quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Casos de injustiça decorrentes das falhas do Citius

Isabel Nery escreveu para a revista Visão, do dia 9 de outubro, um texto em que destaca “cinco casos da inJustiça que as falhas do Citius provocam” para demonstrar, com amostras significativas, embora não exaustivas, o caos em que a reforma da justiça lançou o país.
Alguém contesta o trabalho por desproporcionado, deontologicamente não correto ou estatisticamente não defensável, com apoio em argumentos que parecem plausíveis, mas de cuja plausibilidade se duvida.
Refere a crítica opositora que, no caso da Justiça, não se trata de uma catástrofe nacional porque alegadamente: só uma pequena percentagem dos portugueses tem processos na justiça; destes, só estariam afetados os que têm processos cíveis (os outros estariam a andar, o que é controverso); dos processos cíveis, só estariam a ser afetados os que pertencem às comarcas ainda com problemas (os das outras estariam a funcionar – Quais?); e para os que estão realmente afetados (longe de ser uma maioria – porque não?), a espera de mesmo dois meses ou mais era muito comum com o CITIUS (juízes lentos, funcionários judiciais que só andavam para a frente com os processos que queriam, advogados a usarem dilações várias para atrasar os processos...).
Também é verdade que – lamentava-se a Ministra – alguns juntavam ao volume dos processos empancados no “Citius” os processos dos Tribunais Administrativos, que nunca passaram por tal plataforma.
Admitindo que a crítica opositora a Isabel Nery era correta, o que está longe de o ser, ninguém pode tolerar que mais de 3,5 milhões de processos, com cerca de 80 milhões de documentos, se encontrassem desaparecidos, em sítio em que ninguém os encontrasse ou cuja consulta estivesse indisponível. Em vez de se avançar como justificação com os atrasos tradicionais na área da administração da justiça, devia lamentar-se o efeito nefasto da promoção da aplicação de uma reforma judiciária não testada, sem faseamento e com um processo informático que não responde às exigências da justiça em termos de melhoria, celeridade, disponibilidade, eficiência e eficácia. Mais: em vez, de meia dúzia de dias, o atraso caótico prolongou-se por dezenas.
Não sei se a colunista da Visão distorceu efetivamente a verdade, como querem alguns, ou como se diz de Telmo Pais no “Frei Luís de Sousa”, de Garrett que “não mentiu, mas não disse a verdade toda, o que é a mesma coisa”. Também não sei dizer se é deontologicamente não correta ou estatisticamente não defensável a denúncia de erros e situações não confortáveis criadas aos cidadãos pelos sistemas.
Todos sabemos que, nestas coisas, é muito difícil saber e dizer a verdade toda. Depois, o que seria deontologicamente incorreto era tentar responsabilizar, para lá dos níveis políticos e técnicos, alguém pelos erros. Quanto às estatísticas, todos sabemos como elas se mascaram, massajam e manipulam de acordo com os objetivos. Só dou como exemplo: Que interessa aos atingidos saberem que o agravamento das condições de aposentação / reforma ou o cálculo da respetiva pensão só se aplica a um universo de 15% dos aposentados /reformados. Não será de ponderar uma medida que prejudica 15% dos elementos de um conjunto de milhares de cidadãos?
Quanto à Justiça, todos sabemos que a maior parte dos cidadãos tem o acesso aos tribunais muito dificultados, em virtude das custas judiciais, imposto de justiça e honorários de advogados. No entanto, sabemos que os processos, mesmo que só os cíveis e equiparados a esses (por exemplo, trabalho, família e menores) condicionam a vida de muitas pessoas, que são pessoas independentemente do número. E estão em causas problemas como, além de muitos outros: falência e insolvência; indemnizações por cessação da relação laboral; regulação do poder parental; fiscalidade; emigração; heranças; questões atinentes a seguros, a contratos e outras situações comerciais; …
Quanto à alegada circunscrição dos processos ao cível, importa referir duas coisas: o caso de fuga de pedófilo configura matéria criminal e não meramente civil; depois, foi referido num amplo debate televisivo que só as diligências urgentes e poucas mais eram tratadas. Portanto, não é aceitável como é possível restringir tanto o âmbito dos processos afetados, esquecendo casos do âmbito penal que se arrastam como outros, os casos de violência doméstica e paradoméstica. E, sobretudo, não pode deixar de sublinhar-se a onda de destabilização psicossocial que assolou o espectro da justiça portuguesa, carregado de dúvidas, incertezas e situações caricatas – o que faz engrossar a falta de confiança no sistema de justiça.
