sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Há quem diga que o diabo mora no Vaticano

A edição de hoje, dia 31 de outubro, do Diário de Notícias insere um artigo de Miguel Angel Belloso, diretor da revista espanhola Atualidad Económica subordinado ao título “O Diabo também mora no Vaticano”. É óbvio que a peça jornalística, ou melhor aquele texto de opinião, não se refere ao empório do Vaticano, aos antigos desmandos do IOR, aos alegados gastos excessivos de cardeais e de outros altos dignitários em imóveis ou repastos de índole sumptuária nem ao ambiente de murmúrio e intriga, de carreirismo e obstrução às reformas da cúria romana. Não, o fenómeno da morada do diabo no Vaticano incide sobre o perfil do Papa argentino, em virtude do qual “o Vaticano viu-se sacudido pelo vendaval Francisco”, que, segundo o autor, nada terá prendido com a Argentina (não sei se se quer referir ao tempo da ditadura se ao da democracia pró- socialista).
Tanto quanto nos é dado conhecer, o Pontífice não fica surpreendido nem amedrontado pelo facto de o apelidarem de marxista quando denuncia os efeitos perversos do capitalismo selvagem e sem rosto ou o sistema de uma economia que mata, quando escalpeliza o fosso existente entre o pequeno grupo dos muito ricos e o grupo enorme dos muito pobres, explorados e vilipendiados e quando propõe a erradicação das situações de pobreza. A pobreza evangélica que o Papa defende é aquela que decorre da atitude de desapego perante os bens, não aquela que, equivalente à miséria, é imposta pela ambição, silenciamento, descalabro social e económico, distorção, fraude e espezinhamento. Esta tem de ser, por dever de justiça, claramente denunciada e corajosamente erradicada.
Porém, Belloso acusa o Papa de vir “contaminado de populismo e embebido da retórica infeliz da doutrina social da Igreja, para a qual os excessos e fracassos do socialismo são erros bem intencionados enquanto a fé no mercado é a expressão de algo parecido com um cataclismo moral”.
Já Paulo VI, timoneiro das II, III e IV sessões do Vaticano II, promotor da reforma litúrgica e autor da encíclica Populorum Progressio (1967) e da carta apostólica Octogesima Adveninens (1971), foi por alguns considerado agente de Satanás, elemento da maçonaria e atreito às teses comunistas (quando ele, se tinha alguma preferência ideológica, era a próxima da democracia cristã). E o Papa João Paulo II, quando foi objeto de uma tentativa de atentado, em Fátima, a 12 de maio de 1982, por um presbítero ultraconservador, o foi sob o pretexto de filocomunista.
No caso vertente, o colunista do aludido periódico nacional, citando Joaquín Garrigues Walker, político espanhol pós-franquista, que dizia que os “liberais cabiam num táxi”, defende que eles são marginais e mal compreendidos e lamenta que eles dificilmente tenham lugar na Igreja, pelo facto de serem denegridos por quem rege o destino da mesma Igreja. Mais: porfia por garantir que, se detêm grandes fortunas, o conseguiram não por ganância, mas por meios honestos. No entanto, a cada passo se veem confrontados com a persecutória sentença lapidar: “...é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus” (Mt 19,24). Não creio que se possa pegar no Evangelho e eliminar tal sentença. Cristo não o permitiria.
Porém, Belloso mostra-se injusto e de olhar enviesado quando, para atacar Francisco, evoca os “felizes papados de João Paulo II e de Bento XVI, reencontrados com a economia de mercado e sensíveis ao efeito terapêutico do capitalismo sobre a pobreza”.
Para fazer gala desta afirmação, é preciso não ter lido, por exemplo, as encíclicas Laborem Exercens (1981), Sollicitudo Rei Socialis (1987) e Centesimus Annus (1991), de João Paulo II, ou as encíclicas Spe Salvi (2007) e Caritas in Veritate (2009), de Bento XVI. Sobre estes dois pontífices, não italianos, é comum dizer-se que eram um pouco conservadores e até retrógrados do ponto de vista teológico e litúrgico (o que não quer dizer que, pelo menos o segundo destes papas, não sejam de uma profundidade inquestionável e sustentabilidade de formulação), mas abundante e corajosamente avançados em matéria social e de empenhamento pela autonomia das realidades terrestres. É certo que travaram e até descredibilizaram as formulações teológicas feitas a partir dos pobres e explorados – a chamada teologia da libertação, por verem nela, de forma enviesada, o perigo do alinhamento com o marxismo, o que foi extremamente redutor – mas não deixaram de acentuar a opção preferencial da Igreja pelos pobres.
Não posso, em nome da verdade e da justiça, deixar de citar de João Paulo II o seguinte passo do seu “Ato de Confiança” em Fátima, no dia 13 de maio de 1991:
Existe o perigo de substituir o marxismo por uma outra forma de ateísmo,  que adulando a liberdade tende a destruir as raízes da moral humana e cristã. (…) Mostrai que sois Mãe dos pobres,  de quem morre de fome e sem assistência na doença,  de quem sofre injustiças e afrontas,  de quem não encontra trabalho, casa nem abrigo, de quem é oprimido e explorado de quem desespera ou em vão procura o repouso longe de Deus. (…) Que os povos não reabram novos fossos de ódio e vingança; que o mundo não ceda à ilusão de um falso bem-estar que avilta a dignidade da pessoa e compromete para sempre os recursos da criação. 
Não se vê aqui predileção nem pelo marxismo nem pelo capitalismo hedonista e selvagem.
