sábado, 4 de outubro de 2014

São Francisco de Assis, o irmão universal

Francisco nasceu entre 1181 e 1182, em Assis, província da Umbria, no centro da Itália. O pai, rico e próspero comerciante de tecidos, viajava frequentemente em negócios principalmente para França, donde trazia a maior parte de suas mercadorias. E de lá trouxe também a sua bela e bondosa esposa, Dona Pica, que se tornou uma terna mãe.
O poverello sempre nutriu uma especial atenção e carinho pela relação materna em geral. A grande ligação espiritual a Maria, mãe de Jesus, é mais um sinal do seu particular respeito e amor pelas mães de todo o mundo. Não raro aduzia a relação materna como exemplo de Amor nos seus diálogos e pregações. Já, a respeito do pai, apesar do amor e respeito que nutria por ele, a relação não foi exemplar a ponto de conhecer episódios desagradáveis, nomeadamente quando Pietro prendeu Francisco na cave da casa para que ele não pudesse sair para as suas meditações, visitar as leprosarias e praticar a caridade junto dos mais desfavorecidos. É também natural que a relação de pai e filho tenha sido afetada pelas longas ausências de Pietro.
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São premonitórias do futuro estilo de vida de Francisco as circunstâncias do seu nascimento.
Chegado o momento do parto, Dona Pica assistida por várias pessoas que ajudavam, teve muitas dificuldades e o nascimento da criança parecia complicar-se.  Quando, entretanto, alguém bate à porta, a criada vai atender e depara-se com um mendigo que lhe transmite que a senhora da casa deverá dar à luz no estábulo da casa, junto aos animais. Dona Pica Bernardone, ao saber do sucedido, pediu às criadas que a levassem ao estábulo. Lá chegada, deu-se o nascimento da criança e foi-lhe dado o nome de João. Mas o pai, quando regressou, em homenagem à França, que admirava, mudou o nome do filho para Francisco.
O estábulo da casa de Francisco acabou por ser transformado numa pequena capela, muito visitada pelos crentes e turistas de todo o mundo. Significativo foi o episódio do nascimento de Francisco, que, apesar de filho de família rica e abastada, nasceu junto aos animais, na palha do estábulo tal como Jesus.
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Francisco, entretanto, cresceu e tornou-se o líder da juventude de Assis. Alegre, amante da música e festas, cheio de dinheiro, tornou-se rapidamente um ídolo entre os companheiros. Adorava banquetes, noitadas de diversão e cantar serenatas para as damas da cidade. Porém, a Itália, como toda a Europa da época, vivia uma fase bastante conflituosa da sua história, marcada pela passagem do sistema feudal (contraditoriamente com base na estabilidade, servidão e relações desiguais entre vassalos e suseranos) para o sistema burguês, com o aparecimento das “comunas” livres (pequenas cidades), com o seu comércio, artesanato e pequenas indústrias. Assim, estavam em transformação as relações sociais e de poder. O poder dos senhores feudais é questionado e enfrentado pelos novos senhores, originários das comunas, a maioria deles constituída por comerciantes muito abastados, a exemplo de Pedro Bernardone.
As frequentes guerras e batalhas entre os senhores feudais e as emergentes comunas despertaram no jovem ambicioso (como os da sua época) o desejo de conquistar, além da fortuna, também a fama e o título de nobreza. Para tal, fazia-se necessário tornar-se herói numa dessas batalhas. Assim, no ano de 1201, incentivado pelo pai, que também ansiava pela fama e nobreza, Francisco partiu para mais uma guerra que os senhores feudais, localizados na vizinha cidade de Perúsia, haviam declarado à Comuna de Assis.
Durante um dos combates, numa tarde de inverno, Francisco caiu prisioneiro, foi levado para a prisão de Perúsia, onde permaneceu por longos e gelados meses. Este jovem cheio de vitalidade suportava dolorosamente a inércia da prisão. Somente o seu espírito alegre, o seu temperamento descontraído e o seu gosto pela música o salvaram do desânimo e lhe permitiram encontrar forças até para reconfortar e reanimar a seus companheiros de infortúnio.
Ao término de um ano, foi solto da prisão, retornando para Assis, onde se entregou novamente aos saudosos divertimentos da juventude e às atividades na casa comercial de seu pai.
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A insalubridade climática da prisão, agravada pelos prolongados meses de inverno, havia-lhe enfraquecido o organismo, originando para agora uma grave enfermidade. Após longos meses de sofrimento, sem poder sair da cama, finalmente conseguiu melhoras. Ao levantar-se, porém, já não era o mesmo Francisco. Sentiu-se diferente, sem compreender porquê. A verdade é que a humilhação da prisão, somada ao enfraquecimento causado pela doença, lhe provocou profundas mudanças. Foi esta a via que Deus escolheu para entrar mais profundamente em sua vida. Já não sentia prazer nas cantigas e banquetes na companhia dos amigos. Começou a perceber a leviandade dos prazeres terrenos, embora ainda não buscasse a Deus.
