domingo, 26 de outubro de 2014

O que se pode dizer do Sínodo dos Bispos 2014?

O que está em causa não é “o que se pode dizer” no sentido de “o que apetece dizer”, mas no de “o que é legítimo dizer” a partir dos textos e da maneira como terão decorrido os trabalhos na aula sinodal e em torno dela. Já não vou relevar a forma como a assembleia sinodal foi preparada, designadamente através do questionário disponibilizado a quem desejou aceder a ele ou o apelo que o Papa lançou a que os participantes se pronunciassem com inteira liberdade, ousadia, sem medo do que outrem pudesse pensar (falar claro).
Porém, não posso deixar de salientar a diferença que raramente se vê fazer entre o que é de instituição divina (a Igreja Universal e as Igrejas particulares – efetivamente os bispos são sucessores dos apóstolos) e o que é de instituição eclesial (a forma concreta como estão organizadas a Igreja Universal e as Igrejas locais, por exemplo, através da conferências episcopais). E Francisco esclareceu-o. No entanto, não é lícito menosprezar o que é de instituição eclesial. Enquanto D. Frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga, lamentava as excessivas honrarias conferidas aos cardeais (cuja púrpura era osculável), que eram de instituição eclesiástica, ao passo que os bispos, de instituição divina, eram olhados de soslaio pelas Eminências, o Papa salienta também a importância do que é eclesialmente instituído.
Vós transmitis a voz das Igrejas particulares, reunidas a nível de Igrejas locais mediante as Conferências Episcopais. A Igreja universal e as Igrejas particulares são de instituição divina; as Igrejas locais assim entendidas são de instituição humana. Esta é a voz que transmitireis em sinodalidade. Trata-se de uma grande responsabilidade: anunciar as realidades e as problemáticas das Igrejas, para as ajudar a percorrer aquele caminho que é o Evangelho da família”.
Então a primeira coisa que devo dizer do sínodo é que ali ressoou a voz do Povo de Deus em ordem a que se definam as melhores formas de ajudar as igrejas particulares a percorrer o caminho do Evangelho da família ante os desafios que o mundo atual apresenta a todos. E essas melhores formas têm de ser encontradas no dinamismo da sinodalidade, ou seja, caminhando, caminhando em conjunto, avançando ou parando e mesmo recuando, conforme as necessidades. E quem se compromete com a sinodalidade deve disponibilizar-se para ceder o seu lugar ou mudar de lugar sempre que tal seja útil para o bom êxito da caminhada.
A segunda coisa que me ocorre apontar é a discussão acesa ocorrida na aula sinodal que até extravasou para o exterior, à boa maneira das diversas pretensões e das discussões entre os apóstolos e entre os discípulos referidas no livro dos Atos dos Apóstolos, bem como nos Evangelhos. Com efeito, a unidade não discutida não se reveste da solidez necessária e precisa da variedade tal como o homem “uno” carece da variedade alimentar.
Não é mais pensável aquela esperança do Cardeal Cerejeira, ao partir para o Concílio, de que tudo se resolveria depressa, dado que já tudo estava mais que estudado. Só que não se lembrou de que João XXIII, quando teve a ideia do concílio, queria mesmo ouvir o concílio. E isso implicava estudo, discussão e mais estudo e discussão. A Cúria Romana, por maior que fosse a sua competência teológico-jurídico-pastoral não passava de um serviço de e à Igreja.
Por outro lado, é de salientar que, apesar da discussão e na discussão, é necessário auscultar o sensus Ecclesiae e sobretudo escutar o Espírito e associá-lo às decisões, como revela o livro dos Atos. E tudo tinha de decorrer cum Petro et sub Petro. Seria de lamentar se esta postura não tivesse sido a da generalidade dos padres sinodais! Por isso, não é de aplaudir a atitude daqueles poucos que tentaram mobilizar para a sua causa o Pontífice emérito, o qual felizmente não se sentiu vocacionado para tal e, segundo consta, terá enviado um bilhete autógrafo a solicitar que não o procurassem dado que ele não é o Papa e agora é Francisco quem decide!
Não é legítimo pretender que o resultado do sínodo tenha sido uma derrota de Francisco e da “linha mais aberta” que ele parece representar sobre determinadas questões candentes, tais como as atinentes aos homossexuais, ao divórcio ou ao matrimónio. Também não se poderá dizer que a linguagem atenuada sobre aqueles assuntos no documento final do Sínodo represente uma clivagem inultrapassável divisora de águas, em que os defensores daquela “linha mais aberta” “não foram suficientemente longe”, como opinou o cardeal Vincent Nichols, de Westminster.
