quarta-feira, 20 de julho de 2016

Um poema de Ricardo Reis

Só o ter flores pela vista fora
Nas áleas largas dos jardins exatos
Basta para podermos
Achar a vida leve.

De todo o esforço seguremos quedas
As mãos, brincando, p’ra que nos não tome
Do pulso, e nos arraste.
E vivamos assim,

Buscando o mínimo de dor ou gozo,
Bebendo a goles os instantes frescos,
Translúcidos como água
Em taças detalhadas,

Da vida pálida levando apenas
As rosas breves, os sorrisos vagos,
E as rápidas carícias
Dos instantes volúveis.

Pouco tão pouco pesará nos braços
Com que, exilados das supernas luzes,
´scolhermos do que fomos
O melhor pra lembrar

Quando, acabados pelas Parcas, formos,
Vultos solenes de repente antigos,
E cada vez mais sombras,
Ao encontro fatal

Do barco escuro no soturno rio,
E os nove abraços do horror estígio,
E o regaço insaciável
Da pátria de Plutão.

Ricardo Reis, Poesia, ed de Manuela Parreira da Silva,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, pgs. 36-37
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O poema foi escolhido para análise textual na prova do exame de Português (código 639) do ensino secundário na 2.ª fase. E, como se verá a seguir, enquadra-se na estética clássica e pagã greco-romana perfilhada por Ricardo Reis, um dos heterónimos poéticos de Fernando Pessoa.
Antes de mais, convém olhar para a estrutura externa do poema para melhor atingirmos a sua estrutura interna e percebermos a força do conteúdo poético deste produto literário.
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O poema desenvolve-se em sete quadras de versos brancos. Em cada uma das quadras, os dois primeiros versos são decassílabos sáficos (com acento rítmico nos 4.º, 8.º e 10.º versos) e os outros dois são hexassílabos, heroicos quebrados.
Quem elaborou a referida prova sugere, pela maneira como formula as questões e análise, que o poema se organiza em duas partes, sendo a primeira constituída pelas primeiras quatro estrofes, a espelhar uma determinada filosofia de vida, e a segunda constituída pelas restantes estrofes, com o sujeito poético a perspetivar a morte.
Embora se concorde com tal sugestão para efeitos de uma certa arrumação temática, parece que, em termos da estrutura externa, nos devemos guiar aqui pelas frases completas (e complexas) em que os versos se distribuem. Assim, a primeira parte abrange apenas a primeira estrofe – uma quadra com a estrutura métrica e rítmica acima caraterizada, sustentando a tese de que, para a vida nos ser leve, basta que vejamos flores; a segunda parte abrange as 2.ª, a 3.ª e a 4.ª quadras – enunciando o estilo de vida decorrente da conceção de vida leve plasmada na 1.ª quadra, como se verá mais adiante; e a terceira parte abrange as demais quadras, em que o poeta efetivamente faz a perspetiva e a prospetiva do momento da morte com as reminiscências do pouco, mas relevante, que foi possível levar connosco.
Como se pôde entrever, à estrutura externa corresponde coerentemente uma estrutura interna fortemente temática em torno da ideia força: “a vida e a morte estão já traçadas pelo destino, cabendo ao homem obedecer-lhe”. Assim, o poema é a alegoria da vida rumo à morte.
Neste sentido e por melhor arrumação temática, considera-se, com a entidade que elaborou a prova do predito exame, a unidade temática entre a nossa primeira parte (conceção de uma filosofia de vida) e a segunda (estilo de vida, práxis), em coerência com a primeira. No entanto, é de advertir que a perspetiva/prospetiva da morte definida pelo sujeito poético é consequente com aquela conceção de vida e com a sua práxis. Daqui se se infere, desde já, que o poema tem uma unidade radical e estrutural, a que a variedade de motivos temáticos confere gozo estético. 
Especificando melhor, o emissor lírico, ao utilizar ao longo de todo o poema a primeira pessoa do plural, marcada pelo verbo, nunca utilizando expressamente o pronome pessoal “nós” na função de sujeito (embora se empregue a forma “nos” na função de complemento direto de “tome” e “arraste”), não se refere expressamente, como em alguns poemas, à dupla homem-mulher, mas ao coletivo. No entanto, não a exclui, aplicando-se à sua relação todo o normativo sentencioso que preenche o poema. Por outro lado, tanto o “eu” poético clássico como o romântico figuram a relação privilegiada entre homem e mulher, sendo que o clássico postula mais a razão que a emoção. Neste sentido, ver flores será suficiente para viver a beleza da vida sem que esta pese em demasia; e o apego à vida – quer seja pelo sofrimento quer seja pelo prazer que ela propicia – faria com que o momento da morte constituísse um peso e não um lanço de libertação. Por isso, se releva a exortação a que da vida passageira se colham os momentos de prazer de tona e não de profundidade, seja na relação em sociedade, seja na relação conjugal.
A norma fundamental da vida da fruição estética da natureza e do que ela nos dá – bem como as normas que orientam a práxis e as que emolduram o momento da morte – aplica-se a todas as pessoas. Assim, toda a formulação normativa feita pelo poeta filósofo visa o seu seguimento da parte de todas as pessoas em ordem à facilitação da vida humana e ao aligeiramento da dor provocada efemeridade da vida. Nestes termos, o recurso à primeira pessoa do plural inclusivo – espelhado no pronome pessoal “nos” (vv. 6 e 7) e nas formas verbais “podermos” (v. 3), “seguremos” (v. 5), “vivamos” (v. 8), “’scolhermos” (v. 19), “fomos” (v. 19), “formos” (v. 21) – decorre de uma atitude normativa e disciplinadora (expressa habitualmente de forma orientadora, mas de forma exortativa, no caso das formas verbais “seguremos” e “vivamos” – referidas) assumida pelo emissor poético, incluído por enálage de pessoa nessa primeira pessoa do plural.
