segunda-feira, 4 de julho de 2016

A morte de Camilo de Oliveira, o artista do público

Na noite de 2 para 3 de julho, no Hospital de Egas Moniz, ocorreu a morte de Camilo Venâncio de Oliveira, aos 91 anos (ia fazer 92 a 23 deste mês de julho ou 11 de agosto segundo alguns) na sequência de cancro prostático e intestinal – depois de uma longa carreira (de cerca de 70 anos) como ator e humorista nos palcos, no cinema e na televisão. Diz-se que nasceu no Teatro, uma vez que viu a luz do mundo exatamente num dos camarins (mais propriamente no camarote de Direção) do Teatro do Grupo Caras Direitas, de Buarcos – na ocasião o único teatro existente no concelho da Figueira da Foz – no momento em que estava a decorrer a exibição da peça Pedro e Inês, fazendo o pai de Dom Pedro e a mãe de Inês de Castro.
Era filho de Camilo Arjona de Oliveira, falecido em 1981, e de sua primeira mulher, Ester Venâncio de Oliveira – ambos atores. Já, em finais de setembro de 2012, surgiram rumores da morte do humorista, boato que os jornais se apressaram a desmentir.
Sobre as circunstâncias do seu nascimento, o próprio diz a Manuel Luís Goucha, na TVI:
“O meu pai fazia de Dom Pedro, a minha mãe fazia de Inês de Castro, já de barriga. Já estava um Castrozinho lá dentro a querer sair. Não havia por onde se deitar, fomos para o camarote de direção lá em cima. E foi aí que eu nasci”.
Entra no teatro influenciado pela mãe, que o criou e deixou crescer rodeado de artistas, acabando ele mesmo por tornar-se ator. Com apenas 5 anos de idade fez a primeira peça de teatro e, aos 15, pisou pela primeira vez um palco como profissional.
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Colegas, amigos, Marcelo Rebelo de Sousa e o Sporting recordam o ator excecional, de enorme talento e rigor. Destacam-lhe o espírito de trabalho, o rigor e o profissionalismo. Assim:
- O humorista e apresentador Herman José disse que “se a vida de Camilo de Oliveira fosse uma peça, era uma peça em três atos de sucesso, em que o final é o pano a fechar com imensa dignidade”. Se, a princípio o achava insuportável, “um tipo armado em vedeta”, quando foi amadurecendo, foi percebendo como estava enganado, sendo que, a partir do momento em que acabou por confessar “isso mesmo” ao ator, este ficara a adorar o novel apresentador-humorista. Herman José destacou, da personalidade e postura do ator, a “transparência e caráter” e o respeito pelo público:
“Tinha um público que respeitava até à exaustão, até ao limite, até se fosse preciso cortar relações com colegas para provar isso”.
Por sua vez, o ator Vítor de Sousa, que partilhou os palcos com Camilo, frisou o perfecionismo do ator, que nem sempre era fácil, mas que era cheio de talento, declarando:
“Eu tenho do Camilo, realmente, a imagem de um grande profissional, nem sempre fácil, porque a sua maneira de querer a perfeição às vezes podia ser mal interpretada, mas era realmente um perfecionista, um homem cheio de talento, um ator popular e cada vez vão havendo menos atores populares”.
Já Simone de Oliveira, cantora, atriz e sua antiga colega, embora realçando que o país perdeu “um daqueles atores que já não existem”, não se furtou a assinalar o que supunha serem as falhas de personalidade do ator:
“Quando as pessoas desaparecem são todas ótimas, maravilhosas e deslumbrantes, é um hábito que nós temos. Mas isso não me obriga a dizer que ele era fácil, porque não era. Não era fácil lidar com ele e tenho de lhe dizer que chorei muito. Era um homem prepotente.”
Também Ruy de Carvalho apontou Camilo como “um criador de bonecos, personagens, muito engraçados que ele fazia com muita classe” e lamentou a morte do artista:
É uma grande perda para nós. É mais uma grande perda para o espetáculo e para o teatro em Portugal”.