Francisco, embora houvesse perdido o gosto pelos prazeres mundanos, conservava ainda a ambição da fama. Por isso, sonhava com a glória das armas e da nobreza, que se conquistavam nos campos de batalha. Por consequência, aderiu prontamente ao exército que o Conde Gentile de Assis organizava para ajudar o Papa Inocêncio III na defesa dos interesses da Igreja. Contou para isso com a aprovação entusiasmada do pai, que vislumbrava aí a oportunidade tão longamente esperada de enobrecer a família. Deus, porém, reservava-lhe as suas surpresas.
Antes de partir, num impulso de generosidade, Francisco cedeu a um amigo mais pobre os ricos trajes e a armadura caríssima que havia preparado para si, o que lhe valeu um sonho estranho: a visão de um castelo repleto de armas destinadas a ele e aos companheiros. Francisco não entendeu o significado do sonho. Pensou que talvez estivesse destinado a ser um guerreiro famoso! O facto é que o sonho não lhe saía do pensamento.
Ao chegar ao povoado de Espoleto, Deus tornou a falar-lhe em sonhos, desta vez com maior clareza, de modo que ele reconheceu a voz divina que o interpelava: “A quem queres servir, ao Servo ou ao Senhor?”. Francisco replicou prontamente: “Ao Senhor, é claro!”. Mas a voz instou: “Porque insistes então em servir ao servo? Se queres servir ao Senhor, retorna a Assis. Lá te será dito o que deves fazer!”. Francisco entendeu, então, que estava a procurar apenas a glória humana e passageira.
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Desafiando os sorrisos de desdém dos vizinhos e a cólera de Bernardone, contrariado em seus projetos, Francisco retornou a Assis, dando prova da sua energia de caráter e do seu valor de ânimo – virtudes que se mostrariam valiosas mais tarde nos percalços do novo caminho. Começou a longa busca e a longa espera. Sentia um vazio dentro de si, que as festas, farras e guerras não conseguiam preencher. Estava inquieto e insatisfeito, mas não sabia bem porquê.
Em vão tentaram os amigos atraí-lo de novo às diversões, banquetes e trovas. Até o fizeram coroar, numa festa, como o Rei da Juventude, mas nada o comovia. A sua busca era outra.
Para tentar desvendar o desígnio de Deus, passou a entregar-se à oração e à meditação. Percorria os campos e florestas em busca de lugares mais tranquilos, de respostas para as dúvidas e inquietações. Para ele, tudo passou a ter outro sentido.
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Em busca de respostas, decidiu viajar para Roma (era o ano de 1205). Visitou a tumba do Apóstolo São Pedro e, indignado pelo que viu, exclamou: “É uma vergonha que os homens sejam tão miseráveis com o Príncipe dos Apóstolos!”. E jogou um grande punhado de moedas de ouro, contrastando com as escassas esmolas de outros fiéis menos generosos. A seguir, trocou os seus ricos trajes com os de um mendigo e fez sua primeira experiência de viver na pobreza. Voltou a Assis, à casa paterna, entregando-se ainda mais à oração e ao silêncio. A família e os amigos estavam preocupados com o jovem: O que lhe estaria a acontecer?
Em 1206, cavalgando pelas campinas de Assis, viu um leproso, que sempre lhe parecera um ser horripilante, repugnante à vista e ao olfato, cuja presença sempre lhe havia causado invencível nojo. Porém, como que movido por uma força superior, apeou-se do cavalo, e, colocando naquelas mãos sangrentas o seu dinheiro, aplicou ao leproso um beijo de amizade. Talvez a motivação para este nobre e significativo gesto tenha sido a recordação daquela frase do Evangelho: “Tudo o que fizerdes ao menor de meus irmãos é a mim que o fazeis” (cf Mt 10,42; 25,40). Evocando depois esse momento, confessa: “O que antes me era amargo, mudou-se em doçura da alma e do corpo. A partir de então, pude afastar-me do mundo e entregar-me a Deus”.
Pouco depois, entrou para rezar e meditar na capela de São Damião, semidestruída pelo abandono. Ajoelhado em oração aos pés de um crucifixo bizantino, que a piedade popular ali venerava, ouviu uma voz saída do crucifixo: “Francisco, vai e reconstrói a minha Igreja, que está em ruínas”. Não percebendo o alcance dessa ordem e vendo que aquela igrejinha carecia de urgente reforma, Francisco regressou a Assis, tomou da loja paterna um grande fardo de fina fazenda e vendeu-a. Retornando, colocou o dinheiro nas mãos do cura de São Damião, oferecendo-se para o ajudar na reconstrução da capela com as próprias mãos.
