O
que está em causa não é “o que se pode dizer” no sentido de “o que apetece
dizer”, mas no de “o que é legítimo dizer” a partir dos textos e da maneira
como terão decorrido os trabalhos na aula sinodal e em torno dela. Já não vou
relevar a forma como a assembleia sinodal foi preparada, designadamente através
do questionário disponibilizado a quem desejou aceder a ele ou o apelo que o
Papa lançou a que os participantes se pronunciassem com inteira liberdade,
ousadia, sem medo do que outrem pudesse pensar (falar claro).
Porém,
não posso deixar de salientar a diferença que raramente se vê fazer entre o que
é de instituição divina (a Igreja Universal e as Igrejas particulares –
efetivamente os bispos são sucessores dos apóstolos) e o que é de instituição
eclesial (a forma concreta como estão organizadas a Igreja Universal e as
Igrejas locais, por exemplo, através da conferências episcopais). E Francisco
esclareceu-o. No entanto, não é lícito menosprezar o que é de instituição
eclesial. Enquanto D. Frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga,
lamentava as excessivas honrarias conferidas aos cardeais (cuja
púrpura era osculável),
que eram de instituição eclesiástica, ao passo que os bispos, de instituição
divina, eram olhados de soslaio pelas Eminências, o Papa salienta também a
importância do que é eclesialmente instituído.
“Vós transmitis a voz das Igrejas particulares,
reunidas a nível de Igrejas locais mediante as Conferências Episcopais. A
Igreja universal e as Igrejas particulares são de instituição divina; as
Igrejas locais assim entendidas são de instituição humana. Esta é a voz que
transmitireis em sinodalidade.
Trata-se de uma grande responsabilidade: anunciar as realidades e as
problemáticas das Igrejas, para as ajudar a percorrer aquele caminho que é o
Evangelho da família”.
Então
a primeira coisa que devo dizer do sínodo é que ali ressoou a voz do Povo de
Deus em ordem a que se definam as melhores formas de ajudar as igrejas
particulares a percorrer o caminho do Evangelho da família ante os desafios que
o mundo atual apresenta a todos. E essas melhores formas têm de ser encontradas
no dinamismo da sinodalidade, ou seja, caminhando, caminhando em conjunto,
avançando ou parando e mesmo recuando, conforme as necessidades. E quem se
compromete com a sinodalidade deve disponibilizar-se para ceder o seu lugar ou
mudar de lugar sempre que tal seja útil para o bom êxito da caminhada.
A
segunda coisa que me ocorre apontar é a discussão acesa ocorrida na aula
sinodal que até extravasou para o exterior, à boa maneira das diversas
pretensões e das discussões entre os apóstolos e entre os discípulos referidas
no livro dos Atos dos Apóstolos, bem como nos Evangelhos. Com efeito, a unidade
não discutida não se reveste da solidez necessária e precisa da variedade tal como
o homem “uno” carece da variedade alimentar.
Não
é mais pensável aquela esperança do Cardeal Cerejeira, ao partir para o
Concílio, de que tudo se resolveria depressa, dado que já tudo estava mais que
estudado. Só que não se lembrou de que João XXIII, quando teve a ideia do concílio,
queria mesmo ouvir o concílio. E isso implicava estudo, discussão e mais estudo
e discussão. A Cúria Romana, por maior que fosse a sua competência
teológico-jurídico-pastoral não passava de um serviço de e à Igreja.
Por
outro lado, é de salientar que, apesar da discussão e na discussão, é
necessário auscultar o sensus Ecclesiae
e sobretudo escutar o Espírito e associá-lo às decisões, como revela o livro
dos Atos. E tudo tinha de decorrer cum
Petro et sub Petro. Seria de lamentar se esta postura não tivesse sido a da
generalidade dos padres sinodais! Por isso, não é de aplaudir a atitude
daqueles poucos que tentaram mobilizar para a sua causa o Pontífice emérito, o
qual felizmente não se sentiu vocacionado para tal e, segundo consta, terá
enviado um bilhete autógrafo a solicitar que não o procurassem dado que ele não
é o Papa e agora é Francisco quem decide!
Não
é legítimo pretender que o resultado do sínodo
tenha sido uma derrota de Francisco e da “linha mais aberta” que ele parece representar
sobre determinadas questões candentes, tais como as atinentes aos homossexuais,
ao divórcio ou ao matrimónio. Também não se poderá dizer que a linguagem
atenuada sobre aqueles assuntos no documento final do Sínodo represente uma
clivagem inultrapassável divisora de águas, em que os defensores daquela “linha
mais aberta” “não foram suficientemente longe”, como opinou o cardeal Vincent Nichols, de
Westminster.
É também verdade que aquilo que a jornada
sinodal perspetivou em caráter um tanto inconclusivo foi compensado em
transparência (incluindo o resultado das votações de cada ponto), mesmo que
incómoda para alguns setores, e na inovação metodológica com o começo de cada
sessão pelo testemunho dos casais que foram convidados a participar. Não foram
meros observadores nem menorizaram as discussões episcopais nem o contributo
dos peritos.