E Júlio Isidro, também com longa carreira, mas de apresentador, enalteceu pormenores da vida de Camilo mais privados, sublinhando que o ator nasceu num teatro (“ninguém pode ser mais ator que alguém que nasceu num teatro”) e a sua paixão pela pesca, o único hobby que tinha para lá da profissão e que dominava com grande mestria, dizendo que “era um magnífico pescador” e que “ficará para sempre na nossa memória” como “o último grande comediante”. Referindo que fora muito inovador à época e que, mesmo nas últimas séries, já com idade avançada, mostrara que dominava o ofício de forma extraordinária, disse desta “perda fundamental” que o teatro perde:
“Eu sabia, e sei também, que era um homem de enorme rigor profissional, com ele e com os outros, mesmo quando os rigorosos são considerados, perdoem-me a expressão, os chatos, mas não é preciso ser rigoroso para se fazer uma carreira com a dimensão que o Camilo conseguiu”.
Por seu turno, Anita Guerreiro, atriz e sua amiga, agora com emoção e surpresa, recordou-o como um “grande ator”, um homem “firme”, de “pulso”, como o teatro o exigia, e exclamou: “Perdeu-se um grande ator e um amigo”.
E Ana Brito e Cunha sustenta que “o Camilo fez parte de uma geração de categoria, de classe, de disciplina e de rigor no trabalho” que se foi perdendo nos últimos anos. A atriz lamentou a morte do ator e humorista e fez questão de elogiar a sua “grande bravura e coragem” por se ter despedido dos palcos quando ainda era adorado pelo público.
Também a cantora Maria José Valério assegura que sempre viu em Camilo “uma pessoa de força”, um homem excecional, que ajudava as pessoas, “um grande ator que ficará sempre na história do teatro”. Por isso, acentua que “o teatro está de luto e foi um bocadinho de mim que se foi também” e que o Camilo ficará para sempre no seu coração.
Para Florbela Queiroz, que contracenou com o ator em “Quando ela se despiu”, assume-se como “a atriz que mais vezes contracenou” com ele, que era “um amor de pessoa fora do palco”. Porém,
“Dentro do palco tínhamos de saber lidar com ele, com aquela mania exagerada da perfeição e do profissionalismo, às vezes era difícil, apesar de nos termos sempre dado muito bem, pois no fundo o que ele queria era um bom espetáculo”.
Segundo a atriz, Camilo “era um excelente ator, um grande profissional de teatro, e cá fora era divertido, um ‘gentleman’, ia para a pesca com as pessoas, era um amor de pessoa”. Em suma, na sua ótica, “foi um dos atores mais populares que o teatro conheceu”.
Também o Presidente da República lamentou a morte do ator. À margem de uma vista à Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Cascais, Rebelo de Sousa aproveitou para lembrar o “humor muito doce, muito português” de Camilo de Oliveira. Amigo do ator-humorista, Marcelo revelou ainda ter estado com o artista “há um mês e meio”, quando o ator esteve internado no Hospital de Cascais. E recordou que, apesar de revelar já um estado de saúde “muito frágil”, nem aí abandonou o “humor de sempre”.
Entretanto, a página web da Presidência da República divulgou uma nota de condolências assinada pelo próprio Marcelo Rebelo de Sousa, onde o Presidente reforça a importância de Oliveira para a comédia popular portuguesa, relatando:
“Ainda há poucas semanas tive oportunidade de recordar histórias antigas, no hospital onde o ator estava internado. Porque a vida de Camilo de Oliveira é uma vida de histórias: mais de seis décadas de teatro, de Buarcos ao Parque Mayer, programas de televisão marcantes como ‘Sabadabadu’ e as sucessivas séries de ‘Camilo’ (o nome próprio bastava para identificá-lo)”.
