Isabel
Nery escreveu para a revista Visão,
do dia 9 de outubro, um texto em que destaca “cinco casos da inJustiça que as falhas do Citius provocam” para demonstrar, com
amostras significativas, embora não exaustivas, o caos em que a reforma da
justiça lançou o país.
Alguém contesta o trabalho por desproporcionado, deontologicamente
não correto ou estatisticamente não defensável, com apoio em
argumentos que parecem plausíveis, mas de cuja plausibilidade se duvida.
Refere a crítica opositora que, no caso da
Justiça, não se trata de uma catástrofe nacional porque alegadamente: só uma pequena percentagem dos portugueses
tem processos na justiça; destes, só estariam afetados os que têm processos
cíveis (os outros estariam a andar, o que é controverso); dos processos cíveis,
só estariam a ser afetados os que pertencem às comarcas ainda com problemas (os
das outras estariam a funcionar – Quais?); e
para os que estão realmente afetados (longe de ser uma maioria – porque não?),
a espera de mesmo dois meses ou mais era muito comum com o CITIUS (juízes
lentos, funcionários judiciais que só andavam para a frente com os processos
que queriam, advogados a usarem dilações várias para atrasar os processos...).
Também é verdade que – lamentava-se a Ministra – alguns juntavam
ao volume dos processos empancados no “Citius” os processos dos Tribunais
Administrativos, que nunca passaram por tal
plataforma.
Admitindo que a crítica opositora a Isabel Nery era correta, o
que está longe de o ser, ninguém pode tolerar que mais de 3,5 milhões de processos,
com cerca de 80 milhões de documentos, se encontrassem desaparecidos, em sítio
em que ninguém os encontrasse ou cuja consulta estivesse indisponível. Em vez
de se avançar como justificação com os atrasos tradicionais na área da administração
da justiça, devia lamentar-se o efeito nefasto da promoção da aplicação de uma
reforma judiciária não testada, sem faseamento e com um processo informático
que não responde às exigências da justiça em termos de melhoria, celeridade,
disponibilidade, eficiência e eficácia. Mais: em vez, de meia dúzia de dias, o
atraso caótico prolongou-se por dezenas.
Não sei se a colunista da Visão
distorceu efetivamente a verdade, como querem alguns, ou como se diz de Telmo Pais
no “Frei Luís de Sousa”, de Garrett que “não mentiu, mas não disse a verdade
toda, o que é a mesma coisa”. Também não sei dizer se é deontologicamente não
correta ou estatisticamente não defensável a denúncia de erros e situações não confortáveis
criadas aos cidadãos pelos sistemas.
Todos sabemos que, nestas coisas, é muito difícil saber e
dizer a verdade toda. Depois, o
que seria deontologicamente incorreto era tentar responsabilizar, para lá dos
níveis políticos e técnicos, alguém pelos erros. Quanto às estatísticas, todos
sabemos como elas se mascaram, massajam e manipulam de acordo com os objetivos.
Só dou como exemplo: Que interessa aos atingidos saberem que o agravamento das
condições de aposentação / reforma ou o cálculo da respetiva pensão só se aplica
a um universo de 15% dos aposentados /reformados. Não será de ponderar uma
medida que prejudica 15% dos elementos de um conjunto de milhares de cidadãos?
Quanto à Justiça, todos sabemos que a maior parte dos
cidadãos tem o acesso aos tribunais muito dificultados, em virtude das custas
judiciais, imposto de justiça e honorários de advogados. No entanto, sabemos
que os processos, mesmo que só os cíveis e equiparados a esses (por exemplo, trabalho,
família e menores) condicionam a vida de muitas pessoas, que são pessoas independentemente
do número. E estão em causas problemas como, além de muitos outros: falência e
insolvência; indemnizações por cessação da relação laboral; regulação do poder parental;
fiscalidade; emigração; heranças; questões atinentes a seguros, a contratos e
outras situações comerciais; …
Quanto à alegada circunscrição dos processos ao cível,
importa referir duas coisas: o caso de fuga de pedófilo configura matéria criminal
e não meramente civil; depois, foi referido num amplo debate televisivo que só
as diligências urgentes e poucas mais eram tratadas. Portanto, não é aceitável
como é possível restringir tanto o âmbito dos processos afetados, esquecendo
casos do âmbito penal que se arrastam como outros, os casos de violência doméstica
e paradoméstica. E, sobretudo, não pode deixar de sublinhar-se a onda de
destabilização psicossocial que assolou o espectro da justiça portuguesa,
carregado de dúvidas, incertezas e situações caricatas – o que faz engrossar a
falta de confiança no sistema de justiça.