É também verdade que aquilo que a jornada sinodal perspetivou em caráter um tanto inconclusivo foi compensado em transparência (incluindo o resultado das votações de cada ponto), mesmo que incómoda para alguns setores, e na inovação metodológica com o começo de cada sessão pelo testemunho dos casais que foram convidados a participar. Não foram meros observadores nem menorizaram as discussões episcopais nem o contributo dos peritos.
Dizer-se complacentemente que este não é o fim, mas apenas o começo não me satisfaz do ponto de vista epistemológico. Na verdade, esta assembleia sinodal extraordinária foi projetada para fazer a propedêutica da agenda dum Sínodo dos Bispos ordinário e maior sobre a família, convocado pelo Papa Francisco para outubro de 2015. Porém, os prolegómenos duma obra ou duma atividade relevante marcam inevitavelmente o sentido da obra / atividade. Este sínodo de 2014, não sendo conclusivo, configura uma face do programa sinodal. E, neste sentido, ele cumpriu o objetivo. Tenha ou não conseguido a maioria qualificada de dois terços para a legitimidade da assunção de todas as matérias discutidas, nada ficou como dantes e os temas ficam de pé e serão objeto de ulterior reflexão, quer nas Igrejas locais, quer na próxima assembleia sinodal ordinária. Por isso, discutir se os bispos “rejeitaram” os dois parágrafos do documento final ao não obterem dois terços dos votos – um sobre os homossexuais e outros sobre o divórcio e o matrimónio – acaba por redundar em erro. Na realidade, não estava no horizonte desta jornada “aceitar” ou “rejeitar” em definitivo coisa alguma.
Se quisermos fazer uma aproximação à velha metodologia da Ação Católica, estas jornadas constituíram a fase do VER a realidade e analisá-la de forma crítica. O encontro, neste aspeto, encetou a segunda fase, a do JULGAR. Tanto assim é que os padres sinodais reconheceram como critérios balizadores que não se trata de alterar a doutrina ou os seus princípios, que não são de aceitar de forma igualitária a família marcada pelos valores e aquela que voluntariamente os desconsidere. Porém, é necessário relevar menos os princípios e a doutrina ante as situações de irregularidade e de sofrimento, dando mais testemunho da misericórdia, cultivando a cultura da proximidade, abandonando as linguagens humilhantes e anatematizadoras, promovendo a cultura da tolerância e fazendo uma opção mais pastoral. Falta, assim, concluir a fase do JULGAR, não segundo os critérios humanos (ou até desumanos), mas segundo os critérios do Evangelho – o que se preparará a nível das Igrejas particulares e na próxima assembleia sinodal. E nesta, iluminando com as atitudes do Evangelho a plataforma de desafios hoje colocados às famílias e a cada um dos seus elementos, se desenhará o programa de ação pastoral – o AGIR.
Aventam-se a hipótese de entre o presente e o próximo momento sinodal, o Papa vir provavelmente a fazer alguns movimentos importantes no âmbito do pessoal da Cúria Romana e no das dioceses, mudanças que podem alterar o perfil do próximo grupo de participantes na aula sinodal. Nada mais natural: as idades de otimização do serviço de bispos (75 anos) e cardeais (80) são suscetíveis de alteração em cada caso; haverá mudanças na presidência das conferências episcopais; ocorrerão óbitos, renúncias, transferências. Mas é a mesma Igreja!
E, se houve um relatório que não espelhava o pensamento de todos os setores da assembleia reunida cum Petro et sub Petro (o que é diferente de não corresponder à verdade) ou se houve algum Continente a quem não foi dado integrar uma estrutura sinodal de relevo, pois que se corrijam tais anomalias, que não beliscam a validade das discussões nem das conclusões. Não vá alguém voltar a dizer com razão que o Sínodo foi uma assembleia geral da ONU em versão eclesial. Seria pobre!
***
Entretanto, o Papa Francisco não se intimida. Proferiu mesmo um discurso no final do Sínodo que todos, praticamente, aplaudiram durante cinco minutos e concordam estar entre os melhores do seu pontificado. O que diz ele do Sínodo?
Dias passados sob a orientação e acompanhamento do Senhor, com as luzes do Espírito Santo;
– Momento de “participação concreta e frutuosa”;
Vivência – com um espírito de colegialidade e de sinodalidade — de uma verdadeira experiência de “Sínodo”, um percurso solidário, um “caminho conjunto”, “momentos de corrida apressada, momentos de cansaço e momentos de entusiasmo e ardor;
 – Tempo de momentos de profunda consolação, ouvindo o testemunho de autênticos pastores e de momentos de consolação, graça e conforto, ouvindo os testemunhos das famílias que participaram no Sínodo e compartilharam a beleza e a alegria da sua vida matrimonial;
Caminho onde o mais forte se sentiu no dever de ajudar o menos forte, onde o mais perito se prestou a servir os demais, inclusive através de confrontos, embora com momentos de desolação, de tensão e de tentações.