Dizer-se complacentemente que este não é o fim, mas apenas o começo não me satisfaz
do ponto de vista epistemológico. Na
verdade, esta assembleia sinodal extraordinária foi projetada para fazer a
propedêutica da agenda dum Sínodo dos Bispos ordinário e maior sobre
a família, convocado pelo Papa
Francisco para outubro de 2015. Porém, os prolegómenos duma obra ou
duma atividade relevante marcam inevitavelmente o sentido da obra / atividade.
Este sínodo de 2014, não sendo conclusivo, configura uma face do programa
sinodal. E, neste sentido, ele cumpriu o objetivo. Tenha ou não conseguido a
maioria qualificada de dois terços para a legitimidade da assunção de todas as
matérias discutidas, nada ficou como dantes e os temas ficam de pé e serão
objeto de ulterior reflexão, quer nas Igrejas locais, quer na próxima
assembleia sinodal ordinária. Por isso, discutir se os bispos “rejeitaram” os dois parágrafos do documento final ao não obterem dois terços dos votos – um sobre os homossexuais e outros sobre o
divórcio e o matrimónio – acaba por redundar em erro. Na realidade, não estava no horizonte desta
jornada “aceitar” ou “rejeitar” em definitivo coisa alguma.
Se quisermos fazer uma aproximação à velha metodologia da Ação Católica,
estas jornadas constituíram a fase do VER a realidade e analisá-la de forma
crítica. O encontro, neste aspeto, encetou a segunda fase, a do JULGAR. Tanto
assim é que os padres sinodais reconheceram como critérios balizadores que não
se trata de alterar a doutrina ou os seus princípios, que não são de aceitar de
forma igualitária a família marcada pelos valores e aquela que voluntariamente
os desconsidere. Porém, é necessário relevar menos os princípios e a doutrina ante
as situações de irregularidade e de sofrimento, dando mais testemunho da
misericórdia, cultivando a cultura da proximidade, abandonando as linguagens
humilhantes e anatematizadoras, promovendo a cultura da tolerância e fazendo
uma opção mais pastoral. Falta, assim, concluir a fase do JULGAR, não segundo
os critérios humanos (ou até desumanos), mas segundo os critérios do Evangelho
– o que se preparará a nível das Igrejas particulares e na próxima assembleia
sinodal. E nesta, iluminando com as atitudes do Evangelho a plataforma de
desafios hoje colocados às famílias e a cada um dos seus elementos, se
desenhará o programa de ação pastoral – o AGIR.
Aventam-se a hipótese de entre o presente
e o próximo momento sinodal, o Papa vir provavelmente
a fazer alguns movimentos importantes no âmbito do pessoal da Cúria
Romana e no das dioceses, mudanças que podem alterar o perfil do próximo grupo
de participantes na aula sinodal. Nada mais natural: as idades de otimização do
serviço de bispos (75 anos) e cardeais (80) são suscetíveis de alteração em
cada caso; haverá mudanças na presidência das conferências episcopais; ocorrerão
óbitos, renúncias, transferências. Mas é a mesma Igreja!
E, se houve
um relatório que não espelhava o pensamento de todos os setores da assembleia
reunida cum Petro et sub Petro (o que
é diferente de não corresponder à verdade) ou se houve algum Continente a quem
não foi dado integrar uma estrutura sinodal de relevo, pois que se corrijam
tais anomalias, que não beliscam a validade das discussões nem das conclusões.
Não vá alguém voltar a dizer com razão que o Sínodo foi uma assembleia geral da
ONU em versão eclesial. Seria pobre!
***
Entretanto, o Papa Francisco não se intimida.
Proferiu mesmo um discurso no final do Sínodo que todos, praticamente, aplaudiram durante cinco
minutos e concordam estar entre os melhores do seu pontificado. O que diz ele
do Sínodo?
– Dias passados sob a orientação e
acompanhamento do Senhor, com as luzes do Espírito Santo;
– Momento de “participação concreta e frutuosa”;
– Vivência – com um espírito de
colegialidade e de sinodalidade — de uma verdadeira
experiência de “Sínodo”, um percurso solidário, um “caminho conjunto”, “momentos
de corrida apressada, momentos de cansaço e momentos de entusiasmo e ardor;
–
Tempo de momentos de profunda consolação, ouvindo o testemunho
de autênticos pastores e de momentos de consolação, graça e conforto, ouvindo os
testemunhos das famílias que participaram no Sínodo e compartilharam a beleza e
a alegria da sua vida matrimonial;
– Caminho onde o mais forte se sentiu
no dever de ajudar o menos forte, onde o mais perito se prestou a servir os
demais, inclusive através de confrontos, embora com momentos de desolação, de
tensão e de tentações.
