O bastonário da Ordem dos Médicos, Dr José Manuel Silva, concedeu uma
entrevista a Francisco Galope, da revista Visão,
de 9 de outubro, a qual, segundo as palavras do entrevistador, extravasa o
âmbito da saúde. A conversa terá vindo a fluir normalmente até configurar uma declaração
parapolítica.
As posições
assumidas, à frente da Ordem dos Médicos desde 2010, vêm em defesa da classe
profissional que representa e concretizam-se em declarações como: o apoio a
greves dos médicos e as críticas às políticas de saúde – o que tem induzido
alguns detratores a atribuir-lhe um discurso conotado mais com o de um dirigente
sindical, próximo do PCP, do que o de bastonário daquela ordem profissional. Todavia,
também há quem o tenha por o mais interventivo bastonário dos médicos das
últimas décadas. Por si, diz que a sua atuação surge em prol da defesa do melhor
Serviço Nacional de Saúde (SNS) do mundo – palavras suas.
Dado que a
sua linha discursiva se revela equilibrada, abrangente e desmistificadora de
muitas das ideias-força com que nos vêm anestesiando para suporte de medidas
políticas que só nos prejudicam e nada resolvem de equilíbrio de contas e
amortização da dívida soberana, se procede à presente reflexão. Mantêm-se as
ideias fundamentais, transcrevendo passos do seu alinhamento discursivo e adaptando
(ou mesmo ampliando) outros segmentos ao nosso jeito de pensar e dizer.
***
Concordando com o estudo da Gulbenkian que chega à conclusão de que em Portugal
se envelhece sem saúde ou que os nossos idosos são mais doentes que os de
outros países, dá como explicação o circunstancialismo social que envolveu a
história de vida de muitas destas pessoas: o
nascimento em época difícil – “antes, durante e pouco depois da Segunda Guerra
Mundial”; o analfabetismo generalizado; a fome e os demais sacrifícios por que
passaram; a vida em condições deficientes; o baixo nível socioeconómico; e a
falta de apoio social insuficiente. Saúde fragilizada no longo percurso de vida
redunda em velhice hospedeira de várias doenças em simultâneo e contração fácil
de infeções bacterianas.
À acusação generalizada
do excesso da prescrição de
antibióticos acima da média em Portugal responde com a insuficiência da resposta
dos cuidados de saúde primários e da impossibilidade de o médico acompanhar devidamente
o doente numa situação aguda de gripe – o que leva o médico a receitar um
antibiótico por precaução.
Também o bastonário indica genericamente as conquistas que o SNS corre o
risco de perder, ou seja, as caraterísticas
constitucionais que garantem o acesso universal, geral e tendencialmente
gratuito. Não deixa, por outro lado, de enunciar alguns dos sintomas em
concreto: as emergentes dificuldades de acessibilidade e a existência de alguns
problemas de qualidade. Como exemplo, refere: faltas recorrentes de material
clínico; blocos operatórios que não trabalham por avaria do ar condicionado,
por falta de manutenção dos aparelhos ou da sua substituição quando estão
obsoletos. Poderia, a meu ver, adiantar as pressões das administrações da saúde
quanto a custos, logística do atendimento e condicionamento da própria prestação
de cuidados.
Porém, se
entende as dificuldades financeiras, encontra a raiz da explicação na “estratégia
política de um governo ultraliberal que não é crente do SNS”. Por outro lado,
explicita que o SNS já não é “tendencialmente gratuito”, dado que “as taxas
moderadoras são autênticos copagamentos para a camada da população
imediatamente acima dos que estão isentos delas”. Cita, a propósito, um estudo
da DECO que “denuncia que 12% das pessoas já não vão às urgências por falta de
dinheiro”. E assegura que “os portugueses já pagam do seu bolso mais de um
terço da despesa em saúde, muito mais do que os britânicos, franceses ou
alemães” – pelo que o SNS já deixou de respeitar claramente as normas
constitucionais, “quanto aos princípios da gratuitidade tendencial e da acessibilidade”.
Acusa mesmo o
SNS de sofrer cortes para lá do preconizado pela troika, enquanto, num país com
uma população empobrecida, o grande setor privado floresce e investe de forma
impressionante em contraciclo com a precária situação económica. A política de saúde
favorece essa situação. Por exemplo, na ADSE, se as taxas moderadoras para os
utentes são mais em conta no setor privado do que no público, é óbvio o
objetivo de desviar os doentes do público para o privado e o financiamento do
SNS desloca-se para o grande setor privado, ao mesmo tempo que se colocam
dificuldades quase inultrapassáveis aos pequenos privados, que têm decaído nos
últimos anos.
À objeção de que “ainda assim, a despesa pública em saúde é elevadíssima”,
aponta a muita demagogia contida em tal afirmação. Escuda-se, para isso, nos últimos dados da OCDE, já de há dois anos, que dão
conta de uma despesa em saúde pública e
privada equivalente a 9,5% do Produto Interno Bruto (PIB) muito próxima da
média dessa organização, 9,3 por cento, devendo, com os novos cortes, ser já igual
ou mesmo inferior a essa média da OCDE. Entretanto, sustenta que “o que se deve
comparar não é a percentagem do PIB, mas a despesa per capita”. Ora, neste aspeto,
“Portugal,
com 2 457 dólares [paridades de poder de compra] por habitante, fica muito
abaixo da média da OCDE, que é de 3 484. Os países com os quais nos querem
comparar, e cujos modelos querem importar, gastam o dobro ou mais [Alemanha:
4811; Estados Unidos: 8745; Holanda: 5099; Reino Unido: 3289]”.
