A expressão postada
em epígrafe integra uma frase retirada de um dos poemas satíricos do poeta
latino Quinto Horácio Flaco (célebre pelas suas sátiras, odes epístolas e
epodos ou jambos), em que, apesar de como epicurista defender o gozo do dia que
passa, adverte contra os excessos e recomenda a moderação: “Est modus in
rebus, sunt certi denique fines”. O segmento textual, traduzido ao pé da
letra, ensina que “há uma justa medida (modus) em todas as coisas (rebus), existem, afinal, certos limites”
(Livro I, Sátira 1).
É, na
atualidade, usada a expressão nuclear daquela frase principalmente em tom de
advertência, quando queremos sugerir que alguma coisa está a ultrapassar as
malhas do tolerável. O linguista brasileiro Cláudio Moreno (no site “sua língua”) exemplifica com o
caso de um conhecido senador, que, em seu lúcido discurso, lamentava os
incidentes vergonhosos que vêm abalando a dignidade do Senado e rematava com
este fecho à boa maneira horaciana: “Encerro minha manifestação com um aviso aos
senadores, para que continuem respeitados por todos os brasileiros: est modus in rebus! O País não pode mais tolerar tanta ignomínia!”.
***
Vêm estes
considerandos a propósito da informação veiculada pelo semanário o Diabo, de 30 de setembro, segundo a qual
o Conselho de Ética da Alemanha produziu uma recomendação que está a gerar
polémica, ou seja, sugerir que seja determinado por lei o fim da criminalização
do incesto entre irmãos. Tal recomendação / sugestão surge na sequência da
análise do caso de “um homem que teve quatro filhos com a irmã, que conheceu
quando já tinha 24 anos”. Outros desenvolvimentos nalguma comunicação social
especificam que a descriminalização da relação incestuosa entre irmãos deverá
acontecer para os casos em que a mesma seja consensual e envolva pessoas de
maior idade.
A maioria
dos membros do Conselho de Ética disse ser da opinião “de que o direito penal
não é o meio adequado para resguardar um tabu social”. Em conformidade com este
pressuposto, a lei deveria ser alterada. Dos 26 membros, nove posicionaram-se
contra a proposta e três refugiaram-se na abstenção.
Entende
aquela maioria – que se posicionou agora a favor de uma mudança do respetivo
parágrafo 173 do Código Penal alemão, que prevê pena de reclusão até dois anos ou
multa para casos de incesto – que o direito penal não tem a tarefa de impor
padrões ou limites morais à relação sexual entre cidadãos maiores de idade, mas
de proteger o indivíduo de danos e assédios grosseiros, como também de
resguardar de perturbações a ordem social da comunidade.
A
reflexão e a subsequente posição do Conselho de Ética tem como pano de fundo
uma decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos, em abril de 2012, que
ratificou o veredicto de um tribunal alemão sobre a proibição de incesto entre
irmãos no país. Na ocasião, os juízes da corte de Estrasburgo rejeitaram a
queixa do acima referenciado homem de Leipzig, que havia sido condenado por
manter relações sexuais com a sua irmã. Os dois foram criados separadamente e só se conheceram quando já eram
adultos. Uma relação íntima desenvolveu-se entre eles, o que levou ao
nascimento de quatro filhos, entre 2001 e 2005.
Resta saber
se o tribunal condenara o homem de Leipzig pela relação incestuosa em si (o que
não é crível) ou pela sua prática reiterada após o conhecimento da real
situação (o que será bem diferente). Como se deve questionar se um departamento de ética não deverá zelar por que a lei (que a todos se deve aplicar) e a ética (de incidência pessoal e social) sejam cada vez mais coincidentes.
Elisabeth
Winkelmeier-Becker, do partido da chancelerina Merkel, criticou a votação do referido
Conselho afirmando que a abolição da norma legal proibitiva naqueles termos
daria um sinal altamente errado às famílias, apesar de não recomendar a
descriminalização da relação sexual entre pais e filhos. Também outros políticos democrata-cristãos criticaram duramente a
proposta em causa. Em entrevista ao jornal Bild,
no passado dia 25, o porta-voz para política interna da bancada conservadora no
Bundestag (câmara baixa do Parlamento alemão), Stephan Mayer, falou de uma
sugestão “escandalosa” e inaceitável.
Segundo aquele
porta-voz de política interna dos partidos conservadores alemães, no entanto, “não
é à toa que incesto entre irmãos e parentes próximos são passíveis de punição
judicial”. Tais relações teriam como consequências graves doenças hereditárias
e deficiências nos filhos, argumentou Mayer.
