Além
de recorrente, a imagem da vinha é tão significativa na literatura eclesiástica
como na literatura bíblica. E a liturgia dos três últimos domingos glosa a História
salvífica pelo tema da vinha.
Bento
XVI, quando se apresentou à multidão para a abençoar, após o momento da sua
eleição para o Sumo Pontificado, começou por dizer “os
Senhores Cardeais elegeram-me, simples e humilde trabalhador na vinha do
Senhor”.
Lembro-me de que um padre que acompanhava a visita de estudo de
agricultores portugueses a Bordeaux
se quis apresentar como agricultor ante um dos guias dum centro de pesquisa
agrícola. Reparando que ele estranhava tal apresentação, afiançou, “j’ai trois vignes”. Porém, o guia não de
seu por vencido e retorquiu, “Oui, trois
vignes, mais du Seigneur!”.
Por sua vez, o Papa, na homilia da celebração eucarística da
abertura da XIII assembleia extraordinária do Sínodo dos Bispos, no passado dia
5 de outubro, também comentou as leituras que preencheram o tempo dedicado à
Liturgia da Palavra salientado “a imagem da vinha” a que recorreu tanto o
profeta Isaías (cf Is 5,1-7) como os evangelhos
sinóticos (cf Mt 21,33-43; Mc12,1-12; Lc 20,9-19). Segundo Francisco,
“a vinha do Senhor é o seu ‘sonho’, o projeto que Ele cultiva com todo o seu
amor, como um agricultor cuida do seu vinhedo”. Também no Cântico dos Cânticos
ecoa o cenário da vinha florida que as raposas pequenas devastam (cf Cant 2,13.15).
Isaías
coloca na boca da esposa bíblica o apólogo da vinha, um cantar de amor do amado
à sua vinha. A vinha estava numa fértil colina. O amado, qual agricultor
vinhateiro cuidadoso, lavrou-a e limpou-a das pedras e plantou-a de cepas
escolhidas. No meio levantou uma torre e escavou um lagar. A torre serve de
ponto de vigia e de guarda da vinha contra os possíveis invasores, mas também é
o marco de referência da propriedade e prestígio do amado. O lagar é o lugar da
metanoia, transformação dos frutos da
vinha no mosto da doçura e do vinho da abundância, da consolação e da
saciedade. É no lagar que a textura transitória da beleza da uva que enche o
olhar ganha a perpetuidade do sabor que faz a miscigenação da acidez com o
sabor frutado.
Mateus
coloca o teor do apólogo da vinha nos lábios de Cristo, já não como canto de
amor, mas como parábola. Em vez do amado (Deus), temos a figura do proprietário (Deus). Mas este proprietário
é tão zeloso como o amado apresentado por Isaías. E, para lá dos adereços
referidos pelo profeta, Jesus menciona a sebe (que Isaías pressupõe) com que o proprietário
cercou sua vinha.
Se
Isaías acentua o tempo de espera paciente com que o amado aguardava que a vinha
produzisse as uvas, Cristo salienta o facto de o proprietário a ter arrendado a
uns vinhateiros, para que dela cuidassem e partiu para longe. Isaías destaca o
investimento que o amado fez nas cepas, cepas escolhidas. Ora se a vinha do Senhor é a casa de Israel, o
povo escolhido, hoje a Igreja – os homens
de Judá, cada um dos membros da Igreja, novo Israel, são a plantação escolhida. Destaca-se o
cuidado com que Deus, o amado, escolheu cada um de nós (“Fui eu que vos escolhi a
vós e vos destinei a ir e a dar fruto.” – Jo 15,16). Mateus, por sua vez,
sublinha o arrendamento da vinha, o que significa a confiança que Deus coloca
nos homens que chama ao seu serviço, a atuação de Deus através dos seus
cooperadores.
