A
prestação presidencial do Professor Marcelo Rebelo de Sousa está marcada pela
alegada hiperatividade, espelhada na multiplicidade de deslocações e na
pretensa gestão de afetos. De garante da unidade e de agente da suprema representação
do Estado bem poderia passar a acumular o múnus de provedor dos cidadãos e das
populações, marcando presença junto de quem sofre ou perante situações
problemáticas.
Porém,
estar em todo o lado, antes, com e depois do Governo é fenómeno que desfaz
categoricamente a asserção de que o Presidente não tem funções executivas (asserção
que, aliás, eu descarto como já tentei demonstrar em tempos).
Nos
pouco mais de cinco meses de exercício da suprema magistratura da República, já
percorreu o país de norte a sul e de lés-a-lés; já visitou inúmeros países,
quer em privado quer em visita oficial; e já falou de tudo e mais alguma coisa,
a ponto de ter aproveitado até às últimas o capital de fatores e elementos da
larga popularidade que lhe granjearam o prestígio académico, a intervenção
privilegiada nos órgãos de comunicação social e nas grandes ágoras e a índole
atípica da campanha eleitoral que se resumiu a uma descontraída “passeata”
pelas vias urbanas e rurais do país ávido de estabilidade – que dera a vitória
eleitoral nas legislativas a um quadrante político e a maioria parlamentar a
outro – e psicossocialmente órfão de uma verdadeira presidência da República.
***
É
evidente que não se espera um bom desempenho presidencial a partir da
qualificação académica do titular, mas, sim, do exercício orientado nos
bastidores pelo pessoal da Casa Civil e da Casa Militar. Todavia, não se pode
esperar que também a qualificação académica do titular obnubile a pureza da
função presidencial. E isso parece estar a acontecer. O professor de Direito
Público (leia-se: Direito Constitucional e Direito
Administrativo) e de
Ciência Política, salvo honrosas exceções, não oferece pela via das
qualificações uma considerável mais-valia à Presidência, antes pelo contrário,
até por omissão. Salvo, os emblemáticos discursos de tomada de posse, da
comemoração da revolução abrilina – momentos em que o Presidente da Assembleia
da República (segunda figura na hierarquia do Estado) não lhe ficou atrás em
profundidade e largueza de vistas – e a alocução no Parlamento Europeu, as suas
intervenções públicas, em geral, não passam de vulgaridades que as câmaras de
vídeo registam para memória futura. E, a meu ver, soube a omissão escandalosa o
facto de Sua Excelência não ter usado da palavra na cerimónia de posse dos
cinco juízes eleitos na Assembleia da República para o Tribunal Constitucional.
Porém, quando este tribunal político de fiscalização constitucional e legal das
leis, celebrou os 40 anos da Constituição, o Presidente, alegadamente sábio,
meteu-se pela hipótese de, no tempo próprio, a Lei fundamental poder ser
revista em diversos pontos que especificou – coisa que não se perdoou ao seu
antecessor imediato, que foi criticado por meter a foice em seara alheia,
talvez com o subtexto subjacente de que não estaria preparado academicamente
nestas matérias.
E,
como em tempos palpitei, parece que, habituando-nos à palavra sobre tudo e mais
alguma coisa, o Presidente não acautela para futuro a eficácia das suas
palavras, pertinentes em tempo de crise, em que o poder da palavra tem de se
fazer sentir. É certo que é muito agradável ver Sua Excelência em toda a parte,
até a descascar a maçã e a comê-la para a família visitada guardar as cascas
como relíquia, e ouvi-lo a propósito de quaisquer circunstâncias. Contudo, o
Presidente também tem de se conter e resguardar para quando o futuro lhe
reservar um papel concreto necessariamente mais interventivo.
***
Quanto
à relação com o Parlamento e com o Governo, dá-me a impressão que Marcelo se
coloca demasiadas vezes ao lado da maioria parlamentar a “abençoar” as suas
opções políticas ou a dar testemunho da sua inocuidade. Por outro lado,
habituou os portugueses à explicação dos motivos por que promulga ou veta
diplomas do Parlamento e do Governo. No caso do veto de diplomas parlamentares,
a justificação é obrigatória. Nos outros casos, não. Os diplomas do Governo
vetados perdem existência e o mais que o Governo pode fazer é transformá-los em
propostas de lei. E a promulgação não significa concordância com o teor do
diploma. Só excecionalmente se percebe a conveniência duma justificação pública
para a promulgação, como os outros presidentes fizeram. De resto, as
justificações até podem ser contraproducentes. Deixo dois exemplos.
O
Presidente promulgou o Orçamento do Estado. Dizem que fez um trabalho
pedagógico ao explicar as suas virtualidades, advertir para algumas limitações
e afirmar que esperava pelo resultado de algumas medidas. Aqui e agora,
pergunto-me: se os resultados das medidas duvidosas forem catastróficos, vai “despromulgar” a Lei do Orçamento?
A
lei da reposição das 35 horas semanais de trabalho na administração pública foi
aprovada no Parlamento. Alguns constitucionalistas levantaram o problema da
constitucionalidade, já que ela resultou da iniciativa de deputados e o
Ministro das Finanças advertia para a necessidade de ela não implicar aumento
da despesa pública. Com efeito, o art.º 167.º/2 da CRP estabelece:
“Os Deputados, os
grupos parlamentares, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas e os
grupos de cidadãos eleitores não podem apresentar projetos de lei, propostas de
lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento
das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento”.
