A solução sentenciada por Cristo para um problema
difícil (só porque os homens na sua maldade o tornaram difícil) com que os
emissários dos fariseus quiseram apanhar o Mestre em cilada, veio a constituir
um aforismo utilizado para fins diferentes. A passagem do Evangelho atinente àquela
sentença de Cristo consta do cap. 22 do texto de Mateus:
Então, retirando-se os fariseus, combinaram
entre si como O haviam de surpreender nalguma palavra. Com este escopo, enviaram-lhe
os seus discípulos, com os herodianos, que o questionaram: “Mestre, bem sabemos
que és sincero, amas a verdade, nela ensinas o caminho de Deus e não fazes
aceção de pessoas. Diz-nos, pois: É lícito pagar o tributo a César ou não”?
Jesus, porém, conhecendo a sua malícia, interpelou-os:
“Por que me experimentais, hipócritas? Mostrai-me a moeda do tributo”.
E eles apresentaram-Lhe um dinheiro. Por
seu turno Ele, fitando-os, perguntou-lhes: “De quem é esta
efígie e esta inscrição?”
Responderam eles: “De César”.
Então Ele sentenciou: “Dai, pois, a César o que
é de César; e a Deus o que é de Deus”.
Ouvindo isto, maravilharam-se. E, deixando-O,
retiraram-se.
– Mt 22,15-22
Esta sentença magistral de Cristo decorre da
tentativa de os espíritos perversos O pretenderem apanhar em contradição. É uma
resposta que deve, antes de mais, ser encarada na sua profunda sabedoria e habilidade,
a ensinar que não se deve menosprezar o ensinamento dos mestres, subestimar a
inteligência de outrem e envenenar as relações interpessoais.
É certo que o aforismo é citado e saboreado por
aqueles que defendem a absoluta separação entre o campo do espiritual e o campo
do terreno, a separação inquebrantável entre a Igreja e o Estado, com as
consequências de não intromissão e de neutralidade. Daqui pode resultar que um
poder político, com base nas ideias de separação e neutralidade, tente porfiar
por um laicismo primário que facilmente descamba em regulamentação de toda a matéria
religiosa, que, se não for acatada, pode levar à perseguição. Mais: não lhe bastando
a marcação da aconfessionalidade, pode pretender, em nome do “dai a César o que
é de César”, açambarcar bens e prerrogativas mais vastas do que aquelas a que “César”
tem direito. Pode mesmo querer desenvencilhar-se das Igrejas e ter a ousadia de
decretar a sua menorização ou a sua extinção, passando ao fomento do antiteísmo
militante.
A Igreja, que tem sido entendida como aliada do
“poder político” durante muitas décadas (e até séculos), umas vezes foi
dominada pelos príncipes e outras vezes tê-los-á dominado em excesso. Ao encarar
o fenómeno jurídico-político da separação, pode a Igreja entrar numa situação
de contestação sistemática até às últimas consequências, sofrendo o confisco, a
opressão/repressão e a perseguição, bem como sofrer a redução do culto à esfera
da vida privada, em casa ou no templo. Mas pode, por outro lado, entrar numa
situação de amuo, do género “Eles criaram
os problemas, eles que os resolvam”, como pode resignar-se e tentar a
moldar-se ao status quo.
Porém, os comentadores mais avisados, veem na
sentença de Cristo, não a separação em absoluto, mas a autonomia de todas as
realidades terrestres (no caso vertente, a autonomia do poder político, da
organização económica, do sistema financeiro, da ação social) e a das Igrejas e
religiões. Nestes termos, nem o Estado determina o que as Igrejas podem ou não
fazer e o que devem ou não fazer, nem as Igrejas tentam interferir, dominando,
naquilo que são competências do Estado. Ao Poder político cabe a organização da
vertente temporal das comunidades ou metaforicamente os interesses de César; às
Igrejas, a organização da missão segundo os interesses de Deus.
Entretanto, há que ter em conta que, se as
autonomias não permitem misturas, também não podem ser palco de inimizades,
guerras, anatematizações mútuas. Como não são consentâneas com o comodismo
daqueles religiosos que, em nome do cesarismo, querem a Igreja reduzida a uma
dimensão angelista. Segundo esta, a Igreja não se posiciona nem se mete em nada
do que seja social, económico ou político; fica circunscrita à sua missão
espiritual.
Ora, se é certo que a sua hierarquia, em
princípio, não deve fazer campanha a favor de nenhum partido ou candidato em eleições,
nem dar indicações de voto, para ficar livre na promoção do zelo por que aquilo
que é de “Deus” não seja manipulado ou usurpado por “César” – também é verdade
que os seus membros são cidadãos de pleno direito. E, como tais, são sujeitos de
deveres, que devem cumprir, e de direitos, que devem exercer e ver respeitados.
Por isso, em situações normais de combate político, os cristãos devem cumprir
os seus deveres cívicos e políticos como os demais cidadãos, devendo a
hierarquia estar atenta a este dever. Por outro lado, em situação de grave
crise de opção que ponha gravemente em causa os principais valores axiológicos,
as Igrejas não podem ficar em silêncio: os cristãos devem ir para o terreno e a
hierarquia deve dar a sua orientação. É que Estado, por vezes, nem “César”
consegue ou quer ser e sai violentamente das suas competências por ação ou por
omissão. Por consequência, as hierarquias devem fazer ouvir a sua voz em nome
daqueles que não têm vez e voz, vítimas da escravização, da economia mortífera,
do sistema financeiro trapacista e sumidor dos recursos dos pobres e,
sobretudo, dos poderes políticos tirânicos ou totalitários.