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O Sporting Clube de Portugal também lamentou a morte de Camilo, figura ímpar do teatro e da cultura portuguesa, referindo que a família leonina fica mais pobre com a partida de um dos seus mais notáveis membros assumidos e empenhados. Um comunicado do SCP refere:
“Camilo de Oliveira foi ‘rugido de Leão’ de 2008 e integrou a Comissão do Centenário do Sporting Clube de Portugal”.
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Camilo de Oliveira tinha os palcos na cabeça e no sangue e o humor nas entranhas e nas veias. Estreou-se na companhia itinerante da família aos 9 anos. Mas foi quando saiu da Figueira da Foz e chegou a Lisboa à procura dum novo fôlego na carreira que se mostrava aliciante a sua disponibilidade para agradar ao público que o seu caráter humorista veio ao de cima. Em 1951, já atuava na Revista à Portuguesa. E “Lisboa é Coisa Boa” foi o seu primeiro sucesso.
Com sorriso e gargalhada garantidos, as peças que protagonizou numa vida dedicada sobretudo à comédia celebrizaram-no por exemplo como “Agostinho”, a contracenar com a Agostinha, ou como “Padre Pimentinha”. Mas muito mais personagens passaram pelo seu currículo artístico que acabavam por se confundir com o próprio ator. Camilo era Camilo, vestisse a pele de quem vestisse. O destaque vai, no entanto, para a dupla “Os Agostinhos”, com Ivone Silva, os dois bêbados que tinham sempre pronto o pretexto para mais uma pinga: “Isto é que vai uma crise”.
Na Revista e no Parque Mayer fez cerca de 50 peças e contracenou com os grandes de épocas passadas e presentes, como Beatriz Costa, Raul Solnado, Vasco Santana, Ribeirinho, Ivone Silva, Vítor de Sousa ou Herman José.
Sabadabadu”, em 1981, da autoria de César Oliveira e Melo Pereira, programa da RTP em que encarnou vários papéis foi a sua primeira grande aproximação ao público de todo o país, que ri com ele e com as suas piadas e o crisma desde logo de “comediante do povo”. Aliás, o respeito pelas plateias foi sempre um dos pontos assentes do quotidiano do seu trabalho. “Sabadabadu foi distinguido com uma menção honrosa no Festival Rosa de Ouro de Montreux, na Suíça.
Mas foi em 1995 que chegou à televisão a sério. Entra na SIC com a série “Camilo & Filho, Lda”, a que se seguiram 6 séries de comédia ao seu estilo, por vezes a raiar o tom brejeiro, mas genuinamente popular: “As aventuras de Camilo” (1997), “Camilo na prisão” (1998), “A loja de Camilo” (1999), “Camilo, o pendura” (esta na RTP, em 2002); “Camilo em sarilhos” (2005/2006, na SIC), na qual contracenou com Maria Emília Correia; e “Camilo o presidente” (2009/2010, na SIC).
Dos seus sucessos, o ator realçava: a comédia em 2 atos “Um coronel”, de Jean-Jacques Bricaire e Maurice Lasaygues, levada à cena no Teatro Variedades, em Lisboa, em que contracenou com Alina Vaz, Francisco Nicholson, António Feio e Paula Marcelo; “Abaixo as Saias” (1958); “Ó Pá, Não Fiques Calado” (1963); “Alto Lá Com Elas” (1970); “As Coisas Que Um Padre Faz” (1976); “Aldeia da Roupa Suja” (1978); “Há Mas São Verdes” (1983); “Isto É Que Vai Uma Crise” (1992); “Camilo & Filhas” (1996); e “2008 – O Meu Rapaz é Rapariga” (2008).
Em 1964, recebeu o Prémio Imprensa para o Melhor Ator do Ano.
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O corpo de Camilo de Oliveira estará em câmara ardente no dia 5, na Basílica da Estrela. O funeral realizar-se-á no dia 6. E assim se afasta provisoriamente de colegas e amigos e da atividade profissional em definitivo o ator e humorista de longa carreira que respeitou o público e granjeou as suas graças. Paz à sua alma!

2016.07.04 – Louro de Carvalho

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