Por seu
turno, o ministro da Justiça, o socialdemocrata Heiko Mass, declarou,
entretanto, que não pretende propor mudanças na lei, apesar do parecer, uma vez
que o Conselho de Ética é um órgão de assessoramento do governo alemão e dos
deputados, composto por cientistas de diversas áreas, não sendo vinculativos os
seus pareceres e recomendações.
Resta saber
se a condenação social e jurídica do incesto se refere pura e simplesmente a um
“tabu social”, como pretende o Conselho de Ética ou se não configurará, antes,
um normativo legal de proteção à economia familiar, um antídoto da sua asfixia
ou promotor da sua respiração comunitária.
Ora,
segundo o insuspeito Lévi-Strauss, a proibição do incesto entre pais e filhos,
entre irmãos e, mesmo, entre primos paralelos tem vária
fundamentação.
Efetivamente,
a razão que Stephan Mayer aduz é rejeitada por Strauss, o que não quer dizer
que não seja válida, se encarada com algum relativismo, já que o incesto entre
consanguíneos pode levar à degenerescência biológica (além das teses
históricas, evolucionistas e difusionistas), constituindo a sua proibição uma
exigência da natureza. No entanto, nem sempre os descendentes de relação
incestuosa ostentam clara ou larvarmente as possíveis e temíveis
degenerescências. E não seria justo penalizar as relações sexuais, mesmo
aquelas de que surgisse prole, na ignorância do parentesco. O mesmo não se pode
dizer da sua continuidade após o conhecimento da situação. Assim é que o
escritor de conteúdos transtemporais (e de fina ironia) Eça de Queirós, ao
apresentar a relação incestuosa de Carlos da Maia com Maria Eduarda (irmãos por
via paterna e materna), encara-a através do posicionamento tolerante de João da
Ega na fase do desconhecimento da consanguinidade, mas verbera-a na fase em que
o conhecimento unilateral da situação por Carlos não lhe trava o ímpeto fogoso
pela irmã, que de nada sabia ainda.
Como quase
universalmente as sociedades proscrevem o incesto também nas situações de
parentesco não consanguíneo (o resultante da afinidade), Strauss infere que a
proibição do incesto é, antes de mais, a conjugação das exigências da natureza
com as da cultura. Isto significa haver uma singular coordenação entre
universalidade e particularidade. O incesto é universalmente proibido (é óbvio
que se trata de uma universalidade moral e não aritmética), embora as
proibições de que é alvo sejam variáveis, em grau, de acordo com os diversos
sistemas de parentesco. São assim dois os dois domínios que a universalidade e
a particularidade configuram empírica e etnologicamente: a descendência e a
aliança. De acordo com o ilustre cientista, a natureza atribui a cada indivíduo
determinantes veiculados pelos seus pais efetivos, mas não determina em nada
quais serão esses pais; quem o determina é a cultura revestida do fenómeno da
aliança. Será, portanto, a troca de mulheres (ora pacífica,
como habitualmente, ora polémica, como no caso do rapto das sabinas pelos
romanos) que assumirá um caráter privilegiado na comunicação dos
grupos entre si, ao nível das diferentes modalidades da aliança, transformando
as naturais relações de parentesco em convencionais sistemas de
parentesco, sem que haja abjuração
ou menosprezo dos ditames da natureza.
Chegamos,
assim, ao conceito nuclear de parentesco ou átomo de parentesco – uma
estrutura de quatro elementos (irmão, irmã, pai, filho) unidos por pares de
oposições correlativas: colateralidade (germano – germana); aliança
(esposo – esposa); filiação (progenitor – filho); e avunculado
(tio materno – sobrinho). O irmão da mãe adquiria um papel
fulcral na troca devido à preponderância masculina em relação à mulher. Assim,
há que estabelecer a forma mais simples de reciprocidade e, a
partir daí, tentar chegar às formas mais complexas que abranjam a totalidade do
sistema de alianças. “O casamento entre primos cruzados revela-se,
então, na troca restrita (entre dois grupos), o mais
elementar sistema de troca, expresso mediante o casamento
com a prima cruzada bilateral. A troca generalizada (entre mais
de dois grupos) apresenta a variante do casamento com a prima cruzada
patrilateral, no ciclo curto, e a variante do casamento
com a prima cruzada matrilateral, no ciclo longo (troca
generalizada, por excelência). A passagem da troca restrita à generalizada
fundamenta-se nos pressupostos durkheimeanos do sistema: a última possui uma
capacidade ilimitada de integração social, admitindo a entrada constante de
novos grupos na cadeia de alianças, capacidade que a primeira não tem” (cf Luís Barreiros in Carta ACF, 2001 [Em linha]. http://acfportugal.com/cartaacf/carta18b.htm, ac 2014.09.30).
