A
edição de hoje, dia 31 de outubro, do Diário
de Notícias insere um artigo de Miguel Angel Belloso, diretor da revista
espanhola Atualidad Económica subordinado
ao título “O Diabo também mora no Vaticano”. É óbvio que a peça jornalística,
ou melhor aquele texto de opinião, não se refere ao empório do Vaticano, aos
antigos desmandos do IOR, aos alegados gastos excessivos de cardeais e de outros
altos dignitários em imóveis ou repastos de índole sumptuária nem ao ambiente
de murmúrio e intriga, de carreirismo e obstrução às reformas da cúria romana.
Não, o fenómeno da morada do diabo no Vaticano incide sobre o perfil do Papa
argentino, em virtude do qual “o Vaticano viu-se sacudido pelo vendaval
Francisco”, que, segundo o autor, nada terá prendido com a Argentina (não sei
se se quer referir ao tempo da ditadura se ao da democracia pró- socialista).
Tanto
quanto nos é dado conhecer, o Pontífice não fica surpreendido nem amedrontado
pelo facto de o apelidarem de marxista quando denuncia os efeitos perversos do
capitalismo selvagem e sem rosto ou o sistema de uma economia que mata, quando
escalpeliza o fosso existente entre o pequeno grupo dos muito ricos e o grupo
enorme dos muito pobres, explorados e vilipendiados e quando propõe a
erradicação das situações de pobreza. A pobreza evangélica que o Papa defende é
aquela que decorre da atitude de desapego perante os bens, não aquela que,
equivalente à miséria, é imposta pela ambição, silenciamento, descalabro social
e económico, distorção, fraude e espezinhamento. Esta tem de ser, por dever de
justiça, claramente denunciada e corajosamente erradicada.
Porém,
Belloso acusa o Papa de vir “contaminado de populismo e embebido da retórica
infeliz da doutrina social da Igreja, para a qual os excessos e fracassos do
socialismo são erros bem intencionados enquanto a fé no mercado é a expressão
de algo parecido com um cataclismo moral”.
Já
Paulo VI, timoneiro das II, III e IV sessões do Vaticano II, promotor da
reforma litúrgica e autor da encíclica Populorum
Progressio (1967) e da carta apostólica Octogesima
Adveninens (1971), foi por alguns considerado agente de Satanás, elemento
da maçonaria e atreito às teses comunistas (quando ele, se tinha alguma
preferência ideológica, era a próxima da democracia cristã). E o Papa João
Paulo II, quando foi objeto de uma tentativa de atentado, em Fátima, a 12 de maio
de 1982, por um presbítero ultraconservador, o foi sob o pretexto de filocomunista.
No
caso vertente, o colunista do aludido periódico nacional, citando Joaquín
Garrigues Walker, político espanhol pós-franquista, que dizia que os “liberais
cabiam num táxi”, defende que eles são marginais e mal compreendidos e lamenta
que eles dificilmente tenham lugar na Igreja, pelo facto de serem denegridos
por quem rege o destino da mesma Igreja. Mais: porfia por garantir que, se
detêm grandes fortunas, o conseguiram não por ganância, mas por meios honestos.
No entanto, a cada passo se veem confrontados com a persecutória sentença
lapidar: “...é mais fácil
passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de
Deus” (Mt 19,24). Não creio que se possa pegar no Evangelho e eliminar tal sentença.
Cristo não o permitiria.
Porém, Belloso mostra-se injusto e de olhar enviesado quando, para atacar
Francisco, evoca os “felizes papados de João Paulo II e de Bento XVI,
reencontrados com a economia de mercado e sensíveis ao efeito terapêutico do
capitalismo sobre a pobreza”.
Para fazer gala desta afirmação, é preciso não ter lido, por exemplo, as
encíclicas Laborem Exercens (1981), Sollicitudo Rei Socialis (1987) e Centesimus Annus (1991), de João Paulo
II, ou as encíclicas Spe Salvi (2007)
e Caritas in Veritate (2009), de
Bento XVI. Sobre estes dois pontífices, não italianos, é comum dizer-se que
eram um pouco conservadores e até retrógrados do ponto de vista teológico e
litúrgico (o que não quer dizer que, pelo menos o segundo destes papas, não
sejam de uma profundidade inquestionável e sustentabilidade de formulação), mas
abundante e corajosamente avançados em matéria social e de empenhamento pela
autonomia das realidades terrestres. É certo que travaram e até
descredibilizaram as formulações teológicas feitas a partir dos pobres e
explorados – a chamada teologia da libertação, por verem nela, de forma
enviesada, o perigo do alinhamento com o marxismo, o que foi extremamente
redutor – mas não deixaram de acentuar a opção preferencial da Igreja pelos
pobres.
Não posso, em nome da verdade e da justiça, deixar de citar de João Paulo II
o seguinte passo do seu “Ato de Confiança” em Fátima, no dia 13 de maio de
1991:
Existe o perigo de substituir o marxismo por uma outra forma de ateísmo, que adulando a liberdade tende a
destruir as raízes da moral humana e cristã. (…)
Mostrai que sois Mãe dos pobres, de quem morre de fome e sem
assistência na doença, de quem
sofre injustiças e afrontas, de
quem não encontra trabalho, casa nem abrigo, de
quem é oprimido e explorado de quem desespera ou em vão procura o repouso longe
de Deus. (…) Que os povos não reabram
novos fossos de ódio e vingança; que o mundo não ceda à ilusão de um falso
bem-estar que avilta a dignidade da pessoa e compromete para sempre os recursos
da criação.
Não se vê aqui predileção
nem pelo marxismo nem pelo capitalismo hedonista e selvagem.
