos, vai “despromulgar” a Lei do Orçamento?
A lei da reposição das 35 horas semanais de trabalho na administração pública foi aprovada no Parlamento. Alguns constitucionalistas levantaram o problema da constitucionalidade, já que ela resultou da iniciativa de deputados e o Ministro das Finanças advertia para a necessidade de ela não implicar aumento da despesa pública. Com efeito, o art.º 167.º/2 da CRP estabelece:
“Os Deputados, os grupos parlamentares, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas e os grupos de cidadãos eleitores não podem apresentar projetos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento”.
Em todo o caso, a lei foi promulgada e o Presidente assegurou que ia estar atento, sendo que interviria se efetivamente por força da sua aplicação a despesa pública aumentasse. Ora, tal apuramento apenas se faz no fim do ano económico. Depois, se isso viesse a acontecer, “despromulgá-la-ia” ou submetê-la-ia à apreciação do Tribunal Constitucional? No próximo ano económico, a lei não estará ferida de inconstitucionalidade formal. E, no atinente ao ano económico em curso, iria obrigar os trabalhadores a trabalhar 40 horas no ano seguinte até compensar as perdas laborais deste ano? O certo é que o Constitucionalista promulgou uma lei de duvidosa constitucionalidade
Falando de vetos, Marcelo em 5 meses de exercício presidencial, vetou dois diplomas do Parlamento (excedendo já qualquer dos antecessores): o atinente às chamadas barrigas de aluguer, por supostamente os deputados não terem observado as recomendações da Comissão de Ética e das Ciências da Vida, mas, como o Parlamento confirmou o diploma, já o promulgou; e o que altera os estatutos da Sociedade de Transportes Públicos do Porto (STCP) e da “Metro do Porto” por “vedar, taxativamente, qualquer participação de entidades privadas”.
Sobre este segundo diploma, o Presidente refere:
“O regime em apreço, ao vedar, taxativamente, qualquer participação de entidades privadas, representa uma politicamente excessiva intervenção da Assembleia da República num espaço de decisão concreta da Administração Pública – em particular do Poder Local –, condicionando, de forma drástica, a futura opção do Governo, em termos não condizentes com o propósito por ele enunciado, e, sobretudo, a escolha das autarquias locais, que o Governo se comprometeu a respeitar no domínio em questão”.

Ora, o Presidente tem o direito de discordar politicamente do decreto do Parlamento e pode, por consequência, vetá-lo. Porém, a razão invocada no caso vertente implica uma interferência nas competências do Parlamento e do Governo: o Governo, segundo Marcelo não pode condicionar o espaço de decisão do Poder Local, esquecendo que isto é matéria do Programa do Governo. Talvez Marcelo tivesse razão se se tratasse dum diploma do Governo. É ao Parlamento que compete definir ou alterar os limites territoriais e as competências das autarquias locais.
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Mas o Presidente vai mais longe no condicionamento do Parlamento e do Governo: tanto lhes põe a mão por cima, como se antecipa a fazer juízo de valor e a pré-anunciar a sua posição. Por exemplo, quando se levantou a hipótese de agravar a penalização do crime de incêndio florestal, apressou-se a fazer saber que via com bons olhos tal iniciativa legislativa. Ao invés, quando o Governo a anunciou o propósito de alterar o regime geral da banca e das instituições financeiras, fez saber de imediato que não concordava com tal alteração. E, sobre o caso dos governantes que, a convite da Galp, se deslocaram para assistir aos jogos do Campeonato Europeu de Futebol de 2016, já veio exigir a limitação de intervenção dos três Secretários de Estado, no sentido de serem impedidos de despachar assuntos referentes à petrolífera. Porque não força a demissão deles?
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Parece que ainda vamos ter saudades dos ex-presidentes, mesmo de Cavaco Silva. Todos interferiram com a ação do Governo e até do Parlamento, mas com discrição, longe da ribalta pública. Fizeram rolar cabeças de ministros, mas de modo que não se pode fazer prova pública do facto; acertaram pormenores legislativos e regulamentares, mas no segredo dos deuses; e tomavam posição pública sobre diplomas legais só depois de eles chegarem a Belém. Com exceção de Eanes, que tentou sem sucesso alguns atos de diplomacia paralela, de Sampaio, que pôs sob vigilância o XVI Governo Constitucional, e de Aníbal, que se exaltou por via das alegadas escutas a Belém, os antecessores de Marcelo pautaram-se pela discrição no condicionamento dos demais órgãos do poder político. E, sobretudo, por mais que se discorde dos seus conteúdos, os discursos emblemáticos eram os devidos e preparados pelos respetivos estados-maiores e eram bem estruturados (com cabeça, tronco e membros).
Não colhe o argumento de Marques Mendes de que Marcelo ganhou poder com a Comunicação Social, para justificar a “autoridade afetuosa”, nem valem as ideias peregrinas de que leva o abraço de Portugal à Madeira (como se a Madeira não fosse Portugal) e de que a sua missão na Madeira é de solidariedade e a de Costa é executiva. O que é então a solidariedade?
Quando Marcelo prometeu não renunciar a nenhum dos poderes constitucionais e fazer tudo quanto não lhe fosse vedado pela Constituição, pensava-se que o seu exercício seria menos populista e mais consolidado e, sobretudo, menos errático.
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Finalmente, porque é que Marcelo só pretende cortar 3% no orçamento da Presidência, se não dispõe de primeira-dama, paga do próprio bolso almoços de trabalho, come sandes, poupa espaço na Internet porque não publica as suas intervenções, paga viagens, vai a pé…?
Enfim, volta, Aníbal, que estás perdoado!

2016.08.28 – Louro de Carvalho   

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