***
Francisco
amassa na mesma fornada a videira e a vinha e diz-nos que “a videira é uma
planta que requer muitos cuidados” e a vinha é o sonho de Deus. E “o ‘sonho” de
Deus é o seu povo”: Ele o plantou e o cultiva (“O meu Pai é p agricultor”. – Jo 15,1), com amor paciente e
fiel, para que se torne “um povo santo, um povo que produza muitos e bons
frutos de justiça”.
Este
cuidado com a vinha e com a videira traz-me à memória a Bucólica, de Miguel Torga:
A vida é feita
de nadas
De grandes
serras paradas
À espera de
movimentos
De searas
onduladas
Pelo vento;
|
De casa de
moradia
Caídas e com
sinais
De ninhos que
outrora havia
Nos beirais;
|
De poeira;
De sombra de
uma figueira;
De ver esta
maravilha:
Meu Pai erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.
|
Os
dois últimos versos aproximam o cuidado carinhoso da mãe e o do pai e juntam a
videira frágil que necessita de ser erguida ou orientada para o alto com o
mesmo desvelo que a trança da filha precisa dos dedos cheios de magia da mãe.
Não poderá este segmento poético transportar-nos para as duas dimensões do
vulto de Deus: a paterna tão amplamente celebrada, e a materna, tanto do gosto
de João Paulo I e do teólogo Leonardo Boff?
Esta
dimensão materna do rosto de Deus tem raízes no Evangelho de Mateus e no de
Lucas: “Quantas vezes Eu quis reunir os teus filhos como a galinha acolhe os
seus pintainhos debaixo das suas asas, mas tu não o quiseste!” (Mt 23,37; Lc 13,35).
Cristo,
no Evangelho de João, no capítulo 15, fala da alegoria da videira e da
agricultura do Pai para explicitar a sua relação com o Pai e a nossa relação
com o próprio Cristo: “Eu
sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor. Todo o ramo que, estando em
mim, não dá fruto, ele corta; e todo que dá fruto Ele poda para que dê mais
fruto ainda.” (vv 1-2). Também o Pai trata com desvelado carinho o Filho. E a nossa
relação com Cristo consiste na união e na frutificação com Ele e através d’Ele:
“Eu sou
a videira, vós sois os ramos. Se alguém permanecer em mim e eu nele, esse dá
muito fruto; pois sem mim vós não podeis fazer coisa alguma. Se alguém não
permanecer em mim, será como o ramo que é jogado fora e seca. Tais ramos são
apanhados, lançados ao fogo e queimados. Se vós
permanecerdes em mim e as minhas palavras permanecerem em vocês, pedireis o que
quiserdes, e vos será concedido. Meu Pai é glorificado pelo facto de vós dardes
muito fruto; e assim sereis meus discípulos.” (vv 5-8).
O
bispo de Roma reconhece que “tanto na antiga profecia como na parábola de
Jesus, o sonho de Deus fica frustrado”. Segundo Isaías, a vinha, tão amada e
cuidada, apenas “produziu agraços” (cf Is 5,2.4), ao passo que Deus esperava a floração olorosa
e os frutos, as uvas que dariam o vinho das carícias (cf Cant 1,1-2). Transferindo a
metáfora para o sentido da mensagem, Deus, o Amado “esperava a justiça – lamenta-se
o Papa – e eis que só há injustiça; esperava a retidão, e eis que só há
lamentações (cf
Is 5,7). Por
isso, a vedação ser-lhe-á tirada e ela ficará devastada, devassada e
espezinhada.
É
preciso atentar em que a esposa que entoa o cantar do seu amado será
infelizmente a mesma que não sintonizou em cuidado e trabalho com o cuidado e
trabalho do esposo, do amado. O povo de Israel foi duramente castigado, como a
Igreja, por vezes, fica devastada pelas suas incúrias e os seus membros passam
tantas vezes pela perseguição, que, sendo pela fé, redunda em martírio, mas,
sendo por abuso, excesso ou desvio, redunda em desgraça pessoal ou
coletiva.
