sexta-feira, 24 de outubro de 2014

A sorte ou o azar da AD

O artigo de Pedro Sousa Carvalho sob a epígrafe “Portas está a ser vítima de bullying político” na coluna “Contas da Semana” do Público de hoje, dia 24 de outubro, faz-me lembrar uma conversinha havida, em janeiro de 1980, entre um prestigiado dirigente local do CDS e mim.
A AD (Aliança Democrática) de Sá Carneiro (PSD), Freitas do Amaral (CDS) e Ribeiro Telles (PPM) ganhara as eleições legislativas “intercalares” de 2 de dezembro de 1979 e, por consequência, estava em plenitude de funções o VI Governo Constitucional, empossado a 3 de janeiro de 1980.
Num encontro casual, o predito dirigente do CDS estava contente, eufórico e confiante no futuro de Portugal. E disse-me que agora com Sá Carneiro e Freitas do Amaral isto ia mesmo apara a frente. Eu, espontaneamente, quase sem pensar muito, retorqui: “Bem, o PSD agora dá-se bem com o CDS, mas não se esqueça de que, logo que não precise dele, arranjará forma de o descartar do projeto de governo”.
É claro que o meu amigo interlocutor ficou desapontado com a minha resposta. E eu raciocinei em voz alta, fazendo-lhe notar que o PSD era um partido grande e que o poder costuma ficar do lado dos grandes; que já tinha havido uma tentativa de aliança PSD/CDS (convergência democrática) que ficara gorada; que tinha havido uma tentativa de aproximação do PSD ao PS; e que Sá Carneiro, nas primeiras declarações que fez ao país Pela RTP a seguir à revolução abrilina, advogava a criação de um grande partido de “centro”. Por isso, aquela tática viragem à esquerda, de PPD para PSD, não era ideologicamente convincente.
Aí, o meu amigo não se conteve e desferiu: “Como é que um padre comunista pensa tão acertadamente”?
Ora bem: Dadas as funções que então exercia – o que aconteceu por largos anos – a minha intervenção pública e desejavelmente a conversa privada deveriam manter-se fora do âmbito da política partidária. Tal não impedia que, enquanto animal político, ouvisse e visse o mundo e, quando necessário, tivesse de oferecer, como líder, uma palavra de orientação, que nunca recusei e a qual geralmente consistia num apelo ao cumprimento dos deveres cívicos, ao exercício dos direitos, à liberdade de voto e de opinião, à consciência, à responsabilização e ao respeito pela posição dos outros. Às vezes, a minha palavra de orientação ficava-se pelo silêncio premeditado e ostensivo.
As minhas posições acima referidas davam como resultado que as pessoas normalmente me situavam em determinada orientação política consoante as ideias que manifestava, mesmo que a intenção fosse outra e objetivamente a análise das mesmas devesse induzir outra interpretação, ou consoante as pessoas que me acompanhavam. E, neste caso, os observadores ou ficavam baralhados ou só me viam quando acompanhado por determinadas pessoas.
Recordo-me de que, num determinado domingo, referindo que, no domingo seguinte, iria proceder-se a ato eleitoral, fiz o costumado apelo ao cumprimento do dever cívico de votar, à liberdade de voto e à consciência responsável, embora de forma mais explícita. Bem, no domingo das eleições, alguém me perguntava se tinha sido eu a copiar o discurso ou o Presidente da República em funções. Tal era a semelhança entre o meu discurso religioso (?!) e o dele no dia da reflexão.
***
Voltando à heterofagia partidária, creio que de uma forma ou de outra o tempo acaba por me dar razão. Os grandes servem-se dos pequenos, descartam-nos facilmente ou arrastam-nos consigo ao mesmo charco.
A AD continuou com Francisco Balsemão, que chefiou até á exaustão, em lume brando, o VII e o VIII Governos constitucionais até 9 de junho de 1983, data da posse de novo governo resultante de eleições havidas na sequência da apresentação do pedido de demissão do Primeiro-Ministro e subsequente dissolução do Parlamento.
Em 1985, o poderoso Aníbal Cavaco Silva veio à Figueira da Foz proceder à rodagem do seu automóvel novo e miraculosamente ficou eleito Presidente do seu glorioso partido. De imediato, atira-se à ação política e promete desfazer o Bloco Central de governação cujo n.º 2 era o inefável Ministro dos Negócios Estrangeiros atual, que ainda não se tinha habituado a pedir as desnecessárias desculpas. O novel presidente do PSD resolveu consumar o seu ataque contra aquele Bloco depois da assinatura do Tratado de Adesão à CEE, a 12 de junho de 1985, no Mosteiro dos Jerónimos por Mário Soares e Rui Machete. Houve eleições e o PSD do novo general civil preferiu concorrer só a ir mal acompanhado. E ganhou.
O Presidente da República conferiu posse ao governo mais minoritário, que governou de “Credo na boca” até que, em 1987, por obra e graça do PRD, acolitado pelo PS de Vítor Constâncio, foi dissolvido o Parlamento a contragosto do Presidente Mário Soares. E, nas eleições subsequentes, o PSD de Aníbal, sozinho ou sem CDS, conquistou a clara maioria absoluta – proeza que reiterou em 1991. Eu tinha razão, não?