Conhecendo o caráter de Pedro Bernardone, é fácil imaginar a sua cólera ao ver desfalcada a casa comercial e perdido o seu dinheiro. Não bastava já o desfalque que dava ao entregar gratuitamente mercadorias e alimentação para os “vagabundos” necessitados? E Francisco teve que se esconder da fúria paterna. Mas, um dia, saiu a mendigar porta a porta em Assis. Para Bernardone isso já era demais! Se o filho havia perdido o juízo, era necessário encarcerá-lo! Assim, Francisco experimentou mais uma vez o cativeiro, desta feita num escuro cubículo debaixo da escada da casa paterna. Pelos vistos, alguns dias depois, movida pela compaixão, a mãe abriu-lhe às escondidas a porta e deixou-o partir livremente para seguir o seu destino. 
Nos fins de 1206, Pedro Bernardone, convicto de que nem as razões nem a força torciam o ânimo de Francisco, decidiu recorrer ao Bispo, instaurando-se um julgamento como nunca aconteceu na história de outro santo. O palco do julgamento foi a própria Praça Comunal de Assis junto à igreja de Santa Maria e à casa do bispo, bem à vista de todos.
Bernardone exigiu que Francisco lhe devolvesse tudo quanto recebera dele. Ciente da sentença de Cristo: “Quem ama o pai ou a mãe mais que a Mim, não é digno de Mim” (cf Mt 10,37; 19,29), sem vacilar despojou-se de tudo até à nudez, jogou os trajes e o dinheiro aos pés do pai, e exclamou: “Até agora chamei pai a Pedro Bernardone. Doravante não terei outro pai, senão o Pai Celeste”. O Bispo, então, acolheu-o, envolvendo-o com o seu manto. Dali em diante, cantando “Sou o arauto do Grande Rei, Jesus Cristo”, afastou-se da família e amigos e entregou-se ao serviço dos leprosos, tratando-lhes as feridas, e ao restauro das capelas e oratórios que cercavam a cidade. Cada dia percorria as ruas mendigando o pão e convidando as pessoas para que contribuíssem com pedras e trabalho na reconstrução das “Casas de Deus”, que em ruínas.
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Recebia apoio e incentivo, de uns; e o desprezo e a zombaria, de muitos. No entender da maioria, o filho de Bernardone havia perdido completamente o juízo. Mais de uma vez se sentiu tentado a voltar atrás, quando chegava à porta de seus antigos amigos; mas saía vitorioso nessas lutas entre o orgulho humano e o próprio ideal. Já alguns começaram a reconhecer nele traços do santo, embora ele mesmo ainda não conhecesse claramente sua vocação.
Estava a terminar a restauração da última igrejinha da redondeza, a capelinha de Santa Maria dos Anjos e perguntava-se o que faria a seguir. Que mais lhe pediria Deus? Não havia entendido ainda que a Igreja que devia restaurar não era a de pedra, mas a própria Igreja de Cristo, enfraquecida pelas divisões, heresias e pelo apego dos líderes às riquezas e ao poder.
Devia ser aquele o ano de 1209. Certo dia, Francisco escutou, durante a missa, a leitura do Evangelho: era passagem em que Cristo instruía os Apóstolos sobre o modo de ir pelo mundo, “sem túnicas, sem bastão, sem sandálias, sem provisões, sem dinheiro no bolso” (Lc 9,3). Tais palavras encontraram eco em seu coração e foram para ele como uma luz intensa. E exclamou, cheio de alegria: “É isso o que eu quero! É isso que desejo de todo o coração!”. E sem demora começou a viver, como o faria em toda a sua vida, a pura letra do Evangelho. Repetia sempre para si e, mais tarde, também para os companheiros: “A nossa regra de vida é viver o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo”! A partir daquele dia, Francisco iniciou sua vida de pregador itinerante, percorrendo as localidades vizinhas e pregando, em palavras simples, o Evangelho de Cristo. Muitos começaram, enfim, a compreender o sentido dessa vida e manifestaram o desejo de segui-la. O primeiro foi um homem rico de Assis, Bernardo de Quintaval. Ao perguntar a Francisco: “Que devo fazer para seguir-te?”, este decidiu, como era hábito, recorrer ao Evangelho para que o Mestre desse a resposta. De manhã, bem cedo, foram ambos à missa. Pelo caminho juntou-se-lhes Pedro de Catânia, doutor em Direito e novo companheiro. Por três vezes abriram o Evangelho, e as três respostas que encontraram foram: “se queres ser perfeito, vende o que tens e dá-o aos pobres. Depois vem, e segue-me” (Mt 19,21); “não leveis nada pelo caminho, nem bastão, nem alforge, nem uma segunda túnica” (Lc 9,3); “se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e siga-me” (Mt 16,24).
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Estava inaugurado o franciscanismo que havia de contagiar o mundo pelo amor à pobreza, pela humilde irmandade com as criaturas (natureza, sol, fogo, água, burro, cão, lobo…o homem), pela simplicidade evangélica, pela postura da paz, pelo bem. Passou a estar inscrito nas casas, aldeias e ruas a representação do presépio simples de Deus; e nas estrelas o dia 4 de outubro, o dia deste irmão universal, que a excessiva atenção aos irracionais (que devem ser estimados e guardados) transformou levianamente em “dia do animal”.

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