Contra quem afirme o contrário, nega que o SNS tenha um problema de sustentabilidade, já que, “sendo de
alta qualidade é barato para o Estado”. Assegura que Portugal tem... já teve...
(note-se a oscilação discursiva) o melhor sistema se saúde do mundo, na relação
entre qualidade, acessibilidade e custo per
capita. Afiança que, em 35 anos, o sistema permitiu atingir alguns dos
melhores indicadores à escala mundial, como a taxa quase nula da mortalidade infantil.
Só argumentam com a sustentabilidade do SNS os que o querem destruir (e alguns
servem no Estado, digo eu). O que temos é um problema de sustentabilidade do
País. E esta decorre, penso, do facto de se faltar com a contribuição atempada
do Estado no estrito cumprimento das suas obrigações sociais e enquanto
entidade patronal e depois colocar os seus organismos a desperdiçar recursos, a
investir em produtos tóxicos e a comprar dívida.
A sugestão
do entrevistador, precisou a ideia da insustentabilidade nos seguintes termos: “Portugal
não é sustentável em termos demográficos, de investigação,
económico-financeiros nem em termos políticos”, tendo em conta a iminente perda
próxima de milhões de jovens pela quebra da natalidade e pela emigração: uns
vão embora, e para quem fica sobra uma dívida pública per capita muito grande. Por seu turno, o brutal desinvestimento na
investigação “terá consequências dramáticas no futuro do País, que se poderia
afirmar pela qualidade, inovação e patentes”.
***
Não obstante
a sua área de formação e desenvolvimento profissional ser a saúde,
especializado em medicina interna, não deixa de lançar um olhar sobre o país
global e, em especial, a dimensão que a todos preocupa, o futuro
económico-financeiro. E sentencia:
“Matematicamente, com estes juros, é
impossível pagar a dívida pública. Portugal precisava de ter uma taxa de
crescimento impossível de conseguir num contexto internacional adverso. Quanto
mais tarde forem tomadas medidas, em pior condição económica, social e
financeira estará o País”.
Como caminhos
alternativos, aponta: mudar o modelo de governação, sem o que nada será
sustentável; atacar os fundamentos da bancarrota, abandonado a política de
merceeiro (subir impostos e baixar salários); construir a estratégia de desenvolvimento
para o futuro do País; pôr as entidades reguladoras a funcionar com independência
e eficácia; parar de enganar o povo (como sucedeu no recente caso do GES, em
que o Banco de Portugal, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e o
Presidente da República levaram, no último aumento de capital, os pequenos
aforradores ao engano, com a mais completa impunidade); reformar a lei eleitoral;
alargar o leque de incompatibilidades dos deputados; acabar com a “central de
negócios” (expressão do velho João Cravinho) no Parlamento; provocar a mobilização
da sociedade e dos cidadãos para que o país seja sustentável, já que os
partidos ditos do arco da governação não se autorreformam.
***
Voltando ao SNS, entende que
o sistema deve continuar basicamente com o mesmo perfil com que foi criado,
embora haja coisas a corrigir, mas sem se falar “em despesismo e desperdício
num sistema que é barato para o Estado e que consegue dos melhores indicadores
do mundo”. Afiança poder comparar-se o SNS português com qualquer sistema de
saúde do mundo. E revela que o desperdício do sistema de saúde americano se
cifra nos 640 000 milhões de dólares por ano – três vezes o PIB português – isto
por causa da organização do sistema de saúde baseada em seguros. E acaba por desmontar a mistificação da
alegada maior eficiência do privado e menores custos para o Estado, acentuando a
índole enviesada das comparações de custo de atos entre o público e o
privado. E explica. O custo médio no SNS é o da linha de produção. Encontra-se
inflacionado por incluir os custos dos atos mais caros:
“Não se
contabiliza o facto de ser o setor público a fazer a formação (e isso tem
consequências para os custos e produtividade do SNS). O privado recebe os
profissionais (formados no setor público), diferenciados e já com muita
experiência. Por isso, é óbvio que uma cirurgia é mais rápida no privado. No
público são mais lentas porque ensinar um interno exige tempo e disponibilidade
– o que tem custos. Por outro lado, o SNS é obrigado a ter tudo para responder
aos cidadãos. Por essa razão, um politraumatizado é melhor assistido no
público, que, ao contrário do privado, tem de ter permanentemente os meios
disponíveis e preparados para o assistir. Isso também
encarece.”.
Por isso,
salienta que a comparação feita de outro modo, o mais imediato, pretende criar
a ideia errada de que a prestação do setor privado fica mais barata. E assegura
que “não há um país baseado num sistema privado de saúde em que os cuidados
sejam mais baratos que em Portugal e que ainda seja, ao mesmo tempo, universal,
geral e tendencialmente gratuito.” Não é verdade, em conclusão, que o privado
seja mais barato que o público.
Por fim, questionado
se pensava numa carreira política após o termo do mandato de bastonário, concluiu
não ver motivo para não pensar nessa hipótese. É o cidadão de pleno direito no
seu melhor, que não se vê forçado à renúncia a nenhuma das prerrogativas decorrentes
da cidadania.
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