quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Modus in rebus

A expressão postada em epígrafe integra uma frase retirada de um dos poemas satíricos do poeta latino Quinto Horácio Flaco (célebre pelas suas sátiras, odes epístolas e epodos ou jambos), em que, apesar de como epicurista defender o gozo do dia que passa, adverte contra os excessos e recomenda a moderação: “Est modus in rebus, sunt certi denique fines”. O segmento textual, traduzido ao pé da letra, ensina que “há uma justa medida (modus) em todas as coisas (rebus), existem, afinal, certos limites” (Livro I, Sátira 1).
É, na atualidade, usada a expressão nuclear daquela frase principalmente em tom de advertência, quando queremos sugerir que alguma coisa está a ultrapassar as malhas do tolerável. O linguista brasileiro Cláudio Moreno (no site “sua língua”) exemplifica com o caso de um conhecido senador, que, em seu lúcido discurso, lamentava os incidentes vergonhosos que vêm abalando a dignidade do Senado e rematava com este fecho à boa maneira horaciana: “Encerro minha manifestação com um aviso aos senadores, para que continuem respeitados por todos os brasileiros: est modus in rebus! O País não pode mais tolerar tanta ignomínia!”.
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Vêm estes considerandos a propósito da informação veiculada pelo semanário o Diabo, de 30 de setembro, segundo a qual o Conselho de Ética da Alemanha produziu uma recomendação que está a gerar polémica, ou seja, sugerir que seja determinado por lei o fim da criminalização do incesto entre irmãos. Tal recomendação / sugestão surge na sequência da análise do caso de “um homem que teve quatro filhos com a irmã, que conheceu quando já tinha 24 anos”. Outros desenvolvimentos nalguma comunicação social especificam que a descriminalização da relação incestuosa entre irmãos deverá acontecer para os casos em que a mesma seja consensual e envolva pessoas de maior idade.
A maioria dos membros do Conselho de Ética disse ser da opinião “de que o direito penal não é o meio adequado para resguardar um tabu social”. Em conformidade com este pressuposto, a lei deveria ser alterada. Dos 26 membros, nove posicionaram-se contra a proposta e três refugiaram-se na abstenção.
Entende aquela maioria – que se posicionou agora a favor de uma mudança do respetivo parágrafo 173 do Código Penal alemão, que prevê pena de reclusão até dois anos ou multa para casos de incesto – que o direito penal não tem a tarefa de impor padrões ou limites morais à relação sexual entre cidadãos maiores de idade, mas de proteger o indivíduo de danos e assédios grosseiros, como também de resguardar de perturbações a ordem social da comunidade.
A reflexão e a subsequente posição do Conselho de Ética tem como pano de fundo uma decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos, em abril de 2012, que ratificou o veredicto de um tribunal alemão sobre a proibição de incesto entre irmãos no país. Na ocasião, os juízes da corte de Estrasburgo rejeitaram a queixa do acima referenciado homem de Leipzig, que havia sido condenado por manter relações sexuais com a sua irmã. Os dois foram criados separadamente e só se conheceram quando já eram adultos. Uma relação íntima desenvolveu-se entre eles, o que levou ao nascimento de quatro filhos, entre 2001 e 2005.
Resta saber se o tribunal condenara o homem de Leipzig pela relação incestuosa em si (o que não é crível) ou pela sua prática reiterada após o conhecimento da real situação (o que será bem diferente). Como se deve questionar se um departamento de ética não deverá zelar por que a lei (que a todos se deve aplicar) e a ética (de incidência pessoal e social) sejam cada vez mais coincidentes.
Elisabeth Winkelmeier-Becker, do partido da chancelerina Merkel, criticou a votação do referido Conselho afirmando que a abolição da norma legal proibitiva naqueles termos daria um sinal altamente errado às famílias, apesar de não recomendar a descriminalização da relação sexual entre pais e filhos. Também outros políticos democrata-cristãos criticaram duramente a proposta em causa. Em entrevista ao jornal Bild, no passado dia 25, o porta-voz para política interna da bancada conservadora no Bundestag (câmara baixa do Parlamento alemão), Stephan Mayer, falou de uma sugestão “escandalosa” e inaceitável.
Segundo aquele porta-voz de política interna dos partidos conservadores alemães, no entanto, “não é à toa que incesto entre irmãos e parentes próximos são passíveis de punição judicial”. Tais relações teriam como consequências graves doenças hereditárias e deficiências nos filhos, argumentou Mayer.