E o Papa
enuncia cada uma das tentações que passaram pela aula sinodal:
– A do endurecimento hostil,
ou seja, o desejo de se fechar dentro daquilo que está escrito (a letra da
lei) sem se deixar surpreender por Deus, pelo Deus das surpresas (o
espírito) – tradicionalismo e
intelectualismo;
– A da bonacheirice destrutiva,
que em nome de uma misericórdia enganadora liga as feridas sem antes as curar e
medicar, que trata os sintomas e não as causas nem as raízes – progressismo e liberalismo;
– A de transformar a pedra em
pão para interromper um jejum prolongado, pesado e doloroso e de
transformar o pão em pedra e lançá-la contra os pecadores, os
frágeis e os doentes – farisaísmo;
– A de descer da cruz, para contentar
as massas, e não permanecer nela, para cumprir a vontade do Pai – populismo;
– A de descuidar o «depositum
fidei», considerando-se não guardiões mas proprietários e senhores ou, por
outro lado, a tentação de descuidar a realidade, recorrendo a uma terminologia
minuciosa e uma linguagem burilada, para falar de muitas coisas sem nada dizer –
bizantinismo.
Depois,
Francisco confessa que “ficaria muito preocupado e triste se não tivesse havido
estas tentações e estes debates animados” – este movimento dos espíritos, como
lhe chamava Santo Inácio – “se todos tivessem estado de acordo ou ficassem
taciturnos numa paz falsa e quietista”. Mas reconheceu discursos e intervenções
cheios de fé, de zelo pastoral e doutrinal, de sabedoria, de desassombro, de
coragem e de parresia. Sentiu que, diante dos próprios olhos, se
tinha o bem da Igreja, das famílias e a suprema lex, a salus animarum,
sem nunca se pôr em causa as verdades fundamentais do Matrimónio: a
indissolubilidade, a unidade, a fidelidade e a procriação, ou seja, a abertura
à vida.
Por isso,
exclama:
“Esta é a Igreja, a vinha do Senhor, a Mãe
fecunda e a Mestra solícita, que não tem medo de arregaçar as mangas para
derramar o azeite e o vinho sobre as feridas dos homens; que não observa a
humanidade a partir de um castelo de vidro para julgar ou classificar as
pessoas. Esta é a Igreja Una, Santa, Católica, Apostólica e formada por
pecadores, necessitados da sua misericórdia. Esta é a Igreja, a verdadeira
Esposa de Cristo, que procura ser fiel ao seu Esposo e à sua doutrina. É a
Igreja que não tem medo de comer e beber com as prostitutas e os publicanos”.
Esta é
“A Igreja que tem as suas portas escancaradas para
receber os necessitados, os arrependidos, e não apenas os justos ou aqueles que
se julgam perfeitos! A Igreja que não se envergonha do irmão caído nem finge
que não o vê, antes pelo contrário sente-se comprometida e quase obrigada a
levantá-lo e a encorajá-lo a retomar o caminho, acompanhando-o rumo ao encontro
definitivo, com o Esposo, na Jerusalém celeste”.
Finalmente,
falou do Papa na sua relação com os bispos. Sendo a tarefa do Papa garantir a
unidade da Igreja, deve recordar aos pastores o seu primeiro dever que é
alimentar a grei que o Senhor lhes confiou e procurar ir ao encontro das
ovelhas tresmalhadas, com paternidade e misericórdia, e sem falsos temores. É
também sua tarefa recordar a todos que na Igreja a autoridade é serviço, como
explicou com nitidez o Papa Bento XVI:
“A Igreja está chamada e compromete-se a
exercer este tipo de autoridade que é serviço, e exerce-a não em seu nome, mas
no de Jesus Cristo... De facto, através dos Pastores da Igreja, Cristo
apascenta a sua grei: é Ele quem a guia, protege e corrige, porque a ama
profundamente”.
Por isso, a
Igreja é de Cristo, é a sua Esposa. E todos os bispos, em comunhão com o
Sucessor de Pedro, têm a missão e o dever de a guardar e servir não como patrões,
mas como servidores. Assim, o Papa não é o senhor supremo mas,
o supremo servidor, o servus servorum Dei; o garante da
obediência e da conformidade da Igreja com a vontade divina, o Evangelho de
Cristo e a Tradição da Igreja, pondo de lado qualquer arbítrio pessoal, embora
seja, por vontade de Cristo, o supremo Pastor e Doutor de todos os fiéis
e goze na Igreja de poder ordinário, supremo, pleno, imediato e universal.
Têm, pois,
as Igrejas particulares um ano de trabalho sobre a Relatio synodi, o resumo fiel e claro do que foi dito e
debatido nesta Sala e nos círculos menores (Note-se o pormenor). E este
documento é apresentado às Conferências Episcopais como Lineamenta do próximo sínodo.
Temos ainda um ano para
maturar, com verdadeiro discernimento espiritual, as ideias propostas e
encontrar soluções concretas para tantas dificuldades e os inúmeros desafios
que as famílias devem enfrentar; para dar resposta aos numerosos motivos de
desânimo que envolvem e sufocam as famílias – disse.
Querem maior
eficácia e melhor utilidade que esta, um sínodo servir de documento de trabalho
para o sínodo seguinte? Querem melhor síntese do espírito sinodal que o
apontado no discurso papal? Que melhor forma querem de honrar a memória do
Beato Paulo VI, que instituiu o Sínodo dos Bispos no cumprimento de uma opção
conciliar como uma das modalidades mais visíveis da colegialidade e da
solicitude dos bispos por todas as Igrejas?
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