O
artigo de Pedro Sousa Carvalho sob a epígrafe “Portas está a ser vítima de bullying
político” na coluna “Contas da Semana” do Público de hoje, dia 24 de outubro, faz-me lembrar uma conversinha
havida, em janeiro de 1980, entre um prestigiado dirigente local do CDS e mim.
A
AD (Aliança Democrática) de Sá Carneiro (PSD), Freitas do Amaral (CDS) e
Ribeiro Telles (PPM) ganhara as eleições legislativas “intercalares” de 2 de
dezembro de 1979 e, por consequência, estava em plenitude de funções o VI
Governo Constitucional, empossado a 3 de janeiro de 1980.
Num
encontro casual, o predito dirigente do CDS estava contente, eufórico e
confiante no futuro de Portugal. E disse-me que agora com Sá Carneiro e Freitas
do Amaral isto ia mesmo apara a frente. Eu, espontaneamente, quase sem pensar
muito, retorqui: “Bem, o PSD agora dá-se bem com o CDS, mas não se esqueça de
que, logo que não precise dele, arranjará forma de o descartar do projeto de
governo”.
É
claro que o meu amigo interlocutor ficou desapontado com a minha resposta. E eu
raciocinei em voz alta, fazendo-lhe notar que o PSD era um partido grande e que
o poder costuma ficar do lado dos grandes; que já tinha havido uma tentativa de
aliança PSD/CDS (convergência democrática) que ficara gorada; que tinha havido
uma tentativa de aproximação do PSD ao PS; e que Sá Carneiro, nas primeiras
declarações que fez ao país Pela RTP a seguir à revolução abrilina, advogava a
criação de um grande partido de “centro”. Por isso, aquela tática viragem à
esquerda, de PPD para PSD, não era ideologicamente convincente.
Aí,
o meu amigo não se conteve e desferiu: “Como é que um padre comunista pensa tão
acertadamente”?
Ora
bem: Dadas as funções que então exercia – o que aconteceu por largos anos – a
minha intervenção pública e desejavelmente a conversa privada deveriam
manter-se fora do âmbito da política partidária. Tal não impedia que, enquanto
animal político, ouvisse e visse o mundo e, quando necessário, tivesse de
oferecer, como líder, uma palavra de orientação, que nunca recusei e a qual
geralmente consistia num apelo ao cumprimento dos deveres cívicos, ao exercício
dos direitos, à liberdade de voto e de opinião, à consciência, à
responsabilização e ao respeito pela posição dos outros. Às vezes, a minha
palavra de orientação ficava-se pelo silêncio premeditado e ostensivo.
As
minhas posições acima referidas davam como resultado que as pessoas normalmente
me situavam em determinada orientação política consoante as ideias que
manifestava, mesmo que a intenção fosse outra e objetivamente a análise das
mesmas devesse induzir outra interpretação, ou consoante as pessoas que me
acompanhavam. E, neste caso, os observadores ou ficavam baralhados ou só me
viam quando acompanhado por determinadas pessoas.
Recordo-me
de que, num determinado domingo, referindo que, no domingo seguinte, iria
proceder-se a ato eleitoral, fiz o costumado apelo ao cumprimento do dever
cívico de votar, à liberdade de voto e à consciência responsável, embora de
forma mais explícita. Bem, no domingo das eleições, alguém me perguntava se
tinha sido eu a copiar o discurso ou o Presidente da República em funções. Tal
era a semelhança entre o meu discurso religioso (?!) e o dele no dia da
reflexão.
***
Voltando
à heterofagia partidária, creio que de uma forma ou de outra o tempo acaba por
me dar razão. Os grandes servem-se dos pequenos, descartam-nos facilmente ou arrastam-nos
consigo ao mesmo charco.
A
AD continuou com Francisco Balsemão, que chefiou até á exaustão, em lume
brando, o VII e o VIII Governos constitucionais até 9 de junho de 1983, data da
posse de novo governo resultante de eleições havidas na sequência da
apresentação do pedido de demissão do Primeiro-Ministro e subsequente
dissolução do Parlamento.
Em
1985, o poderoso Aníbal Cavaco Silva veio à Figueira da Foz proceder à rodagem
do seu automóvel novo e miraculosamente ficou eleito Presidente do seu glorioso
partido. De imediato, atira-se à ação política e promete desfazer o Bloco
Central de governação cujo n.º 2 era o inefável Ministro dos Negócios
Estrangeiros atual, que ainda não se tinha habituado a pedir as desnecessárias
desculpas. O novel presidente do PSD resolveu consumar o seu ataque contra aquele
Bloco depois da assinatura do Tratado de Adesão à CEE, a 12 de junho de 1985,
no Mosteiro dos Jerónimos por Mário Soares e Rui Machete. Houve eleições e o
PSD do novo general civil preferiu concorrer só a ir mal acompanhado. E ganhou.
O
Presidente da República conferiu posse ao governo mais minoritário, que
governou de “Credo na boca” até que, em 1987, por obra e graça do PRD,
acolitado pelo PS de Vítor Constâncio, foi dissolvido o Parlamento a
contragosto do Presidente Mário Soares. E, nas eleições subsequentes, o PSD de
Aníbal, sozinho ou sem CDS, conquistou a clara maioria absoluta – proeza que
reiterou em 1991. Eu tinha razão, não?