Por seu turno, o ministro da Justiça, o socialdemocrata Heiko Mass, declarou, entretanto, que não pretende propor mudanças na lei, apesar do parecer, uma vez que o Conselho de Ética é um órgão de assessoramento do governo alemão e dos deputados, composto por cientistas de diversas áreas, não sendo vinculativos os seus pareceres e recomendações.
Resta saber se a condenação social e jurídica do incesto se refere pura e simplesmente a um “tabu social”, como pretende o Conselho de Ética ou se não configurará, antes, um normativo legal de proteção à economia familiar, um antídoto da sua asfixia ou promotor da sua respiração comunitária.
Ora, segundo o insuspeito Lévi-Strauss, a proibição do incesto entre pais e filhos, entre irmãos e, mesmo, entre primos paralelos tem vária fundamentação.
Efetivamente, a razão que Stephan Mayer aduz é rejeitada por Strauss, o que não quer dizer que não seja válida, se encarada com algum relativismo, já que o incesto entre consanguíneos pode levar à degenerescência biológica (além das teses históricas, evolucionistas e difusionistas), constituindo a sua proibição uma exigência da natureza. No entanto, nem sempre os descendentes de relação incestuosa ostentam clara ou larvarmente as possíveis e temíveis degenerescências. E não seria justo penalizar as relações sexuais, mesmo aquelas de que surgisse prole, na ignorância do parentesco. O mesmo não se pode dizer da sua continuidade após o conhecimento da situação. Assim é que o escritor de conteúdos transtemporais (e de fina ironia) Eça de Queirós, ao apresentar a relação incestuosa de Carlos da Maia com Maria Eduarda (irmãos por via paterna e materna), encara-a através do posicionamento tolerante de João da Ega na fase do desconhecimento da consanguinidade, mas verbera-a na fase em que o conhecimento unilateral da situação por Carlos não lhe trava o ímpeto fogoso pela irmã, que de nada sabia ainda.
Como quase universalmente as sociedades proscrevem o incesto também nas situações de parentesco não consanguíneo (o resultante da afinidade), Strauss infere que a proibição do incesto é, antes de mais, a conjugação das exigências da natureza com as da cultura. Isto significa haver uma singular coordenação entre universalidade e particularidade. O incesto é universalmente proibido (é óbvio que se trata de uma universalidade moral e não aritmética), embora as proibições de que é alvo sejam variáveis, em grau, de acordo com os diversos sistemas de parentesco. São assim dois os dois domínios que a universalidade e a particularidade configuram empírica e etnologicamente: a descendência e a aliança. De acordo com o ilustre cientista, a natureza atribui a cada indivíduo determinantes veiculados pelos seus pais efetivos, mas não determina em nada quais serão esses pais; quem o determina é a cultura revestida do fenómeno da aliança. Será, portanto, a troca de mulheres  (ora pacífica, como habitualmente, ora polémica, como no caso do rapto das sabinas pelos romanos) que assumirá um caráter privilegiado na comunicação dos grupos entre si, ao nível das diferentes modalidades da aliança, transformando as naturais relações de parentesco em convencionais sistemas de parentesco, sem que haja abjuração ou menosprezo dos ditames da natureza.
Chegamos, assim, ao conceito nuclear de parentesco ou átomo de parentesco – uma estrutura de quatro elementos (irmão, irmã, pai, filho) unidos por pares de oposições correlativas: colateralidade (germano – germana); aliança (esposo – esposa); filiação (progenitor – filho); e avunculado (tio materno – sobrinho). O irmão da mãe adquiria um papel fulcral na troca devido à preponderância masculina em relação à mulher. Assim, há que estabelecer a forma mais simples de reciprocidade e, a partir daí, tentar chegar às formas mais complexas que abranjam a totalidade do sistema de alianças. “O casamento entre primos cruzados revela-se, então, na troca restrita (entre dois grupos), o mais elementar sistema de troca, expresso mediante o casamento com a prima cruzada bilateral. A troca generalizada (entre mais de dois grupos) apresenta a variante do casamento com a prima cruzada patrilateral, no ciclo curto, e a variante do casamento com a prima cruzada matrilateral, no ciclo longo (troca generalizada, por excelência). A passagem da troca restrita à generalizada fundamenta-se nos pressupostos durkheimeanos do sistema: a última possui uma capacidade ilimitada de integração social, admitindo a entrada constante de novos grupos na cadeia de alianças, capacidade que a primeira não tem” (cf Luís Barreiros in Carta ACF, 2001 [Em linha]. http://acfportugal.com/cartaacf/carta18b.htm, ac 2014.09.30).