Quanto a Bento XVI,
há que dizer que será tudo menos marxista, será tudo menos defensor do
capitalismo e da economia de mercado, no estado em que estes sistemas se
encontram. E, sobretudo na segunda das suas encíclicas mencionadas, Ratzinger
faz uma resenha dos malefícios dos diversos sistemas económicos que determinam
a vida das pessoas e dos povos, advogando, como os predecessores, uma nova
ordem económica internacional, uma nova ordem internacional (vejam-se sobretudo
os n.os 66 e 67 da Caritas in Veritate – CV). E, quanto ao mercado e sua economia, leia-se o que o Papa
alemão escreveu (sublinho alguns segmentos):
O mercado, se
houver confiança recíproca e
generalizada, é a instituição económica que permite o encontro entre as pessoas, na sua dimensão de operadores económicos
que usam o contrato como regra das
suas relações e que trocam bens e serviços entre si fungíveis, para satisfazer
as suas carências e desejos. O mercado está sujeito aos princípios da chamada justiça comutativa, que regula
precisamente as relações do dar e receber entre sujeitos iguais. Mas a doutrina
social nunca deixou de pôr em evidência a importância que tem a justiça distributiva e a justiça social para a própria economia de mercado,
não só porque integrada nas malhas de um contexto social e político mais vasto,
mas também pela teia das relações em que se realiza. De facto, deixado
unicamente ao princípio da equivalência de valor dos bens trocados, o mercado não consegue gerar a coesão
social de que necessita para bem funcionar. Sem formas internas de
solidariedade e de confiança recíproca, o mercado não pode cumprir plenamente a
própria função económica. E, hoje, foi precisamente esta confiança que veio
a faltar; e a perda da confiança é uma perda grave (CV 35).
***
Há, no entanto, algo que o artigo em causa escalpeliza, o
encantamento de uma certa esquerda anticlerical e pouco praticante (e de uma
certa direita neoliberal) pelo novo discurso pontifício, augurando que, no seu
fervor anticatólico, consigam ver em Francisco aquilo que possa tornar a Igreja
mais fragilizada e criticável. Em relação ao Papa, o articulista acha bem a
porta aberta a divorciados e homossexuais, mas desejava o mesmo espírito de
abertura aos liberais, já que entende que o capitalismo, por si, “não é
incompatível com a solidariedade, a
caridade (sublinhei) e a benevolência”.
Ora, o que Suas Santidades condenam não é o liberalismo e o
capitalismo em si nem outras formas de organização económica. O que é
condenável são: os meios ilícitos de construção de fortunas, designadamente a
fraude, a exploração, o espezinhamento, a opressão; o excesso de lucro, contra
tudo e contra todos; a denegação dos direitos dos outros, nomeadamente à vida,
à educação, ao trabalho (e ao salário e apoio social), à saúde, à segurança, à
proteção, à cultura; a concorrência desenfreada; a falta da justiça comutativa
e distributiva; a veleidade de dar por caridade aquilo que é devido por
justiça; os arremedos de liberdade e participação social e política; e os totalitarismos,
sejam eles de que género forem.
De resto, sempre a Igreja Católica defendeu duas coisas
complementares: o destino universal dos bens (o que, em caso de necessidade,
postula a não apropriação daquilo que faz falta aos indigentes e pobres; e o
direito à propriedade privada, para afirmação identitária do indivíduo e do
grupo e para a rendibilização da sua exploração, desejavelmente em termos de
economia de escala. Porém, sobretudo nos últimos tempos, é usual afirmar o
princípio da função social da propriedade. Nestes termos, pode tornar-se
legítima a apropriação por parte do Estado dos meios considerados estratégicos
para a organização social e económica e para o bem-estar das populações, como
por exemplo, um banco central, alguns meios de comunicação social e de
telecomunicações, (alguns) estabelecimentos de saúde, (algumas) escolas, vias
públicas e outras infraestruturas públicas. Também o Estado e o empresário têm
de garantir trabalho e justo salário aos cidadãos, que provejam ao seu próprio
sustento e da família, bem como à situação de velhice, doença e outras
situações imprevistas. É, ainda, no âmbito da função social da propriedade e do
destino universal dos bens que é legítimo ao Estado proceder à determinação de
impostos e de contribuições e à respetiva cobrança.
Se é necessário pugnar pela criação de riqueza e, para este fim,
rendibilizar a propriedade privada (ou pública dos bens, que nunca podem ser
negligenciados), nunca será legítimo destruí-la, deixá-la degradar ou guardá-la
ciosa e avaramente. É preciso promover a sua distribuição justa por quem a
procure e possa compensar a sua receção, mas também disponibilizá-la a quem não
tem recursos para oferecer em troca.
É por isso que a produção e a distribuição se tornam
complementares e subsidiárias. A produção sem distribuição torna-se inútil; e a
distribuição sem produção é impossível. Sendo assim, os sistemas de produção de
riqueza e os de distribuição, longe de serem considerados inimigos, deverão
encontrar caminhos de encontro e cooperação. E para a justa distribuição, é necessário
estabelecer a circulação eficaz de bens e recursos. Ademais, é conveniente
conjugar outros fatores de bem-estar: trabalho e administração, posse e
orientação. E, bem assim, é importante cuidar que a produção não se torne fonte
de acumulação que não redunde em justa circulação e distribuição e esta não
leve à obsessão consumista.
O enriquecimento próprio é legítimo, mas não à custa do
empobrecimento dos demais; o enriquecimento próprio é legítimo, mas não sustentado
em desequilíbrios sociais e económicos devastadores nem como gerador dos
mesmos.
Há que ter em conta que em primeiro lugar está o homem e sua
dignidade!
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