Em 2002, porque Guterres, para não deixar o país lançado no pântano, apresentara a sua demissão de Primeiro-Ministro, houve eleições legislativas. O PSD de Barroso candidatou-se e tinha hipótese de vencer. No entanto, o modo como geriu as expectativas, nomeadamente quanto aos 10 estádios de futebol para o Europeu 2004 e sobretudo com o diferendo público instalado no Porto entre Rui Rio, novel presidente da autarquia portuense, e o FCP, por pouco não entregava novamente a vitória eleitoral ao PS de Ferro Rodrigues. O PSD ganhou as eleições por margem pouco significativa, pelo que mais uma vez precisou do agora CDS/PP de Paulo Portas. Então, em regime de coligação pós-eleitoral, foi reatar a nova AD, ensaiada entre Marcelo e Portas e gorada precocemente. E Sampaio empossou o governo de coligação, que se manteve num país “de tanga” até que, em 2004, saiu a sorte grande europeia a Barroso, tendo Sampaio, depois de muitas consultas e muitíssimas hesitações, dado posse a um governo da coligação, sobre o qual impôs uma apertada vigilância presidencial.
Neste caso, não se tratou de o PSD precisar ou não do CDS: os barões do PSD encarregaram-se de cavar o processo de autofagia da coligação. Para alguns, como Marques Mendes, parecia que o estorvo vinha exatamente do CDS/PP. E este dirigente político pré-iluminado entendia, no Congresso de Barcelos, que o partido deveria ir separado do CDS às próximas eleições; e foi. Bastou que Sampaio, baseado nas contradições internas despudoradamente vindas a público, se encarregou de anunciar a intenção de dissolver o Parlamento. Quando se apercebeu de que tinha criado confusão e lançado a dúvida sobre se o Parlamento teria legitimidade para aprovar o orçamento para o ano seguinte, veio esclarecer que nada estava dissolvido, que estava tudo a funcionar. A dissolução era então uma medida a prazo. E Sócrates levou ao seu PS à vitória eleitoral com maioria absoluta.
Após o declínio socrático pelas razões por demais conhecidas, o PSD de Passos Coelho (antecedido por Luís Filipe Menezes, Manuela Ferreira Leite e Luís Marques Mendes – ordem cronologicamente inversa) ganhou as eleições resultantes da demissão do governo minoritário de José Sócrates, que Aníbal empossara. Veio, porém, mais uma vez a precisar do CDS/PP e lançou a ponte para nova coligação pós-eleitoral, que, de crise em crise, de contradição em contradição, de desautorização em desautorização, se habituou à dinâmica da precariedade. Resta saber qual a durabilidade de tal precariedade. É que as linhas vermelhas de Portas passaram a verdes, a irrevogabilidade do seu abandono do Governo redundou em vice-presidência governativa, a descida em IRS passou a designar-se por aumento de carga fiscal e cláusula de salvaguarda. Enfim!
Eu tinha razão em janeiro de 1980. Porém, Sousa Carvalho vai mais longe. Começa por afirmar que “o Governo de Passos Coelho está a cair aos pedaços”, apontando vários exemplos. Mas, logo a seguir, garante que “se o Governo está a cair aos pedaços é também porque a coligação há muito que apodreceu”. E, apoiando-se em citação de Freitas do Amaral, afirma que “o que o Governo está a fazer ao CDS já não é maus tratos, é um autêntico bullying político”. E exemplifica: A propósito dos problemas surgidos com a colocação dos professores refere que o CDS e o PSD têm andado às turras, a ponto de um deputado do PSD ter defendido publicamente que João Casanova deveria deixar o Governo por alegadamente ser responsável por aqueles erros. Ora, do lado do CDS, aponta-se o dedo à presumível incompetência de Crato. Passos reiterou a confiança no Ministro, parecendo endossar a culpa ao Secretário de Estado (CDS).
Porém, o caso fia mais fino quando a humilhação atinge o líder do parceiro menor da coligação. Também neste aspeto, Sousa Carvalho fornece dados. Na reunião do Conselho de Ministros de 18 horas para decidir a descida da sobretaxa do IRS, Portas não conseguiu a “moderação fiscal” e até à meia-noite nem sequer suspeitava da solução conhecida como crédito fiscal do contribuinte. Só depois de contas e mais contas para baixar num ponto aquela sobretaxa, é que o chefe do Governo e a Ministra das Finanças desvendaram a solução: os sujeitos passivos veem a sobretaxa descontada mês a mês. Depois, em maré de acertos no ano seguinte, conforme o resultado da cobrança fiscal, esse diferencial de 1% será restituído ao contribuinte.
Se é provável que o CDS se pôs a jeito de vítima do predito bullying, também é certo que a cooperação governativa deveria ajudar a limar as arestas da governança e não aninhar o gozo do panorama. Assim, é legítimo perguntar com Sousa Carvalho o que é que os ministros do CDS estão a fazer no Governo, além de este partido naturalmente servir de muleta parlamentar ao partido que herdou as gloriosas tradições democráticas de Sá Carneiro, mas que tem vindo a desfeitear de todo. Portas resigna-se e publicamente gere as contradições e humilhações. Isto porque o CDS não consegue colocar o cenário do descarte. Se concorrer sozinho às próximas eleições, que discurso vai fazer, como se demarca da política de crise liderada teimosamente por Passos Coelho e seus colaboradores mais chegados? Se vai coligado, como gerirá em campanha as contradições da política com que não concordava na totalidade? Não se afundará com um partido que vai a eleições para não dar parte de fraco?

Eu tinha razão, mas não a pensava ter em tão grande medida…

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