E o Papa enuncia cada uma das tentações que passaram pela aula sinodal:
A do endurecimento hostil, ou seja, o desejo de se fechar dentro daquilo que está escrito (a letra da lei) sem se deixar surpreender por Deus, pelo Deus das surpresas (o espírito) – tradicionalismo e intelectualismo;
A da bonacheirice destrutiva, que em nome de uma misericórdia enganadora liga as feridas sem antes as curar e medicar, que trata os sintomas e não as causas nem as raízes – progressismo e liberalismo;
A de transformar a pedra em pão para interromper um jejum prolongado, pesado e doloroso e de transformar o pão em pedra e lançá-la contra os pecadores, os frágeis e os doentes – farisaísmo;
A de descer da cruz, para contentar as massas, e não permanecer nela, para cumprir a vontade do Pai – populismo;
A de descuidar o «depositum fidei», considerando-se não guardiões mas proprietários e senhores ou, por outro lado, a tentação de descuidar a realidade, recorrendo a uma terminologia minuciosa e uma linguagem burilada, para falar de muitas coisas sem nada dizer – bizantinismo.

Depois, Francisco confessa que “ficaria muito preocupado e triste se não tivesse havido estas tentações e estes debates animados” – este movimento dos espíritos, como lhe chamava Santo Inácio – “se todos tivessem estado de acordo ou ficassem taciturnos numa paz falsa e quietista”. Mas reconheceu discursos e intervenções cheios de fé, de zelo pastoral e doutrinal, de sabedoria, de desassombro, de coragem e de parresia. Sentiu que, diante dos próprios olhos, se tinha o bem da Igreja, das famílias e a suprema lex, a salus animarum, sem nunca se pôr em causa as verdades fundamentais do Matrimónio: a indissolubilidade, a unidade, a fidelidade e a procriação, ou seja, a abertura à vida.
Por isso, exclama:
Esta é a Igreja, a vinha do Senhor, a Mãe fecunda e a Mestra solícita, que não tem medo de arregaçar as mangas para derramar o azeite e o vinho sobre as feridas dos homens; que não observa a humanidade a partir de um castelo de vidro para julgar ou classificar as pessoas. Esta é a Igreja Una, Santa, Católica, Apostólica e formada por pecadores, necessitados da sua misericórdia. Esta é a Igreja, a verdadeira Esposa de Cristo, que procura ser fiel ao seu Esposo e à sua doutrina. É a Igreja que não tem medo de comer e beber com as prostitutas e os publicanos”.
Esta é
“A Igreja que tem as suas portas escancaradas para receber os necessitados, os arrependidos, e não apenas os justos ou aqueles que se julgam perfeitos! A Igreja que não se envergonha do irmão caído nem finge que não o vê, antes pelo contrário sente-se comprometida e quase obrigada a levantá-lo e a encorajá-lo a retomar o caminho, acompanhando-o rumo ao encontro definitivo, com o Esposo, na Jerusalém celeste”.
Finalmente, falou do Papa na sua relação com os bispos. Sendo a tarefa do Papa garantir a unidade da Igreja, deve recordar aos pastores o seu primeiro dever que é alimentar a grei que o Senhor lhes confiou e procurar ir ao encontro das ovelhas tresmalhadas, com paternidade e misericórdia, e sem falsos temores. É também sua tarefa recordar a todos que na Igreja a autoridade é serviço, como explicou com nitidez o Papa Bento XVI:
A Igreja está chamada e compromete-se a exercer este tipo de autoridade que é serviço, e exerce-a não em seu nome, mas no de Jesus Cristo... De facto, através dos Pastores da Igreja, Cristo apascenta a sua grei: é Ele quem a guia, protege e corrige, porque a ama profundamente”.
Por isso, a Igreja é de Cristo, é a sua Esposa. E todos os bispos, em comunhão com o Sucessor de Pedro, têm a missão e o dever de a guardar e servir não como patrões, mas como servidores. Assim, o Papa não é o senhor supremo mas, o supremo servidor, o servus servorum Dei; o garante da obediência e da conformidade da Igreja com a vontade divina, o Evangelho de Cristo e a Tradição da Igreja, pondo de lado qualquer arbítrio pessoal, embora seja, por vontade de Cristo, o supremo Pastor e Doutor de todos os fiéis e goze na Igreja de poder ordinário, supremo, pleno, imediato e universal.
Têm, pois, as Igrejas particulares um ano de trabalho sobre a Relatio synodi, o resumo fiel e claro do que foi dito e debatido nesta Sala e nos círculos menores (Note-se o pormenor). E este documento é apresentado às Conferências Episcopais como Lineamenta do próximo sínodo.
Temos ainda um ano para maturar, com verdadeiro discernimento espiritual, as ideias propostas e encontrar soluções concretas para tantas dificuldades e os inúmeros desafios que as famílias devem enfrentar; para dar resposta aos numerosos motivos de desânimo que envolvem e sufocam as famílias – disse.


Querem maior eficácia e melhor utilidade que esta, um sínodo servir de documento de trabalho para o sínodo seguinte? Querem melhor síntese do espírito sinodal que o apontado no discurso papal? Que melhor forma querem de honrar a memória do Beato Paulo VI, que instituiu o Sínodo dos Bispos no cumprimento de uma opção conciliar como uma das modalidades mais visíveis da colegialidade e da solicitude dos bispos por todas as Igrejas?

Sem comentários:

Enviar um comentário