Porém,
no Evangelho, são os vinhateiros em quem o seu senhorio confiou que arruínam o
projeto do Senhor: “não trabalham para o Senhor, mas só pensam nos seus
interesses”. Através da parábola, o Mestre dirige-se aos sumos sacerdotes e aos
anciãos do povo – isto é, aos “sábios”, à classe dirigente. Foi a eles, de modo
particular, que Deus confiou o seu “sonho”: não já a vinha no sentido material,
mas “o seu povo, para que o cultivem, cuidem dele e o guardem dos animais
selvagens”. Jesus queixa-se de que aqueles vinhateiros, que eram arrendatários,
quiseram tornar-se donos. Em vez de “líderes do povo”, para o cultivo da “vinha
com liberdade, criatividade e diligência”, apoderaram-se dela, movidos pela
“sua ganância e soberba”. A tentação da ganância de dinheiro e de poder vem de
longe e perdura. “Encontramo-la – reconhece Francisco – na grande profecia de
Ezequiel sobre os pastores (cf. cap. 34). E, para saciar esta ganância, os maus
pastores – explica o Papa – carregam sobre os ombros do povo pesos
insuportáveis, em que eles próprios não põem nem um dedo para os deslocar (cf. Mt 23,4).
Segundo
o Evangelho, os vinhateiros, para poderem assenhorar-se da vinha, foram
espancando e matando os sucessivos emissários do Senhor, nomeadamente os
profetas; e, quando deram conta de que Ele tinha mandado o próprio Filho,
sentiram que era o herdeiro, mas não O reconheceram nem O aceitaram; deram-Lhe
a morte (cf
Mt 21,40; Jo 1,11).
Diz
o Papa que todos, mas em especial os pastores, são chamados a trabalhar na
vinha e que “nós somos todos pecadores e também nos pode vir a tentação de ‘nos
apoderarmos’ da vinha, por causa da ganância” e frustrar o sonho de Deus pela
hipocrisia.
Para
se realizar o sonho de Deus, é necessário cumprir a Sua vontade, indo
efetivamente para a vinha (um dos filhos prometeu ao Pai ir e não foi) e não dizendo que se
vai para lá – e o segundo disse que ia, mas não foi (cf Mt 21,28-31). Mais: é necessário ir
trabalhar para a vinha independentemente do momento em que se seja mandado (cf Mt 20,1-16), chamado ou convidado –
e não ter a inveja de quem recebe a mesma recompensa trabalhando menos tempo
(desde que trabalhe o tempo todo em que lá está).
Por
isso, Francisco, do alto da sua humildade, bem próximo dos padres sinodais,
postula a guia do Espírito Santo, o Espírito que dá “a sabedoria, que supera a
ciência, para trabalharmos generosamente com verdadeira liberdade e humilde
criatividade”. E é mais explícito quando explica:
“Para cultivar e guardar
bem a vinha, é preciso que os nossos corações e as nossas mentes sejam
guardados em Cristo Jesus pela ‘paz de Deus que ultrapassa toda a inteligência’
(Fl 4,7). Assim, os nossos pensamentos e
os nossos projetos estarão de acordo com o sonho de Deus: formar para Si um
povo santo que Lhe pertença e produza os frutos do Reino de Deus (cf. Mt 21,43)”.
Caso
contrário o Reino de Deus nos será tirado e confiado a um povo que lhe produz
aos frutos (cf
Mt 21,43). A
História da Igreja bem o atesta nas comunidades cristãs outrora florescentes e
hoje desaparecidas ou na transferência da vivência cristã, que modelou esta
Europa velha e cansada, para outras paragens para as quais o viver cristão
apresenta a novidade e a frescura!
A
vinha do Senhor é a Casa de Israel (que Deus visite e renove – cf Sl 79,15-17) e as suas cepas são os
homens de Judá.
E,
se alguns se se tentam a tornarem-se donos, muitos se tornam servos dedicados
sem outra recompensa que não a do Reino dos Céus. Perdão, pois, para os donos
indevidos e honra e glória aos trabalhadores incansáveis porque esperam
alcançar. E “alcança quem não cansa”.
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