Só o ter flores pela vista fora
Nas áleas largas dos jardins exatos
Basta para podermos
Achar a vida leve.
De todo o esforço seguremos quedas
As mãos, brincando, p’ra que nos não
tome
Do pulso, e nos arraste.
E vivamos assim,
Buscando o mínimo de dor ou gozo,
Bebendo a goles os instantes frescos,
Translúcidos como água
Em taças detalhadas,
Da vida pálida levando apenas
As rosas breves, os sorrisos vagos,
E as rápidas carícias
Dos instantes volúveis.
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Pouco tão pouco pesará nos braços
Com que, exilados das supernas luzes,
´scolhermos do que fomos
O melhor pra lembrar
Quando, acabados pelas Parcas, formos,
Vultos solenes de repente antigos,
E cada vez mais sombras,
Ao encontro fatal
Do barco escuro no soturno rio,
E os nove abraços do horror estígio,
E o regaço insaciável
Da pátria de Plutão.
Ricardo Reis, Poesia, ed de Manuela Parreira da Silva,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, pgs. 36-37
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O
poema foi escolhido para análise textual na prova do exame de Português (código
639) do ensino
secundário na 2.ª fase. E, como se verá a seguir, enquadra-se na estética
clássica e pagã greco-romana perfilhada por Ricardo Reis, um dos heterónimos
poéticos de Fernando Pessoa.
Antes
de mais, convém olhar para a estrutura externa do poema para melhor atingirmos
a sua estrutura interna e percebermos a força do conteúdo poético deste produto
literário.
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O
poema desenvolve-se em sete quadras de versos brancos. Em cada uma das quadras,
os dois primeiros versos são decassílabos sáficos (com
acento rítmico nos 4.º, 8.º e 10.º versos)
e os outros dois são hexassílabos, heroicos quebrados.
Quem
elaborou a referida prova sugere, pela maneira como formula as questões e
análise, que o poema se organiza em duas partes, sendo a primeira constituída
pelas primeiras quatro estrofes, a espelhar uma determinada filosofia de vida,
e a segunda constituída pelas restantes estrofes, com o sujeito poético a
perspetivar a morte.
Embora
se concorde com tal sugestão para efeitos de uma certa arrumação temática,
parece que, em termos da estrutura externa, nos devemos guiar aqui pelas frases
completas (e complexas)
em que os versos se distribuem. Assim, a primeira parte abrange apenas a
primeira estrofe – uma quadra com a estrutura métrica e rítmica acima
caraterizada, sustentando a tese de que, para a vida nos ser leve, basta que
vejamos flores; a segunda parte abrange as 2.ª, a 3.ª e a 4.ª quadras –
enunciando o estilo de vida decorrente da conceção de vida leve plasmada na 1.ª
quadra, como se verá mais adiante; e a terceira parte abrange as demais
quadras, em que o poeta efetivamente faz a perspetiva e a prospetiva do momento
da morte com as reminiscências do pouco, mas relevante, que foi possível levar
connosco.
Como
se pôde entrever, à estrutura externa corresponde coerentemente uma estrutura
interna fortemente temática em torno da ideia força: “a vida e a morte estão já
traçadas pelo destino, cabendo ao homem obedecer-lhe”. Assim, o poema é a
alegoria da vida rumo à morte.
Neste
sentido e por melhor arrumação temática, considera-se, com a entidade que
elaborou a prova do predito exame, a unidade temática entre a nossa primeira
parte (conceção
de uma filosofia de vida)
e a segunda (estilo de vida, práxis), em coerência com a primeira. No entanto, é de
advertir que a perspetiva/prospetiva da morte definida pelo sujeito poético é
consequente com aquela conceção de vida e com a sua práxis. Daqui se se infere,
desde já, que o poema tem uma unidade radical e estrutural, a que a variedade
de motivos temáticos confere gozo estético.
Especificando
melhor, o emissor lírico, ao utilizar ao longo de todo o poema a primeira
pessoa do plural, marcada pelo verbo, nunca utilizando expressamente o pronome
pessoal “nós” na função de sujeito (embora se empregue a
forma “nos” na função de complemento direto de “tome” e “arraste”), não se refere expressamente,
como em alguns poemas, à dupla homem-mulher, mas ao coletivo. No entanto, não a
exclui, aplicando-se à sua relação todo o normativo sentencioso que preenche o
poema. Por outro lado, tanto o “eu” poético clássico como o romântico figuram a
relação privilegiada entre homem e mulher, sendo que o clássico postula mais a
razão que a emoção. Neste sentido, ver flores será suficiente para viver a
beleza da vida sem que esta pese em demasia; e o apego à vida – quer seja pelo
sofrimento quer seja pelo prazer que ela propicia – faria com que o momento da
morte constituísse um peso e não um lanço de libertação. Por isso, se releva a
exortação a que da vida passageira se colham os momentos de prazer de tona e
não de profundidade, seja na relação em sociedade, seja na relação conjugal.
A
norma fundamental da vida da fruição estética da natureza e do que ela nos dá –
bem como as normas que orientam a práxis e as que emolduram o momento da morte
– aplica-se a todas as pessoas. Assim, toda a formulação normativa feita pelo
poeta filósofo visa o seu seguimento da parte de todas as pessoas em ordem à
facilitação da vida humana e ao aligeiramento da dor provocada efemeridade da
vida. Nestes termos, o recurso à primeira pessoa do plural inclusivo –
espelhado no pronome pessoal “nos” (vv. 6 e 7) e nas formas verbais “podermos”
(v.
3), “seguremos” (v.
5), “vivamos” (v.
8), “’scolhermos” (v.
19), “fomos” (v.