Em todo o caso, a lei foi
promulgada e o Presidente assegurou que ia estar atento, sendo que interviria
se efetivamente por força da sua aplicação a despesa pública aumentasse. Ora,
tal apuramento apenas se faz no fim do ano económico. Depois, se isso viesse a
acontecer, “despromulgá-la-ia” ou
submetê-la-ia à apreciação do Tribunal Constitucional? No próximo ano
económico, a lei não estará ferida de inconstitucionalidade formal. E, no
atinente ao ano económico em curso, iria obrigar os trabalhadores a trabalhar
40 horas no ano seguinte até compensar as perdas laborais deste ano? O certo é
que o Constitucionalista promulgou uma lei de duvidosa constitucionalidade
Falando de vetos, Marcelo em 5
meses de exercício presidencial, vetou dois diplomas do Parlamento (excedendo
já qualquer dos antecessores):
o atinente às chamadas barrigas de aluguer, por supostamente os deputados não
terem observado as recomendações da Comissão de Ética e das Ciências da Vida,
mas, como o Parlamento confirmou o diploma, já o promulgou; e o que altera os estatutos da Sociedade de Transportes
Públicos do Porto (STCP) e da
“Metro do Porto” por “vedar, taxativamente, qualquer participação de entidades
privadas”.
Sobre
este segundo diploma, o Presidente refere:
“O
regime em apreço, ao vedar, taxativamente, qualquer participação de entidades
privadas, representa uma politicamente excessiva intervenção da Assembleia da
República num espaço de decisão concreta da Administração Pública – em
particular do Poder Local –, condicionando, de forma drástica, a futura opção
do Governo, em termos não condizentes com o propósito por ele enunciado, e,
sobretudo, a escolha das autarquias locais, que o Governo se comprometeu a
respeitar no domínio em questão”.
Ora,
o Presidente tem o direito de discordar politicamente do decreto do Parlamento
e pode, por consequência, vetá-lo. Porém, a razão invocada no caso vertente
implica uma interferência nas competências do Parlamento e do Governo: o
Governo, segundo Marcelo não pode condicionar o espaço de decisão do Poder
Local, esquecendo que isto é matéria do Programa do Governo. Talvez Marcelo tivesse
razão se se tratasse dum diploma do Governo. É ao Parlamento que compete
definir ou alterar os limites territoriais e as competências das autarquias
locais.
***
Mas
o Presidente vai mais longe no condicionamento do Parlamento e do Governo:
tanto lhes põe a mão por cima, como se antecipa a fazer juízo de valor e a
pré-anunciar a sua posição. Por exemplo, quando se levantou a hipótese de
agravar a penalização do crime de incêndio florestal, apressou-se a fazer saber
que via com bons olhos tal iniciativa legislativa. Ao invés, quando o Governo a
anunciou o propósito de alterar o regime geral da banca e das instituições
financeiras, fez saber de imediato que não concordava com tal alteração. E, sobre
o caso dos governantes que, a convite da Galp, se deslocaram para assistir aos
jogos do Campeonato Europeu de Futebol de 2016, já veio exigir a limitação de
intervenção dos três Secretários de Estado, no sentido de serem impedidos de
despachar assuntos referentes à petrolífera. Porque não força a demissão deles?
***
Parece
que ainda vamos ter saudades dos ex-presidentes, mesmo de Cavaco Silva. Todos
interferiram com a ação do Governo e até do Parlamento, mas com discrição,
longe da ribalta pública. Fizeram rolar cabeças de ministros, mas de modo que
não se pode fazer prova pública do facto; acertaram pormenores legislativos e
regulamentares, mas no segredo dos deuses; e tomavam posição pública sobre
diplomas legais só depois de eles chegarem a Belém. Com exceção de Eanes, que
tentou sem sucesso alguns atos de diplomacia paralela, de Sampaio, que pôs sob
vigilância o XVI Governo Constitucional, e de Aníbal, que se exaltou por via
das alegadas escutas a Belém, os antecessores de Marcelo pautaram-se pela
discrição no condicionamento dos demais órgãos do poder político. E, sobretudo,
por mais que se discorde dos seus conteúdos, os discursos emblemáticos eram os
devidos e preparados pelos respetivos estados-maiores e eram bem estruturados (com
cabeça, tronco e membros).
Não
colhe o argumento de Marques Mendes de que Marcelo ganhou poder com a
Comunicação Social, para justificar a “autoridade afetuosa”, nem valem as
ideias peregrinas de que leva o abraço de Portugal à Madeira (como
se a Madeira não fosse Portugal)
e de que a sua missão na Madeira é de solidariedade e a de Costa é executiva. O
que é então a solidariedade?
Quando
Marcelo prometeu não renunciar a nenhum dos poderes constitucionais e fazer tudo
quanto não lhe fosse vedado pela Constituição, pensava-se que o seu exercício
seria menos populista e mais consolidado e, sobretudo, menos errático.
***
Finalmente,
porque é que Marcelo só pretende cortar 3% no orçamento da Presidência, se não
dispõe de primeira-dama, paga do próprio bolso almoços de trabalho, come
sandes, poupa espaço na Internet porque não publica as suas intervenções, paga
viagens, vai a pé…?
Enfim,
volta, Aníbal, que estás perdoado!
2016.08.28 – Louro de Carvalho
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