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Mas, o que nos refere Isabel Nery, meramente a título de amostragem?
A Justiça portuguesa “parou” ou trabalha nos mínimos há mais de 40 dias e fez vítimas: de trabalhadores com salários em atraso a crianças sem regulação do poder parental, cinco casos exemplares dão conta da mão pesada da injustiça. Pedófilos não são afastados das crianças, heranças não são pagas, ficam regulações parentais por definir, indemnizações congeladas e cartas de condução cativas. Os erros vão sendo corrigidos a conta-gotas e a luz do fundo do túnel está ainda muito longe.
A colunista reporta a situação da Secretaria-Geral do serviço externo do Palácio de Justiça de Lisboa, onde antes “passava um pouco de  tudo”, quando “agora passa muito de nada”: “O meu serviço recebe de todos os tribunais. Antes do Citius, fazíamos cerca de 3 mil mandados por mês, agora fazemos uns 30. Estamos quase parados porque as novas plataformas não conseguem emitir os mandados para o serviço externo, que não é assumido como estando dentro do sistema.”. Coisa parecida sucede na Zona Centro. Até nos tribunais do Trabalho, conhecidos como sendo dos mais céleres, os julgamentos estão a ser marcados para os finais de 2015.
Mauro Paulino, psicólogo forense, coordenador do livro Psicologia, Justiça e Ciências Forenses, citado pela colunista, opina que, embora a normalidade pudesse regressar muito em breve, as consequências da paralisação já não poderiam ser evitadas. E exemplifica: “Um simples relatório médico é uma peça processual. Como não se encontram os processos nos tribunais, vão-se acumulando os papéis, em pastinhas e montinhos. Quando isto tudo estiver arrumado, os processos podem ficar incompletos ou coxos porque faltam coisas. O Citius vai ter costas largas durante muito tempo”.
Apesar de a opinião pública associar os serviços de Justiça a casos notoriamente mediáticos, a verdade é que por lá passam assuntos normalmente tão comezinhos como importantes, tais como uma carta de condução retirada como pena acessória devido à violação grave do código da estrada – e agora difícil de recuperar, mesmo depois de cumprida a pena por não se encontrarem os processos – ou a viagens com filhos para o estrangeiro.
E a título de exemplo, a corajosa colunista cita cinco casos:
– A transferência de mulher maltratada para uma Casa Abrigo, que devia ter acontecido na companhia do filho de 10 anos, mas para que tudo se desenrolasse legalmente, precisava de ser decidida a guarda provisória do menor pela mãe, o que ainda não foi possível;
– Os prejuízos já causados em caso de insolvência, dado que, enquanto não se publicarem os anúncios no Citius – único meio para o fazer – não se executam as sentenças por falta de publicação (Sem a publicação, os credores da insolvência e os trabalhadores não podem requerer o fundo de garantia salarial);
– O não recebimento de valores decorrentes de heranças (ex. Após o inventário e partilha, um irmão ficou com um prédio e o outro pagou-lhe a parte que lhe cabia em herança, mas o dinheiro continua sem chegar às mãos do primeiro);
– Mulher que não consegue emigrar com o filho, apesar do acordo com o ex-marido, por falta de homologação da parte do juiz, por não se encontrar o processo de regulação do poder parental;
– E a continuação de trabalhos de animação sociocultural junto de crianças por parte de pedófilo reiterado, porque o processo não aparece.
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Isto não passa de umas frágeis antenas que permitem captar o pouco do muito que os cidadãos sofrem, mesmo a nível do meramente cível, e do que se perde em negócio ou em economia e bem-estar. Mal empregado o dinheiro que os contribuintes são obrigados a pagar ao fisco e à prestação de serviços públicos! E tem de haver responsáveis políticos e técnicos. Quem são? Mostrem-se!

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