Mais: Se aos membros do Povo de Deus cabe a
inserção no mundo do trabalho, das associações, da economia e da política e enformá-lo
dos valores do Evangelho, cabe aos pastores e aos leigos empenhados na formação
do próximo tomar a palavra com a assiduidade conveniente para o bom desempenho
da missão. Convém que as hierarquias falem, mas que falem mais ao povo que aos
poderes, para que o povo os encare com liberdade e com sentido construtivo ou
com a contestação pacífica quando necessária e oportuna – sempre sem recurso à
destruição ao desconcerto. Depois, a autonomia pode, para o cabal cumprimento
da missão de cada setor de organização social, designadamente Igrejas e Estado,
encontrar plataformas de acordo para a cooperação e missões em projetos e
atividades cujos fins sejam similares e para que não haja duplicação de
serviços e de recursos. É óbvio sem que uma parte ou outra fique beneficiada ou
prejudicada pelos acordos.
***
Ora, a reflexão sobre o relacionamento dos homens
com os interesses de César e com os interesses de Deus foi o tema central da homilia
do Papa Francisco na celebração eucarística em que procedeu ao solene enceramento
da assembleia sinodal e à beatificação de Paulo VI. O Papa, comentando o
passo do Evangelho acima transcrito, entende que a acentuação de Jesus incide
sobre o segundo membro da frase, “E [dai]
a Deus o que é de Deus”, o que leva “reconhecer e professar – diante de
qualquer tipo de poder – que só Deus é o Senhor do homem”. Com efeito, Cristo
repreendera Pedro por este zelar os interesses dos homens contra os interesses
de Deus (cf Mt 16,23).
Francisco
sente que Deus não teme as novidades, ama-as; e, por conseguinte, surpreende-nos
continuamente, levando-nos para caminhos inesperados e renovando-nos.
“Dar
a Deus o que é de Deus” significa, assim, responder-Lhe, abrindo-se à sua
vontade e “dedicar-Lhe a nossa vida, cooperando para o seu Reino de
misericórdia, amor e paz”.
Estará
aqui o antídoto contra o pessimismo, “o fermento que faz levedar e o sal que dá
sabor a todo o esforço humano contra o pessimismo predominante que o mundo nos
propõe”. Aqui, na resposta a Deus, reside a razão da nossa esperança, “porque a
esperança em Deus não é uma fuga da realidade”; é, antes, o ato de “restituir
diligentemente a Deus aquilo que Lhe pertence”.
O
Papa aplica ao Sínodo Extraordinário dos Bispos estas linhas-força da surpresa
de Deus, na renovação do homem, na resposta deste, com esperança, aos desafios
que o mundo lhe lança:
“Sínodo” significa “caminhar
juntos”. E, na realidade, pastores e leigos de todo o mundo trouxeram aqui a
Roma a voz das suas Igrejas particulares para ajudar as famílias de hoje a
caminharem pela estrada do Evangelho, com o olhar fixo em Jesus. Foi uma grande
experiência, na qual vivemos a sinodalidade e a colegialidade e sentimos a força do Espírito Santo
que sempre guia e renova a Igreja, chamada sem demora a cuidar das feridas que
sangram e a reacender a esperança para tantas pessoas sem esperança.
E
Francisco não esquece, no dia da beatificação do Papa Paulo VI, o contributo
que este Pontífice deu à sinodalidade e à colegialidade com a instituição do
Sínodo, definindo-lhe o escopo: “Ao perscrutar atentamente os sinais dos
tempos, procuramos adaptar os métodos (...) às múltiplas necessidades dos
nossos dias e às novas caraterísticas da sociedade” (Motu Proprio Apostolica sollicitudo).
Salientando
em Paulo VI o seu humilde e profético testemunho de amor a Cristo e à Igreja,
chama-lhe de “grande Papa”, “cristão corajoso”, “apóstolo incansável” e “o grande
timoneiro do Concílio”. E cita uma boa pérola do diário pessoal do ora beato,
depois do encerramento do concílio vaticano II:
“Talvez o Senhor me tenha
chamado e me mantenha neste serviço não tanto por qualquer aptidão que eu
possua ou para que eu governe e salve a Igreja das suas dificuldades atuais,
mas para que eu sofra algo pela Igreja e fique claro que Ele, e mais ninguém, a
guia e salva”. (P. Macchi, Paolo
VI nella sua parola, Brescia 2001:120-121).
Na
sua humildade em que resplandece grandeza, Paulo VI sentiu perfilar-se “uma
sociedade secularizada e hostil”, mas ele soube “reger com clarividente
sabedoria – e, às vezes, em solidão – o timão da barca de Pedro, sem nunca
perder a alegria e a confiança no Senhor”. É neste sentido que, com toda a
justiça, o Papa Francisco refere que:
Verdadeiramente Paulo VI
soube “dar a Deus o que é de Deus”, dedicando toda a sua vida a este “dever
sacro, solene e gravíssimo: continuar no tempo e dilatar sobre a terra a missão
de Cristo” (Hom. no Rito da Coroação, Insegnamenti,
I, (1963), 26), amando a Igreja e guiando-a para ser “ao mesmo tempo mãe
amorosa de todos os homens e medianeira de salvação” (Ecclesiam suam,
prólogo).
Paulo VI foi, pois, o Pastor que, sabendo
percorrer com mestria os caminhos de César, respeitando sempre o que era de
César, soube zelar com dedicação – por vezes, angustiada e incompreendida e com
o abandono de todos – os interesses de Deus. Mas, por isso mesmo, nunca deixou
de escalpelizar qualquer mostra de manipulação ou usurpação da parte dos
Césares sobre aquilo que é de Deus: a liberdade do homem, a consciência pessoal,
a vida humana, a família, os pobres… É que Paulo VI soube escutar Deus, que nos
ama, e testemunhar junto de Deus os dramas do homem, que o Papa via e ouvia com
amargura e esperança.
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