Conforme recente informação da agência Ecclesia, os bispos brasileiros estão preocupados com o futuro dos
povos indígenas do Maranhão e Mato Grosso do Sul, que está em risco pelo facto
de o Tribunal Federal ter anulado o direito que eles detinham sobre alguns
territórios ocupados.
Em mensagem divulgada pela sua página oficial na Internet, a Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB) sublinha que “a garantia dos territórios aos povos
indígenas é um direito conquistado e consignado na Constituição Federal” e
resultado precioso da “luta árdua de muitas pessoas da sociedade brasileira”.
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Efetivamente, já o artigo 5.º da
CRFB (Constituição da República Federativa do Brasil), com a redação que lhe
foi dada pela emenda constitucional n.º 45/2004, estabelece que: “Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. O mesmo artigo, ao
estabelecer as bases dos direitos definidos no capítulo I “dos direitos e
deveres individuais e coletivos”, integrado no Título II (Dos Direitos e
Garantias Fundamentais), determina: “é
garantido o direito de propriedade” (XXII); “a propriedade atenderá a sua função social” (XXIII); “a lei estabelecerá o procedimento para
desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social,
mediante justa e prévia indemnização em dinheiro, ressalvados os casos
previstos nesta Constituição” (XXIV); “a
pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela
família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de
sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu
desenvolvimento” (XXVI).
O texto constitucional parece, desde
já, não deixar margem para dúvidas. No entanto, a CRFB, no Título VIII (Da
Ordem Social),
dedica à problemática dos Índios o capítulo VIII, com dois artigos, o 231.º e o
232.º. O primeiro, o artigo 231.º, reconhece-lhes a “sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições”, bem como “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Depois,
em sete §§, explana a matéria de direito referente às terras dos Índios.
Assim,
este artigo define, no § 1.º, o que são terras tradicionalmente ocupadas pelos
Índios – “as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para as suas
atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários ao seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e
cultural, segundo os seus usos, costumes e tradições”.
Já
o seu § 2.º refere o destino das mesmas terras – “a sua posse permanente”, bem
como “o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas
existentes.
Por
seu turno, as condições de aproveitamento nacional dos recursos hídricos nelas
existentes – designadamente, a autorização do Congresso, a audição das
comunidades afetadas e a garantia da participação nos lucros – vêm reguladas constitucionalmente
no § 3.º, que estabelece:
“O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os
potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas
só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as
comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da
lavra, na forma da lei”.
O
§ 4.º, por sua vez, estatui a inalienabilidade e indisponibilidade daquelas
terras, bem como a imprescritibilidade dos direitos sobre elas.
Nos termos do § 5.º, é
expressamente “vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo”, temporariamente,
em situações de risco:
“Ad
referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou
epidemia que ponha em risco a sua população, ou no interesse da
soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em
qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco”.
O § 6.º declara
“Nulos e extintos, não
produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o
domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das
riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante
interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando
a nulidade e a extinção direito a indemnização ou a ações contra a União,
salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé”.
Por fim, o § 7.º determina a não
aplicação às terras indígenas do disposto no artigo 174.º, §§ 3.º e 4.º,
atinentes, respetivamente ao favorecimento, pelo Estado, da atividade
garimpeira em cooperativas e à primazia das cooperativas na
autorização ou
concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas
onde venham atuando e nas fixadas de acordo com o artigo 21.º, XXV” – o do
quadro de competências da União (“estabelecer as áreas e as condições para o
exercício da atividade de garimpagem, em forma associativa”).
Além
da relação dos Índios com as suas terras, a CRFB, através do seu artigo 232.º,
reconhece as “suas comunidades e organizações” como “partes legítimas para ingressar em
juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em
todos os atos do processo”.
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Quanto à luta dos indígenas pela
manutenção da posse e usufruto das suas terras, basta dizer que ela vem
galgando os séculos desde o início da colonização. A título de amostra,
tenha-se em conta o texto “Indígenas
brasileiros mantêm luta pela posse de suas terras” publicado no Diário Liberdade, de 2 de junho de 2013 – que nos dá conta de que os “indígenas brasileiros mantêm hoje ações em diversos estados do país em
reclamação de seus direitos à terra herdada de suas ancestrais, ante o lento
trabalho de demarcação e reconhecimento de seus territórios”. Refere inclusive a morte dum nativo
durante o desalojamento dum grupo de autóctones de uma fazenda em disputa no
município de Sidrolandia, em Mato Grosso do Sul, e a subsequente reunião da
Presidenta do Brasil com representantes do seu gabinete e de organizações
agrícolas.
Na sequência
de tal reunião, o ministro da Justiça terá mandado inquirir se na morte de
Osiel Abriel houve excesso no uso da força e se foram usadas armas de fogo para
tirar os indígenas da fazenda Burití; mas o Tribunal de Justiça estadual
determinou a imediata devolução dessa propriedade a seu dono, o ex-deputado
Ricardo Bacha e pediu apoio à Polícia Militar de Mato Grosso do Sul para tirar
os nativos. Por isso, dos 17 mil hectares já reconhecidos, a etnia Terena ocupa
só três mil. Do seu lado, o Coordenador da Fundação Nacional do Índio (FuNAI),
Jorge das Neves, confirmara que um grupo de 250 nativos voltaram a ocupar a fazenda,
pois consideram seu esse terreno em disputa.