Respondendo à questão essencial, “por que razão as relações de aliança são proibidas entre primos paralelos e preferenciais ou prescritas entre cruzados”, há que afirmar, com Lévi-Strauss, que “a dicotomia dos primos é o reflexo da troca”. Tal afirmação significa que “os primos paralelos não se casam porque tal significaria a interrupção da troca (de mulheres) com a consequente eliminação da solidariedade social, enquanto o casamento entre os cruzados constitui o fenómeno empírico da afirmação desta”. (cf id et ib).
Isto compagina o postulado fundamental do sistema lévi-straussiano, segundo o qual as regras de aliança só obtêm significação na sua mútua oposição, tal como os fonemas de uma língua, conforme o discurso de Roman Jakobson. Nestes termos, os sistemas de parentesco, do mesmo modo que a linguagem, contêm uma dimensão inconsciente, que se revela mediante as três estruturas mentais básicas, constituintes da função simbólica – a exigência da regra como regra, a noção de reciprocidade e o caráter sintético da dádiva  subjacentes a qualquer sociedade que vive, fala e se relaciona em parâmetros da dialética recato / abertura, liberdade / norma, liberalidade / contenção. A verificação empírica daquelas estruturas mentais teria lugar ao nível dos fenómenos da troca de mulheres (na velha Roma, o homem ia buscar a mulher à casa paterna e conduzia-a à nova casa), de mercadorias (aqui se insere a obrigação o dote) e de palavras (o compromisso). – (cf id et ib).
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Sem aprofundar a argumentação sobre a bondade ou não da descriminalização ou da proibição de determinados comportamentos (incesto, aborto nas condições previstas na lei, adoção por casais de pessoas do mesmo sexo ou mesmo o casamento entre as preditas pessoas…), há que ter em conta alguns pressupostos: ninguém é condenável por atos cuja ilegalidade (ou, sobretudo no caso das religiões, moralidade) desconhece, se eles forem praticados na ignorância da situação que os torna ilegais ou imorais (vg incesto entre pessoas que não sabem da sua relação de parentesco), já que o juiz tem de saber aplicar a lei com base na leitura ponderada das circunstâncias em que os atos vêm sendo praticados pelo arguido; ninguém deve ter a petulância ou ceder à fraqueza de continuar uma prática que as circunstâncias lhe mostraram inequivocamente que era ilegal ou imoral; a prática, só por si, não legitima a atuação das pessoas, nem de ilegal ou imoral se converte em legal ou moral, muito embora obrigue a assumir as consequências e as responsabilidades; não é só pelo facto de uma prática ser usual há uns tempos a esta parte que a lei a deve consignar, bem como não é só pelo facto de uma prática ser apanágio de um pequeno número que ela deve ser proscrita ou intolerada; e não é só pelo facto de estar consagrado em lei que um comportamento é moral e socialmente aceitável.
Por outro lado, é preciso afirmar que o Estado e as instituições públicas e privadas têm de respeitar e garantir o exercício de todos os direitos humanos, de todas as liberdades. Porém, não têm de garantir e, muito menos, sacralizar aspetos comportamentais que não decorrem das fundas aspirações da natureza humana ou da sua manifestação vivencial (sobretudo se decorrem de ondas meramente modistas). E, sobretudo, não deve elevar a padrão de vida dominante aquilo que por lei deve permitir a grupos minoritários, no pressuposto de que a democracia não se esgota no cumprimento das opções das maiorias, mas tem de atender às justas reivindicações dos cidadãos das minorias, mesmo que emoldurados por grupos minoritários.

Sendo assim, as nossas leis teriam de ser mais discutidas, mais bem formuladas (talvez nalguns casos o Estado pudesse ir um pouco mais longe), a sociedade deveria ser, ao mesmo tempo, mais assertiva e tolerante; e as instâncias formadoras das instituições públicas e privadas, nomeadamente as Igrejas, deveriam apostar muito mais na reta formação das consciências e no desenvolvimento de uma cidadania mais saudável e mais sustentada. É a certeza de que só a verdade objetiva liberta e de que, nas atitudes e nos comportamentos que espelham valores políticos, éticos e saber científico e técnico, tem de haver modus in rebus, certi denique fines

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