***
Mas, o que nos refere Isabel Nery, meramente a título de
amostragem?
A Justiça portuguesa “parou” ou trabalha nos mínimos há mais de 40 dias e
fez vítimas: de trabalhadores com salários em atraso a crianças sem regulação do
poder parental, cinco casos exemplares dão conta da mão pesada da injustiça. Pedófilos não são afastados das crianças, heranças não são pagas, ficam regulações
parentais por definir, indemnizações congeladas e cartas de condução cativas. Os
erros vão sendo corrigidos a conta-gotas e a luz do fundo do túnel está ainda
muito longe.
A colunista
reporta a situação da Secretaria-Geral do serviço externo do Palácio de Justiça
de Lisboa, onde antes “passava um pouco de tudo”, quando “agora passa
muito de nada”: “O meu serviço recebe de todos os tribunais. Antes do Citius, fazíamos cerca de 3 mil mandados
por mês, agora fazemos uns 30. Estamos quase parados porque as novas
plataformas não conseguem emitir os mandados para o serviço externo, que não é
assumido como estando dentro do sistema.”. Coisa parecida sucede na Zona
Centro. Até nos tribunais do Trabalho, conhecidos como sendo dos mais céleres,
os julgamentos estão a ser marcados para os finais de 2015.
Mauro
Paulino, psicólogo forense, coordenador do livro Psicologia, Justiça e Ciências Forenses, citado pela colunista, opina
que, embora a normalidade pudesse regressar muito em breve, as consequências da
paralisação já não poderiam ser evitadas. E exemplifica: “Um simples relatório
médico é uma peça processual. Como não se encontram os processos nos tribunais,
vão-se acumulando os papéis, em pastinhas e montinhos. Quando isto tudo estiver
arrumado, os processos podem ficar incompletos ou coxos porque faltam coisas. O
Citius vai ter costas largas durante
muito tempo”.
Apesar de a opinião
pública associar os serviços de Justiça a casos notoriamente mediáticos, a
verdade é que por lá passam assuntos normalmente tão comezinhos como importantes,
tais como uma carta de condução retirada como pena acessória devido à violação grave
do código da estrada – e agora difícil de recuperar, mesmo depois de cumprida a
pena por não se encontrarem os processos – ou a viagens com filhos para o
estrangeiro.
E a título
de exemplo, a corajosa colunista cita cinco casos:
– A
transferência de mulher maltratada para uma Casa Abrigo, que devia ter
acontecido na companhia do filho de 10 anos, mas para que tudo se desenrolasse legalmente,
precisava de ser decidida a guarda provisória do menor pela mãe, o que ainda
não foi possível;
– Os
prejuízos já causados em caso de insolvência, dado que, enquanto não se
publicarem os anúncios no Citius –
único meio para o fazer – não se executam as sentenças por falta de publicação (Sem
a publicação, os credores da insolvência e os trabalhadores não podem requerer
o fundo de garantia salarial);
– O não recebimento
de valores decorrentes de heranças (ex. Após o inventário e partilha, um irmão
ficou com um prédio e o outro pagou-lhe a parte que lhe cabia em herança, mas o
dinheiro continua sem chegar às mãos do primeiro);
– Mulher que
não consegue emigrar com o filho, apesar do acordo com o ex-marido, por falta de
homologação da parte do juiz, por não se encontrar o processo de regulação do
poder parental;
– E a
continuação de trabalhos de animação sociocultural junto de crianças por parte
de pedófilo reiterado, porque o processo não aparece.
***
Isto não passa de umas frágeis antenas que permitem captar o pouco do muito
que os cidadãos sofrem, mesmo a nível do meramente cível, e do que se perde em
negócio ou em economia e bem-estar. Mal empregado o dinheiro que os
contribuintes são obrigados a pagar ao fisco e à prestação de serviços
públicos! E tem de haver responsáveis políticos e técnicos. Quem são?
Mostrem-se!
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