quinta-feira, 9 de outubro de 2014

O verbo: da conjugação ao valor aspetual

Ainda que pareça estranho, o título desta reflexão é atingente à problemática da colocação dos professores, exatamente por culpa de quem, em nome da exigência e do rigor, quis o aumento da carga curricular para as disciplinas de Português e de Matemática.
Quanto à Matemática, estamos conversados: o Ministro da Educação e Ciência vem dessa área e são a Sociedade Portuguesa de Matemática e a Associação Portuguesa dos Professores de Matemática que vêm apontar um erro de aplicação de fórmula à graduação concursal de alguns professores. Não havia necessidade de errar num departamento do Estado tão experimentado na matéria!
De momento, não pretendo discutir fórmulas matemáticas nem folhas de excel, que Vítor Gaspar já prejudicou tanto o país com essas coisas. E veio tardiamente descobrir que essas coisas só agravam a nossa situação. Ademais, segundo a Visão, de hoje, dia 9, a organização que o excelente ex-governante aposentado serve tem de sofrer mudanças. E a sua diretora-geral Christine Lagarde promete: “Não vou desistir; e, se for preciso, até faço dança do ventre para provar que este é o caminho certo”. Percebo que muita coisa vai então mudar para que tudo fique na mesma (as danças do ventre deixam a pessoas e os seus haveres na mesma: é só uma questão de ginástica rítmica). Socialmente é o que os geómetras podem chamar de ângulo giro (volta inteira), ou seja, o outro lado do ângulo nulo.
Todavia, se a Matemática de Nuno Crato está em processo de falência, o seu domínio do Português parece recomendar-se. Como ele sabe conjugar o verbo – e com o pronome! Até sabe fazer a concordância do predicado com o sujeito, distinguir o presente do indicativo do futuro simples (imperfeito ou anterior) do indicativo e fazer a respetiva tmese. Até sabe fazer o discurso direto, ao repetir, como narrador, ipsis verbis aquilo que dissera ou não como personagem:
Narrador – Eu disse:
Personagem – “Os professores mantêm-se”. (O predicado expresso pelo grupo verbal “mantêm-se” concorda com o sujeito expresso pelo grupo nominal “os professores”).
Narrador – Eu não disse:
Personagem – “Os professores manter-se-ão”. (O predicado expresso pelo grupo verbal “manter-se-ão” concorda com o sujeito expresso pelo grupo nominal “os professores”).