Também,
segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), foi invadida por autóctones outra
propriedade do Mato Grosso do Sul, localizada em Aquidauana. Esta propriedade,
com a área de 12 mil hectares, é reivindicada pela etnia terena e situa-se
dentro da reserva Taunay/Ipeg, reconhecida por um estudo antropológico da FuNAI.
Por sua vez, os
indígenas Mundurukú, no estado amazónico do Pará, aceitaram a proposta do
governo federal de dialogar e abandonaram os terrenos de Belo Monte, onde se
constrói uma represa e uma das maiores hidroelétricas do mundo. Todavia, reclamam
um estudo ambiental que certifique que a represa e a hidroelétrica não causarão
danos ambientais.
No dizer dum
especialista do CIMI, “o atraso das autoridades federais na demarcação das
terras indígenas, a burocracia e as decisões da justiça em prol de poderosos
grupos rurais mantêm encurralados os indígenas brasileiros.
É neste
contexto de reivindicação dos autóctones pelo escrupuloso cumprimento das
disposições constitucionais frente à ambição dos poderosos que a hierarquia
católica brasileira espera que a decisão do Tribunal Federal não configure um
“retrocesso” no trabalho de longos e adverte que “concluir a demarcação das
terras indígenas é saldar uma dívida histórica para com os primeiros habitantes
do Brasil”. Ao mesmo tempo, entende que honrar estes acordos significa “mais um
passo para a paz num território marcado por graves conflitos que já vitimaram
inúmeras pessoas”. Os bispos vão mais longe ao denunciarem a imoralidade da
continuação da marcha da “estratégia de questionar as demarcações das terras
indígenas” motivada por nem sempre confessados “interesses económicos”. E não
deixam de expor perante a opinião pública a situação decorrente deste fenómeno socioeconómico:
“grande parte dos povos indígenas do
Brasil continua a viver no exílio, vítimas da apropriação indevida dos seus terrenos
e da violência histórica cometida contra as suas propriedades”; e muitas
dessas comunidades, “enquanto aguardam”
pela definição do seu futuro, têm de ficar “acampadas
à beira das estradas ou nas poucas áreas de mata que ainda subsistem nas
propriedades rurais”, sujeitas à “violência” e privadas do acesso a
cuidados básicos de saúde, à educação ou à água potável.
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A susodita decisão do Tribunal Federal parece contradizer a atitude
tomada no passado dia 11 de agosto pelo Tribunal Superior do Trabalho brasileiro
(TST), o qual conferiu a comenda da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho 2014
à CNBB. O TST justifica a sua decisão pelas “ações de relevância nacional, como
as atividades desenvolvidas pelas pastorais da Terra e da Criança, e pela
realização da Campanha da Fraternidade 2014, que tem como tema ‘Fraternidade e
tráfico humano’”.
Por seu turno, o presidente da CNBB, cardeal Raymundo
Damasceno Assis, declara com a maior simplicidade tratar-se do cumprimento de
um dever:
“Levantamos
a questão de maneira ampla para defender a dignidade da pessoa humana e seus
direitos, pois o tráfico é uma das formas de crime mais horrendas. Nossa missão
é, sobretudo, religiosa e espiritual, mas sabemos que da evangelização faz
parte a promoção da pessoa humana e de seus direitos”.
Por outro lado, a CNBB informou que a Ordem do Mérito
Judiciário do Trabalho, atribuída sempre em agosto, foi criada “em 1970 com o
objetivo de distinguir personalidades e instituições que se destacam na Justiça
do Trabalho, no Direito, ou mesmo na sociedade”. E especificou que, na edição deste
ano, com a CNBB e o Movimento Humanos Direitos (MHuD), que foram homenageadas
pelas atividades contra problemas sociais, também foram distinguidas mais 67
pessoas.
O presidente do TST, António Levenhagem, disse que “todos os
homenageados representam aquilo que a Ordem do Mérito Judiciário procurou
atender, premiando pessoas que investiram seu tempo em causas maiores, seja no
programa de Trabalho Seguro, seja contra o trabalho infantil”. Desta forma, o
TST assinala aqueles e aquelas que no exercício de suas atividades prestam “um
tributo à sociedade brasileira e são um exemplo para a coletividade”.
Já no debate promovido pela CNBB, a 26 de agosto, no
Santuário da Aparecida, entre os candidatos às eleições presidenciais, a primeira
questão levantada no debate foi sobre a política de demarcação das terras, mas
também houve questões sobre o futuro dos jovens brasileiros “vítimas da droga,
da violência, muitas vezes sem acesso ao desporto, ao lazer, a uma educação de
qualidade”.
É assim que se pode inferir que não basta um bom texto
constitucional para defender os direitos de quem não tem vez e voz. É mesmo necessário
que os interesses desmedidos dos poderosos sejam travados pela Administração Pública
e que os tribunais, em sede de aplicação da lei, sejam coerentes e consequentes
com a lei e com a justiça. E a Igreja, quando estão em causa os direitos
fundamentais do homem, sobretudo os dos pobres, fracos, sofredores ou arredados
da sorte, não pode circunscrever-se à sua missão espiritual. Deve lutar pelos
direitos do homem, que são, no fundo, o direito de Deus.
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