domingo, 26 de outubro de 2014

26 de outubro de 2014: um centenário e um 890.º aniversário

É verdade. E já que gostamos de celebrar efemérides – e fazemos bem – ocorre-me evocar a celebração do Batismo do cónego José Cardoso de Almeida, precisamente a 26 de outubro de 1914, na igreja românica de Sernancelhe, e que nascera a 8 de agosto daquele ano na paróquia de Nossa Senhora do Amial, freguesia de Vila da Ponte, do concelho de Sernancelhe. Esta memória do seu batismo foi bem frisada em 25 de outubro de 1992, justamente na igreja matriz de Sernancelhe, pelo pároco e então arcipreste, hoje Monsenhor Cândido Azevedo, no âmbito de homenagem que a diocese de Lamego, por iniciativa do concelho, prestou àquele que ficou para memória como o “Catequista dos Catequistas”, o inefável amigo das crianças da catequese.
Em centenário do começo da I Grande Guerra, quero lembrar um homem de paz a conseguir-se pela educação e educação cristã.
 Por outro lado, o 890.º aniversário referenciado na epígrafe diz respeito à outorga do foral velho de Sernancelhe, que ocorreu no 7.º dia antes das calendas de novembro, era de mil cento e sessenta e dois, como reza o texto latino do foral, transcrito pelo Abade Vasco Moreira na sua monografia do concelho de Sernancelhe, em 1929, sob o título Terras da Beira – Cernancelhe e seu Alfoz, de que mais adiante farei pequeno comentário a partir da tentativa de tradução que fiz em 2002 no meu Da Varanda do Távora – Sernancelhe na Marcha da Torrente. Para já, devo explicitar que aquela datação corresponde à era de César, que grosso modo se transfere para a nossa era cristã ou gregoriana subtraindo ao ano em causa a parcela de 38 (1162-38=1124). Por outro lado, a datação romana, expressa pelo numeral ordinal (hoje adjetivo numeral), reporta-se habitualmente ao marco mensal seguinte (Calendas, Nonas e Idus), neste caso, as calendas de novembro. Ora o 7.º dia antes das calendas de novembro, porque outubro é mês de 31 dias, contando-se o terminus a quo e o terminus ad quem, equivale ao nosso dia 26 de outubro, neste caso de 1124.
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Quem foi o cónego José Cardoso de Almeida – primeira evocação do dia, apontada supra?
Nascido, como se indicou já, em 8 de agosto de 1914 na freguesia de Vila da Ponte, após a conclusão do ensino primário, fez os seus estudos no seminário diocesano e foi ordenado sacerdote a 26 de julho de 1942, na igreja paroquial da sua terra natal, por Dom Agostinho de Jesus e Sousa. Ao longo do seu percurso pastoral foi nomeado cónego honorário da Sé Catedral de Lamego, passando mais tarde a integral o cabido da catedral como cónego capitular.
Fica na memória eclesial da diocese de Lamego e em várias outras do país como sacerdote zeloso e prestigiado. Desenvolveu notável ação pedagógica inovadora nos campos da pregação e das catequeses. Caldeava muito bem a humildade colaborante em todos os setores da atividade pastoral com a crítica atempada, clara e vigorosa.
Bem cedo o pároco de Vila da Rua – qualidade em que iniciou o labor apostólico – graças ao seu poder inovador em catequese, foi chamado a dirigir o Secretariado Diocesano da Catequese e a visitar as catequeses paroquiais. O homem eminentemente prático, mercê da intuição, estudo e contacto com outras realidades, transmutou-se no teórico-prático. Não obstante, não olvidou o tempo de pároco e recusou utopias ou teorias que não pudesse demonstrar ou não pudesse levar à prática. Mobilizou em torno da catequese, nos diversos níveis etários, uma plêiade colaboradores em quem inalou fulgor evangélico-apostólico, criando esquemas e meios de sensibilização, formação e celebração. Encabeçava a organização de cursos ou ajudava a constituir equipas formadoras. Organizou, a nível concelhio e diocesano, concentrações, certames catequísticos e congressos eucarísticos, planos e jornadas de formação e pastoral familiar. Criava empatia e inspirava boa disposição. Suas palavras e expressões revelavam saber e bonomia, ciência e sentido prático.
Convicto dos inusitados desafios que se colocavam às famílias, propôs a criação do respetivo secretariado diocesano, de que foi o primeiro diretor. Não se entregando somente a iniciativas de que fosse o autor, servia. Assim, também dirigiu a Obra das Vocações e Seminários e assumiu interinamente a direção do Secretariado Diocesano da Educação Cristã da Juventude.
No seu justo saber, entendeu que a educação de crianças e jovens pastava necessariamente pela formação dos pais. Por isso, multiplicou as palestras e cursos de formação para os pais.
Foi ainda, durante largos anos, professor de Pedagogia Catequística no Seminário Maior e de Moral na Escola do Magistério Primário de Lamego, desde o momento da sua criação.
Veio a finar-se, em Lamego, a 30 de janeiro de 1984 (já lá vão 30 anos), sem que alguém contasse. As exéquias em Lamego e Vila da Ponte constituíram celebração de saudade e apoteose ao homem, ao sacerdote, ao pedagogo – que ensinava a ensinar, ensinava a aprender e aprendia ensinando.