Aquele “se” em “manter-se-ão” é uma palavra mesoclítica (não tem acento próprio e está dentro de outra) e o fenómeno fonético é a tmese. O que Nuno Crato sabe! Também não faz grande proeza; é um dos quatro ministros da educação de maior longevidade após a revolução abrilina (a seguir a Roberto Carneiro, Marçal Grilo e Maria de Lurdes Rodrigues)!
Não sei é se Nuno Crato sabe enunciar as suas afirmações no discurso indireto, com maior maleabilidade e interiorização dos conteúdos do enunciado: “Eu disse que os professores se mantinham; não disse que os professores se manteriam”. O pronome “se”, nestes casos, fica anteposto ao verbo por vir inserido ou inserto numa oração subordinada.
Se ele tivesse assumido esta transformação discursiva, teria verificado que aquele presente do indicativo tem um valor semântico de continuidade, tal como o tem o pretérito imperfeito do discurso indireto.
 O professor esqueceu que, para lá do tempo verbal, se tem de considerar, ao nível da semântica da frase e do enunciado, o valor aspetual. E este pode apresentar um aspeto lexical e um aspeto gramatical.
Em relação ao primeiro caso, quando Sua Excelência disse, os professores mantêm-se, o valor lexical do verbo remete para um situação estativa e não para um evento, a menos que o Ministro pretenda considerar o professor como um evento. Mesmo aí, teria de se munir de um manual de organização de eventos, para que nada faltasse. E, se acaso quiser que o professor seja um evento, tem de reconhecer que esse evento tem de ser durativo e não instantâneo, como quem deglute um comprimido. O professor precisa de estabilidade, Senhor Ministro da Educação e Ciência!
Se quisermos pensar na situação do professor em termos do aspeto verbal, aquele “mantêm-se” tem um valor aspetual verbal imperfetivo, ou seja, a situação dos professores não chega, não chegou ao fim.
***
Ou será que o Ministro da Educação quer que, em vez de o verbo concordar com o sujeito, seja o sujeito (neste caso, “os professores”) a concordar com o verbo? E aqui o verbo poderá ser um como estes: “anular”, “rescindir”, “retirar”, “requalificar”, “peregrinar”, “sofrer”, etc.
Efetivamente, o caso do Ministro da Educação não se compara ao caso do miúdo que se foi confessar de que não tinha cumprido “os meus deveres conjugais”; e, perante o espanto do confessor, que pediu que se explicasse, respondeu: “É que cheguei à escola sem ter estudado a conjugação dos verbos e a senhora professora disse que isso era um pecado”!
Não, o Senhor Ministro sabe mesmo conjugar os verbos. Pode é não saber conjugar o sentido dos verbos.
Entretanto, pode acontecer que o Senhor Ministro queira que o sujeito concorde com o verbo. Ora, isso nem o “sujeito” de Santa Comba concordava com todos os verbos.
Este enunciado vem espelhado na dúvida de um aluno daquele tempo em que a 4.ª classe era feita à moda antiga, como dizem os da geração anterior à minha:
O aluno, ao estudar as linhas férreas, reparou que, na linha do Dão, se encontrava o designativo de “Santa Comba Dão”. Não sabendo que se tratava de um nome próprio, um topónimo, questionou a professora e sugeriu a alteração para “Santa Comba dá” ou “Santas Combas dão”. Porém, a professora resistiu com o argumento: “Sim, mas esse sujeito não concorda com o verbo dar”.
Pois, Senhor Ministro, todos sabem que não se pode concordar com todos os verbos. Mas os verbos (integrados no grupo verbal, que tem a função de predicado) têm de concordar sempre com o sujeito. Se não à letra, ao menos quanto ao sentido. Por isso, o seu discurso de presente tem de ser o discurso de futuro, a não ser que entenda revogar as gramáticas de Português e as de outras línguas e que se convide um advogado (na esteira da Maria de Lurdes) ou um magistrado (ao gosto de V.Excia) para a ingente operação de emendar todos os textos legislativos de modo a colocar os verbos no futuro já que as leis se dirigem ao futuro.
***
 E, como estamos a falar de gramática (penso que as metas curriculares ainda não a revogaram), sugiro mais um pequeno estudo.
É um comprimido de pragmática atinente aos atos de fala. É que V. Ex.cia, quando falou no Parlamento e pediu desculpa a todos – tenha ou não um papel na mão – utilizou o discurso oral, ou seja, entrou no âmbito dos atos de fala e especificamente no dos atos ilocutórios, os que denotam uma intenção. Ora, pelas palavras e pelo esgar revelado, que reforça o sentido das palavras proferidas, o Ministro não se envolveu num ato ilocutório assertivo de conformidade ou não com a verdade, ou seja, não se limitou a verificar que os professores se mantinham. Não, o seu discurso, para mais a seguir a um pedido de desculpas inédito e histórico, envolveu um ato ilocutório compromissivo, em que o locutor se obriga a praticar uma ação no futuro ou no presente de reflexos no futuro.
Mais: O seu discurso não se limitou à expressão numa modalidade epistémica (em que se exprime uma atitude sobre a verdade ou não do conteúdo do enunciado) do tipo “os professores estão nas escolas”. Não, o discurso apresenta uma expressão de modalidade deôntica do tipo “os professores não podem ser prejudicados, a sua situação injusta e incómoda tem de ser resolvida quanto antes”.
Já na mais recente apresentação ao Parlamento, o seu discurso configura um ato ilocutório expressivo, contrapondo metodicamente, primeiro, e irritadamente, depois, o “eu disse” com o “eu não disse”. E exprimiu-se em termos da modalidade apreciativa ou valorativa, tentando harmonizar o discurso anterior com as necessidades de opção posterior.
É bom passarmos pelo estudo da gramática e pela cultura da sã política e da boa administração no Estado de Direito.
***
Aos políticos da oposição peço que estejam tranquilos, pois, o Ministro da Educação e Ciência “demite-se” ou “demitir-se-á” (tanto faz) o mais tardar no próximo mês de outubro!

Ao MEC não fica bem andar a brincar com os erros. Já coloca professores por computador desde o famigerado ano de 1976, com um pico de incompetência em 2004 (do governo de Durão Barroso, remediado no de Santana Lopes). Que se passa afinal? Até quando abusarás da nossa paciência, caríssimo Catilina, “Quousque tandem, Catilina, abutere patientia nostra?!

Sem comentários:

Enviar um comentário