Em
2002, porque Guterres, para não deixar o país lançado no pântano, apresentara a
sua demissão de Primeiro-Ministro, houve eleições legislativas. O PSD de
Barroso candidatou-se e tinha hipótese de vencer. No entanto, o modo como geriu
as expectativas, nomeadamente quanto aos 10 estádios de futebol para o Europeu
2004 e sobretudo com o diferendo público instalado no Porto entre Rui Rio,
novel presidente da autarquia portuense, e o FCP, por pouco não entregava novamente
a vitória eleitoral ao PS de Ferro Rodrigues. O PSD ganhou as eleições por
margem pouco significativa, pelo que mais uma vez precisou do agora CDS/PP de Paulo
Portas. Então, em regime de coligação pós-eleitoral, foi reatar a nova AD,
ensaiada entre Marcelo e Portas e gorada precocemente. E Sampaio empossou o
governo de coligação, que se manteve num país “de tanga” até que, em 2004, saiu
a sorte grande europeia a Barroso, tendo Sampaio, depois de muitas consultas e muitíssimas
hesitações, dado posse a um governo da coligação, sobre o qual impôs uma apertada
vigilância presidencial.
Neste
caso, não se tratou de o PSD precisar ou não do CDS: os barões do PSD
encarregaram-se de cavar o processo de autofagia da coligação. Para alguns,
como Marques Mendes, parecia que o estorvo vinha exatamente do CDS/PP. E este
dirigente político pré-iluminado entendia, no Congresso de Barcelos, que o
partido deveria ir separado do CDS às próximas eleições; e foi. Bastou que
Sampaio, baseado nas contradições internas despudoradamente vindas a público,
se encarregou de anunciar a intenção de dissolver o Parlamento. Quando se
apercebeu de que tinha criado confusão e lançado a dúvida sobre se o Parlamento
teria legitimidade para aprovar o orçamento para o ano seguinte, veio
esclarecer que nada estava dissolvido, que estava tudo a funcionar. A dissolução
era então uma medida a prazo. E Sócrates levou ao seu PS à vitória eleitoral com
maioria absoluta.
Após
o declínio socrático pelas razões por demais conhecidas, o PSD de Passos Coelho
(antecedido por Luís Filipe Menezes, Manuela Ferreira Leite e Luís Marques
Mendes – ordem cronologicamente inversa) ganhou as eleições resultantes da
demissão do governo minoritário de José Sócrates, que Aníbal empossara. Veio, porém,
mais uma vez a precisar do CDS/PP e lançou a ponte para nova coligação pós-eleitoral,
que, de crise em crise, de contradição em contradição, de desautorização em
desautorização, se habituou à dinâmica da precariedade. Resta saber qual a
durabilidade de tal precariedade. É que as linhas vermelhas de Portas passaram
a verdes, a irrevogabilidade do seu abandono do Governo redundou em vice-presidência
governativa, a descida em IRS passou a designar-se por aumento de carga fiscal
e cláusula de salvaguarda. Enfim!
Eu tinha razão em janeiro de 1980.
Porém, Sousa Carvalho vai mais longe. Começa por afirmar que “o Governo de
Passos Coelho está a cair aos pedaços”, apontando vários exemplos. Mas, logo a
seguir, garante que “se o Governo está a cair aos pedaços é também porque a
coligação há muito que apodreceu”. E, apoiando-se em citação de Freitas do
Amaral, afirma que “o que o Governo está a fazer ao CDS já não é maus tratos, é
um autêntico bullying político”. E exemplifica: A propósito dos
problemas surgidos com a colocação dos professores refere que o CDS e o PSD têm
andado às turras, a ponto de um deputado do PSD ter defendido publicamente que
João Casanova deveria deixar o Governo por alegadamente ser responsável por
aqueles erros. Ora, do lado do CDS, aponta-se o dedo à presumível incompetência
de Crato. Passos reiterou a confiança no Ministro, parecendo endossar a culpa ao
Secretário de Estado (CDS).
Porém, o caso fia mais fino quando
a humilhação atinge o líder do parceiro menor da coligação. Também neste
aspeto, Sousa Carvalho fornece dados. Na reunião do Conselho de Ministros de 18
horas para decidir a descida da sobretaxa do IRS, Portas não conseguiu a “moderação
fiscal” e até à meia-noite nem sequer suspeitava da solução conhecida como
crédito fiscal do contribuinte. Só depois de contas e mais contas para baixar num
ponto aquela sobretaxa, é que o chefe do Governo e a Ministra das Finanças desvendaram
a solução: os sujeitos passivos veem a sobretaxa descontada mês a mês. Depois,
em maré de acertos no ano seguinte, conforme o resultado da cobrança fiscal,
esse diferencial de 1% será restituído ao contribuinte.
Se é provável que o CDS se pôs a
jeito de vítima do predito bullying, também é certo que a cooperação
governativa deveria ajudar a limar as arestas da governança e não aninhar o
gozo do panorama. Assim, é legítimo perguntar com Sousa Carvalho o que é que os
ministros do CDS estão a fazer no Governo, além de este partido naturalmente
servir de muleta parlamentar ao partido que herdou as gloriosas tradições
democráticas de Sá Carneiro, mas que tem vindo a desfeitear de todo. Portas resigna-se
e publicamente gere as contradições e humilhações. Isto porque o CDS não
consegue colocar o cenário do descarte. Se concorrer sozinho às próximas eleições,
que discurso vai fazer, como se demarca da política de crise liderada teimosamente
por Passos Coelho e seus colaboradores mais chegados? Se vai coligado, como
gerirá em campanha as contradições da política com que não concordava na totalidade?
Não se afundará com um partido que vai a eleições para não dar parte de fraco?
Eu
tinha razão, mas não a pensava ter em tão grande medida…
Sem comentários:
Enviar um comentário