Nas quatro primeiras quadras, o sujeito lírico expõe uma filosofia de vida – herdade do grego Epicuro e dos latinos Leucipo e Demócrito – caracterizável por: um gosto pela fruição estética da natureza (“Só o ter flores pela vista fora / Nas áleas largas dos jardins exatos / Basta para podermos / Achar a vida leve.” – vv. 1-4); uma opção pela serenidade, propiciadora de uma atitude contemplativa, mas não extática (“De todo o esforço seguremos quedas / As mãos, brincando, pra que nos não tome / Do pulso, e nos arraste.” – vv. 5-7);  uma atitude valorizadora do prazer moderado (“Buscando o mínimo de dor ou gozo, / Bebendo a goles os instantes frescos,” – vv. 9-10); uma índole translúcida dos momentos de prazer (permitem a luminosidade e não a visão – vv. 11-12); uma consciência da brevidade e fugacidade da vida, que induz o desejo de fruição do presente, expresso na exortação latina horaciana carpe diem (“As rosas breves, os sorrisos vagos, / E as rápidas carícias” –  vv. 14-15); e uma consciência certa da morte, para a qual se levam somente “as rosas”, “os sorrisos” e as “carícias dos instantes volúveis”.
E, nas três últimas estrofes, o emissor lírico faz a perspetiva prospética da morte em consonância com a conceção própria da antiguidade clássica, espelhada: na ideia de que a vida humana é comandada pelo Destino, aqui representado pelas Parcas, e de que a alma atravessa o rio Estige (de quem recebe o nónuplo abraço) e chega aos Infernos, a “pátria de Plutão” (vv. 21-28); na atitude estoica da aceitação da morte, momento a que se deve chegar sem apego a nada e apenas recordando o que foi agradável, para que o sofrimento não seja muito penoso – (vv. 17-20).
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Nesta ode, enquanto cântico da vida e da natureza onde nasce e se desenvolve a vida, que se vai num sopro, exalta-se a caminhada inexorável para a morte. Mas a linguagem que serve este cantar de brevidade da vida sugere a diversificação e a contenção. A vista abrange “as áleas largas” (v. 2) – ou os caminhos ladeados de árvores ou arbustos – “dos jardins exatos”. É a amplidão e a proporção tão próprias do classicismo a inspirar uma certa áurea mediania. E, apesar da vastidão e do peso que a natureza pode conotar, as flores criam, por contraste, a leveza da vida. As mãos devem estar tranquilas e quase imóveis (“quedas”) a brincar sem esforço e sem se deixarem tomar ou arrastar do pulso (note-se o hipérbato), devendo, para isso, cada um de nós tomar posição: “seguremos”. O gozo e a dor devem ser reduzidos ao mínimo para poderem dosear a vida, “bebendo a goles os instantes frescos, translúcidos como água em taças detalhadas (note-se a imagem e a sensação de frescura, bem como a comparação na segunda parte deste segmento e a anástrofe). Veja-se o que se pode extrair e levar da volubilidade dos instantes: “as rosas breves, os sorrisos vagos, e as rápidas carícias” (note-se a aliteração – repetição de sons consonânticos – em “r” e em “v” e a assonância, repetição de sons vocálicos em “a” e em “i”).
Na antepenúltima estrofe, o momento da morte é evocado como um exílio, um afastamento das luzes lá de cima (“supernas”, de super), mas sem o peso que a natureza poderia ter infligido se não fosse a determinação atitudinal do homem de fuga ao envolvimento na dor ou no prazer e de seletividade daquilo que escolheu lembrar. Note-se a diácope na repetição do advérbio “pouco” para caraterizar o pouco peso: “pouco tão pouco”.
A penúltima estrofe e a última mostram a função do destino, aqui concretizado nas três Parcas – divindades da mitologia romana, uma das quais preside ao nascimento, outra ao casamento e a terceira à morte, mas que são momentos interconexos. Aquele segmento que remete para o futuro, “quando formos acabados” (quando nos finarmos) mostra-nos que a morte, o acabamento é obra do destino, das Parcas, tal como o foi o nascimento e o enlace matrimonial. Transformam-nos as Parcas subitamente (e não por obra paciente do Tempo) em “vultos solenes” e “antigos”. E, como sugere a mitologia greco-romana, estes vultos não passam de sombras que marcharão ao encontro fatal (agendado caprichosamente pelo destino ou fatum) do barco escuro no soturno rio (tudo em concurso de escuridão e sombras) – o Estige (rio dos Infernos na mitologia grega) – o qual nos envolve com o nónuplo abraço do horror para sermos tragados no regaço insaciável de Plutão, o deus dos Infernos na mitologia romana.
Note-se que tanto a morte como a entrada nos infernos são expressas em perífrase construída a partir de elementos da mitologia greco-romana, o que – aliado ao restante encadeamento da ode marcada pela linguagem pró-clássica, com a preponderância da natureza no que ela tem de mais belo, a fugacidade da vida e a contida atitude epicurista-estoica – faz deste poema de Ricardo Reis um bom espécime do classicismo horaciano, que bem poderia figurar no cânone literário quinhentista ou no setecentista.
2016.07.20 – Louro de Carvalho      



    

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