Resta a lembrança das suas palestras e pregações e o rol extenso de publicações como repositório de produção intelectual de caráter metódico, exposição fácil e simpática de conteúdos, afirmação convincente de ideias, jeito de provocar a resposta, habilidade de estabelecer diálogo.
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Quanto ao foral de há 890 anos, há que dizer que não é de outorga real nem condal. Foi outorgado por dois ricos-homens de Entre Douro e Minho, Egas Gosendes e João Viegas.
O texto é encimado pelo formulário de invocação trinitária, em voga em documentos congéneres de interesse público e nas crónicas, revelador da ordem político-jurídica sob o signo da religião e fé cristãs.
A João Viegas apõe-se o designativo de supranominato, quando não consta de qualquer outro documento, o que supõe que lhe é feita especial menção pelo seu cargo em Sernancelhe.
A carta de foral não supõe que Sernancelhe estivesse despovoado. Pelo contrário, até refere, no fim, como um dos destinatários o povoador. Visa, antes, o aumento da população. A carta não parece institutiva do concelho, que se supõe pré-existente, mas dá-lhe um estatuto autonómico (regime do foro: autonomia, forma de administração e ocupação do território, direitos e deveres) à luz do qual se procederá e julgará.
O regime foraleiro consigna rendas e foros por haveres, tempos e trabalho; estabelece as penas pelos crimes, que se especificam: homicídio, homicídio com fuga, rapto, furto, amputação de membros, agressões, apreensões e invasões, destruição de igrejas e enxovalhamento, colocação de lama ou “merda” na boca ou na face, adultério e fornicação. Prevê também o desafio por juízo de Deus ou ordálio
Determina-se o zelo pelo estatuto e direitos e a obrigação de defesa e proteção; o zelo pelo bem da alma, o casamento e a constituição de herdeiro. Preveem-se penas por crimes políticos, nomeadamente a agressão especial, o litígio ou contenda contra vizinhos ou contra o senhor, bem como a traição; e estabelece-se a obrigação de o senhor responder aos apelos de socorro da parte dos moradores contra os inimigos externos.
Define-se o regime de instituição dos magistrados e seus direitos, privilegiando-se a eleição, preceitua-se a obrigação de julgar antes de aplicar a pena, consignam-se os direitos do senhor, prevê-se a mudança de estatuto dos moradores e estabelecem-se penas e encargos adicionais.
São definidos os limites do município e elencam-se penas para qualquer senhor que não os reconheça ou os queira alterar.
Por fim, vem a aposição da data, a assinatura e autenticação, a cláusula de salvaguarda para o alcaide que povoou a vila, filho e neto (manterão a sua “honra”) bem como a nomeação das testemunhas.
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Um documento tão meticuloso e regulador parece não querer deixar nada no olvido, pelo que se torna um pouco repetitivo, que não exaustivo. Também não remete para documentos de similar feição. No entanto, contém virtualidades ainda hoje pertinentes, de que destaco uma boa dúzia:
1) A possível, se não a desejável, igualdade entre homem e mulher – no crime, na pena, na vitimação e na intervenção;
2) A tipificação dos crimes, já que “nullum crimen sine lege”, para obstar ao julgamento arbitrário, bem como a obrigação de julgar antes da aplicação da pena, como forma de estabelecer um tipo de “habeas corpus”;
3) A gradação e proporcionalidade da pena, de acordo com o crime, o sujeito e o lesado, o lugar e o tempo e a assunção da responsabilidade;
4) O caráter redentor da pena, pois que, satisfeita a obrigação e a justiça, nada mais se deverá exigir;
5) A não previsão da pena de morte, talvez por esta ser prerrogativa exclusiva de el-rei (estamos a falar da morte decretada por tribunal como pena pela prática de um crime, não da morte consequente à defesa);
6) A proibição da acumulação de rendas ou das penas e a determinação de algumas isenções;
7) A definição de direitos civis e políticos e o regime de escolha, por eleição, dos magistrados municipais;
8) A delimitação do território, mais confirmada que instituída, e a índole não exaustiva da definição do foro;
9) A declaração da obrigação da defesa e proteção a quem trabalha e de serviço ao senhor contra os inimigos deste, bem como a obrigação de o senhor responder ao pedido de socorro dos moradores contra os inimigos externos;
10) O respeito pelas legítimas determinações tanto de ordem material como espiritual;
11) A precaução contra os abusos senhoriais;
12) A não indicação de um descendente como senhor para Sernancelhe, o que levou os moradores a acordar posteriormente como o rei a dispensa de um senhor que tutelasse a vila e a substituição dos foros senhoriais por rendas a cobrar para el-rei.

Para quem eventualmente refira a Idade Média como cenário do mais caótico e generalizado obscurantismo aqui se deixa um espécime de alguma lucidez, mesmo que a prática a tenha vindo a desmentir algumas vezes.

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