Quanto a Bento XVI, há que dizer que será tudo menos marxista, será tudo menos defensor do capitalismo e da economia de mercado, no estado em que estes sistemas se encontram. E, sobretudo na segunda das suas encíclicas mencionadas, Ratzinger faz uma resenha dos malefícios dos diversos sistemas económicos que determinam a vida das pessoas e dos povos, advogando, como os predecessores, uma nova ordem económica internacional, uma nova ordem internacional (vejam-se sobretudo os n.os 66 e 67 da Caritas in Veritate – CV). E, quanto ao mercado e sua economia, leia-se o que o Papa alemão escreveu (sublinho alguns segmentos):
O mercado, se houver confiança recíproca e generalizada, é a instituição económica que permite o encontro entre as pessoas, na sua dimensão de operadores económicos que usam o contrato como regra das suas relações e que trocam bens e serviços entre si fungíveis, para satisfazer as suas carências e desejos. O mercado está sujeito aos princípios da chamada justiça comutativa, que regula precisamente as relações do dar e receber entre sujeitos iguais. Mas a doutrina social nunca deixou de pôr em evidência a importância que tem a justiça distributiva e a justiça social para a própria economia de mercado, não só porque integrada nas malhas de um contexto social e político mais vasto, mas também pela teia das relações em que se realiza. De facto, deixado unicamente ao princípio da equivalência de valor dos bens trocados, o mercado não consegue gerar a coesão social de que necessita para bem funcionar. Sem formas internas de solidariedade e de confiança recíproca, o mercado não pode cumprir plenamente a própria função económica. E, hoje, foi precisamente esta confiança que veio a faltar; e a perda da confiança é uma perda grave (CV 35).
***
Há, no entanto, algo que o artigo em causa escalpeliza, o encantamento de uma certa esquerda anticlerical e pouco praticante (e de uma certa direita neoliberal) pelo novo discurso pontifício, augurando que, no seu fervor anticatólico, consigam ver em Francisco aquilo que possa tornar a Igreja mais fragilizada e criticável. Em relação ao Papa, o articulista acha bem a porta aberta a divorciados e homossexuais, mas desejava o mesmo espírito de abertura aos liberais, já que entende que o capitalismo, por si, “não é incompatível com a solidariedade, a caridade (sublinhei) e a benevolência”.
Ora, o que Suas Santidades condenam não é o liberalismo e o capitalismo em si nem outras formas de organização económica. O que é condenável são: os meios ilícitos de construção de fortunas, designadamente a fraude, a exploração, o espezinhamento, a opressão; o excesso de lucro, contra tudo e contra todos; a denegação dos direitos dos outros, nomeadamente à vida, à educação, ao trabalho (e ao salário e apoio social), à saúde, à segurança, à proteção, à cultura; a concorrência desenfreada; a falta da justiça comutativa e distributiva; a veleidade de dar por caridade aquilo que é devido por justiça; os arremedos de liberdade e participação social e política; e os totalitarismos, sejam eles de que género forem.
De resto, sempre a Igreja Católica defendeu duas coisas complementares: o destino universal dos bens (o que, em caso de necessidade, postula a não apropriação daquilo que faz falta aos indigentes e pobres; e o direito à propriedade privada, para afirmação identitária do indivíduo e do grupo e para a rendibilização da sua exploração, desejavelmente em termos de economia de escala. Porém, sobretudo nos últimos tempos, é usual afirmar o princípio da função social da propriedade. Nestes termos, pode tornar-se legítima a apropriação por parte do Estado dos meios considerados estratégicos para a organização social e económica e para o bem-estar das populações, como por exemplo, um banco central, alguns meios de comunicação social e de telecomunicações, (alguns) estabelecimentos de saúde, (algumas) escolas, vias públicas e outras infraestruturas públicas. Também o Estado e o empresário têm de garantir trabalho e justo salário aos cidadãos, que provejam ao seu próprio sustento e da família, bem como à situação de velhice, doença e outras situações imprevistas. É, ainda, no âmbito da função social da propriedade e do destino universal dos bens que é legítimo ao Estado proceder à determinação de impostos e de contribuições e à respetiva cobrança.
Se é necessário pugnar pela criação de riqueza e, para este fim, rendibilizar a propriedade privada (ou pública dos bens, que nunca podem ser negligenciados), nunca será legítimo destruí-la, deixá-la degradar ou guardá-la ciosa e avaramente. É preciso promover a sua distribuição justa por quem a procure e possa compensar a sua receção, mas também disponibilizá-la a quem não tem recursos para oferecer em troca.
É por isso que a produção e a distribuição se tornam complementares e subsidiárias. A produção sem distribuição torna-se inútil; e a distribuição sem produção é impossível. Sendo assim, os sistemas de produção de riqueza e os de distribuição, longe de serem considerados inimigos, deverão encontrar caminhos de encontro e cooperação. E para a justa distribuição, é necessário estabelecer a circulação eficaz de bens e recursos. Ademais, é conveniente conjugar outros fatores de bem-estar: trabalho e administração, posse e orientação. E, bem assim, é importante cuidar que a produção não se torne fonte de acumulação que não redunde em justa circulação e distribuição e esta não leve à obsessão consumista.
O enriquecimento próprio é legítimo, mas não à custa do empobrecimento dos demais; o enriquecimento próprio é legítimo, mas não sustentado em desequilíbrios sociais e económicos devastadores nem como gerador dos mesmos.

Há que ter em conta que em primeiro lugar está o homem e sua dignidade!

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