Respondendo
à questão essencial, “por que razão as
relações de aliança são proibidas entre primos paralelos e preferenciais ou
prescritas entre cruzados”, há que afirmar, com Lévi-Strauss, que “a
dicotomia dos primos é o reflexo da troca”. Tal afirmação significa que “os
primos paralelos não se casam porque tal significaria a interrupção da troca
(de mulheres) com a consequente eliminação da solidariedade social, enquanto o
casamento entre os cruzados constitui o fenómeno empírico da afirmação desta”.
(cf id et ib).
Isto
compagina o postulado fundamental do sistema lévi-straussiano, segundo o qual
as regras de aliança só obtêm significação na sua mútua oposição, tal como os
fonemas de uma língua, conforme o discurso de Roman Jakobson. Nestes termos, os
sistemas de parentesco, do mesmo modo que a linguagem, contêm uma dimensão
inconsciente, que se revela mediante as três estruturas mentais básicas,
constituintes da função simbólica – a exigência da regra como regra,
a noção de reciprocidade e o caráter sintético da
dádiva subjacentes a qualquer sociedade que vive, fala e se relaciona
em parâmetros da dialética recato / abertura, liberdade / norma, liberalidade /
contenção. A verificação empírica daquelas estruturas mentais teria lugar ao
nível dos fenómenos da troca de mulheres (na velha Roma, o homem ia buscar a mulher à casa paterna e conduzia-a
à nova casa), de mercadorias (aqui se insere a obrigação o
dote) e de palavras (o
compromisso). – (cf id et ib).
***
Sem
aprofundar a argumentação sobre a bondade ou não da descriminalização ou da
proibição de determinados comportamentos (incesto, aborto nas condições
previstas na lei, adoção por casais de pessoas do mesmo sexo ou mesmo o
casamento entre as preditas pessoas…), há que ter em conta alguns pressupostos:
ninguém é condenável por atos cuja ilegalidade (ou, sobretudo no caso das
religiões, moralidade) desconhece, se eles forem praticados na ignorância da
situação que os torna ilegais ou imorais (vg incesto entre pessoas que não
sabem da sua relação de parentesco), já que o juiz tem de saber aplicar a lei
com base na leitura ponderada das circunstâncias em que os atos vêm sendo
praticados pelo arguido; ninguém deve ter a petulância ou ceder à fraqueza de
continuar uma prática que as circunstâncias lhe mostraram inequivocamente que
era ilegal ou imoral; a prática, só por si, não legitima a atuação das pessoas,
nem de ilegal ou imoral se converte em legal ou moral, muito embora obrigue a
assumir as consequências e as responsabilidades; não é só pelo facto de uma
prática ser usual há uns tempos a esta parte que a lei a deve consignar, bem
como não é só pelo facto de uma prática ser apanágio de um pequeno número que
ela deve ser proscrita ou intolerada; e não é só pelo facto de estar consagrado
em lei que um comportamento é moral e socialmente aceitável.
Por outro
lado, é preciso afirmar que o Estado e as instituições públicas e privadas têm
de respeitar e garantir o exercício de todos os direitos humanos, de todas as
liberdades. Porém, não têm de garantir e, muito menos, sacralizar aspetos
comportamentais que não decorrem das fundas aspirações da natureza humana ou da
sua manifestação vivencial (sobretudo se decorrem de ondas meramente modistas).
E, sobretudo, não deve elevar a padrão de vida dominante aquilo que por lei
deve permitir a grupos minoritários, no pressuposto de que a democracia não se
esgota no cumprimento das opções das maiorias, mas tem de atender às justas
reivindicações dos cidadãos das minorias, mesmo que emoldurados por grupos
minoritários.
Sendo
assim, as nossas leis teriam de ser mais discutidas, mais bem formuladas
(talvez nalguns casos o Estado pudesse ir um pouco mais longe), a sociedade
deveria ser, ao mesmo tempo, mais assertiva e tolerante; e as instâncias
formadoras das instituições públicas e privadas, nomeadamente as Igrejas,
deveriam apostar muito mais na reta formação das consciências e no
desenvolvimento de uma cidadania mais saudável e mais sustentada. É a certeza
de que só a verdade objetiva liberta e de que, nas atitudes e nos
comportamentos que espelham valores políticos, éticos e saber científico e
técnico, tem de haver modus in rebus, certi denique fines!
Sem comentários:
Enviar um comentário