19), “formos” (v.
21) – decorre de uma
atitude normativa e disciplinadora (expressa habitualmente
de forma orientadora, mas de forma exortativa, no caso das formas verbais
“seguremos” e “vivamos” – referidas)
assumida pelo emissor poético, incluído por enálage
de pessoa nessa primeira pessoa do plural.
Nas
quatro primeiras quadras, o sujeito lírico expõe uma filosofia de vida –
herdade do grego Epicuro e dos latinos Leucipo e Demócrito – caracterizável
por: um gosto pela fruição estética da natureza (“Só o ter flores
pela vista fora / Nas áleas largas dos jardins exatos / Basta para podermos /
Achar a vida leve.” – vv. 1-4);
uma opção pela serenidade, propiciadora de uma atitude contemplativa, mas não
extática (“De todo o esforço seguremos quedas / As mãos,
brincando, pra que nos não tome / Do pulso, e nos arraste.” – vv. 5-7); uma atitude valorizadora do
prazer moderado (“Buscando o mínimo de dor ou gozo, /
Bebendo a goles os instantes frescos,” – vv. 9-10); uma índole translúcida dos momentos de prazer (permitem
a luminosidade e não a visão – vv. 11-12);
uma consciência da brevidade e fugacidade da vida, que induz o desejo de
fruição do presente, expresso na exortação latina horaciana carpe diem (“As
rosas breves, os sorrisos vagos, / E as rápidas carícias” – vv. 14-15);
e uma consciência certa da morte, para a qual se levam somente
“as rosas”, “os sorrisos” e as “carícias dos instantes volúveis”.
E,
nas três últimas estrofes, o emissor lírico faz a perspetiva prospética da morte
em consonância com a conceção própria da antiguidade clássica, espelhada: na
ideia de que a vida humana é comandada pelo Destino, aqui representado pelas
Parcas, e de que a alma atravessa o rio Estige (de quem recebe o
nónuplo abraço) e
chega aos Infernos, a “pátria de Plutão” (vv. 21-28); na atitude estoica da aceitação
da morte, momento a que se deve chegar sem apego a nada e apenas recordando o
que foi agradável, para que o sofrimento não seja muito penoso – (vv.
17-20).
***
Nesta
ode, enquanto cântico da vida e da natureza onde nasce e se desenvolve a vida,
que se vai num sopro, exalta-se a caminhada inexorável para a morte. Mas a
linguagem que serve este cantar de brevidade da vida sugere a diversificação e
a contenção. A vista abrange “as áleas largas” (v. 2) – ou os caminhos ladeados de
árvores ou arbustos – “dos jardins exatos”. É a amplidão e a proporção tão
próprias do classicismo a inspirar uma certa áurea mediania. E, apesar da
vastidão e do peso que a natureza pode conotar, as flores criam, por contraste,
a leveza da vida. As mãos devem estar tranquilas e quase imóveis (“quedas”) a brincar sem esforço e sem se
deixarem tomar ou arrastar do pulso (note-se o hipérbato), devendo, para isso, cada um de
nós tomar posição: “seguremos”. O gozo e a dor devem ser reduzidos ao mínimo
para poderem dosear a vida, “bebendo a goles os instantes frescos, translúcidos
como água em taças detalhadas (note-se a imagem e a sensação de
frescura, bem como a comparação na segunda parte deste segmento e a anástrofe). Veja-se o que se pode extrair
e levar da volubilidade dos instantes: “as rosas breves, os sorrisos vagos, e
as rápidas carícias” (note-se a aliteração – repetição de sons
consonânticos – em “r” e em “v” e a assonância, repetição de sons vocálicos em
“a” e em “i”).
Na
antepenúltima estrofe, o momento da morte é evocado como um exílio, um
afastamento das luzes lá de cima (“supernas”, de super), mas sem o peso que a natureza poderia ter
infligido se não fosse a determinação atitudinal do homem de fuga ao
envolvimento na dor ou no prazer e de seletividade daquilo que escolheu
lembrar. Note-se a diácope na repetição do advérbio “pouco” para caraterizar o
pouco peso: “pouco tão pouco”.
A
penúltima estrofe e a última mostram a função do destino, aqui concretizado nas
três Parcas – divindades da mitologia romana, uma das quais preside ao
nascimento, outra ao casamento e a terceira à morte, mas que são momentos
interconexos. Aquele segmento que remete para o futuro, “quando formos
acabados” (quando nos finarmos) mostra-nos que a morte, o acabamento é obra do
destino, das Parcas, tal como o foi o nascimento e o enlace matrimonial.
Transformam-nos as Parcas subitamente (e não por obra paciente
do Tempo) em “vultos
solenes” e “antigos”. E, como sugere a mitologia greco-romana, estes vultos não
passam de sombras que marcharão ao encontro fatal (agendado
caprichosamente pelo destino ou fatum) do barco escuro no soturno rio
(tudo
em concurso de escuridão e sombras)
– o Estige (rio dos Infernos na mitologia grega) – o qual nos envolve com o
nónuplo abraço do horror para sermos tragados no regaço insaciável de Plutão, o
deus dos Infernos na mitologia romana.
Note-se
que tanto a morte como a entrada nos infernos são expressas em perífrase
construída a partir de elementos da mitologia greco-romana, o que – aliado ao
restante encadeamento da ode marcada pela linguagem pró-clássica, com a
preponderância da natureza no que ela tem de mais belo, a fugacidade da vida e
a contida atitude epicurista-estoica – faz deste poema de Ricardo Reis um bom
espécime do classicismo horaciano, que bem poderia figurar no cânone literário
quinhentista ou no setecentista.
2016.07.20 – Louro de Carvalho
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