segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Humor Negro, se não se tratasse de coisas sérias!

Não é a primeira vez que a sociedade portuguesa pode registar afirmações e decisões disparatadas de quem de direito.
Já sabíamos que as eleições são subvalorizadas por alguns dos seus atores mais diretos. Não se têm ouvido enunciados do género “Que se lixem as eleições”, “nós não somos eleitoralistas”…? A cada passo se colocam hipóteses de antecipação de eleições ou se diz que elas pouco mudarão na correlação de forças políticas.
Chegaram governantes de renome a sugerir como solução o surto emigratório e a pedir que não sejamos piegas… O caríssimo Primeiro-Ministro declarou em seu discurso distenso que os problemas educacionais não se resolvem aumentando a “salsicha da educação”. Haja freio no discurso público por parte de quem, muito embora não tenha de renunciar ao alinhamento partidário, tem de constituir-se em referência para a sociedade. A educação não é um ensanduichado, não é uma gulodice, não é uma refeição ligeira. Constitui, sim, um postulado e um corolário da liberdade, um direito fundamental, um dever axiológico. É uma tarefa de melindre, dedicação, rigor e exigência do melhor que a vida tem: “a vida é feita… / de ver esta maravilha: /Meu Pai a erguer uma videira / como uma Mãe que faz a trança à filha” (Miguel Torga). Bem sabemos quanto e como as famílias sensatas investem na educação dos filhos (e quase todas fazem o que podem), como sabemos quão grande é a dedicação e o profissionalismo da larguíssima maioria dos educadores e professores, que a sociedade reconhece, embora nem sempre os governantes o tenham em conta.
Há uns meses a esta parte, um tribunal judicial de segunda instância desvalorizou o facto de um indivíduo ter chamado palhaços a membros de uma junta de freguesia. Era uma questão de semântica!
Também não há muito tempo, outro tribunal judicial de segunda instância considerou que o facto de um determinado trabalhador ter sofrido um acidente em serviço com sinais de embriaguez não constituía causa suficiente para despedimento; até poderia tal situação ser motivo para desempenho mais alegre e mais motivado (estou a citar de cor, sem rigor, mas sem plágio).
É óbvio que não me compete ajuizar sobre o sentido das sentenças ou acórdãos judiciais, conforme o caso. Mas é-me lícito e legítimo considerar a enormidade dos comentários que os meritíssimos tecem a propósito do sentido que deram às suas doutas decisões. A administração da justiça, além de configurar uma modalidade de supremo valor no direito, é o exercício do poder soberano em nome do povo, é um ato eminentemente social. Ora, sendo assim, não podem os magistrados banalizar um valor, superficializar o exercício do poder soberano (bem bastam os ziguezagues de deputados ou de outros governantes, que não detêm aquela preparação científica e técnica que supostamente adorna a figura dos magistrados), como não podem emitir sinais errados para a sociedade, que servem e, de certo modo, representam.
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Nos últimos dias, fomos surpreendidos por três ocorrências, duas atinentes à educação e uma respeitante à justiça.
No âmbito da educação, um secretário de Estado apresentou o seu pedido de demissão por alegadamente ter plagiado segmentos textuais de notáveis académicos. Ora, sem descurar a gravidade do plagiato (de cuja existência técnica aliás parecem subsistir dúvidas), o que mais me irritou foi o insulto que ele e os putativos autores dos textos alegadamente plagiados atiraram sobre a classe dos professores: a função docente não tem tradição deontológica. Eles, académicos e políticos, não conhecem a legislação abundantemente produzida desde largas décadas, os pressupostos da formação inicial dos professores e toda a literatura que enforma a condução dos processos de ensino-aprendizagem. Pior do que o plágio é a invenção difamatória, a ficção sobre a contradição do que efetivamente existe, embora talvez não sob o figurino que se ajuste ao limitado quadro mental de quem profere determinados juízos sintéticos.
Ainda no setor educativo, querem alguns diretores de escola / agrupamento de escolas colmatar os erros na colocação de professores, que deram origem a atrasos significativos no início de aulas em algumas disciplinas ou em alguns grupos-turma (no 1.º CEB). E pensaram aproveitar, uns, a interrupção das atividades letivas (Natal e Páscoa), outros, prolongar o ano letivo, e outros ainda retirar horas das disciplinas que não são objeto de prova final /exame nacional em prol das disciplinas ditas fundamentais, vulgo, Português e Matemática.
Sempre entendi que o ano letivo estivesse programado de modo que houvesse tempo suficiente para a lecionação dos programas das diversas disciplinas, sobrando tempo considerável para reforço das aprendizagens, pelo que não seria de pensar de imediato em compensações antes de estabilizar o processo de ensino-aprendizagem. Depois, as escolas dispõem de meios de melhoria das aprendizagens, nomeadamente através de apoios educativos. Se não são suficientes, o MEC que seja mais generoso no alargamento do chamado crédito horário. Demais, gostarei de perguntar que fariam se viesse, por exemplo, um nevão de quinze dias, um tufão de consequências sérias ou uma prolongada greve de transportes a sério.
Porém, desviar horas de outras disciplinas – quais parentes pobres do sistema educativo – em favor das ditas fundamentais significa amachucar o currículo e subalternizar a formação integral do aluno; significa sobrevalorizar as provas finais /exames nacionais, que têm um peso de 30% no todo avaliativo (é como estudar só para testes); mas, ainda pior, parece assemelhar a escola curricular à escola de condução, que, salvo honrosas exceções, prepara não para conduzir, mas para passar no exame.
Também diretores há que pensam haver escolas com autonomia e escolas que não a têm. Leiam a legislação em vigor, bolas! Não confundam a autonomia das escolas (bem torpedeada, é certo, a torto e a direito pelo MEC e também pouco merecida!) com as escolas que têm autonomia contratualizada, um pouquito mais aprofundada. E não venham dizer que a verborreia legislativa e instrucional dos governos é sobretudo administrativa, havendo larga margem para decisões pedagógicas! Primeiro, qualquer constrição administrativa em meio escolar condiciona ação pedagógica; segundo, muitos dos normativos são eminentemente pedagógicos. Por exemplo, a tergiversação entre metas de aprendizagem e metas curriculares, o abandono do ensino básico por competências, a sobrevalorização dos exames e provas finais ou as portarias e despachos sucessivos sobre a avaliação das aprendizagens não configuram perspetivas pedagógicas? É certo que muito trabalho dos professores e das escolas é administrativo, burocrático e inútil; e é esse que sobrecarrega. Mas a cabeça dos professores é feita com as esquisitas orientações pedagógicas!
Na área da justiça, o caso mais recente apontado na Comunicação Social é o da contabilização da vida sexual ativa da mulher, se já tiver dois filhos (Vale 61 mil euros!). O caso resume-se a duas ou três linhas. Uma senhora foi submetida a uma cirurgia numa das maternidades de renome nacional, que não correu bem. Ciente das consequências nefastas para a qualidade de vida, apelou para justiça. E os tribunais administrativos – TAF (primeira instância) e TCA (recurso) – terão decidido por uma indemnização de 172 mil euros.
Como era de esperar, uma das partes interpôs recurso para o STA (Supremo Tribunal Administrativo). E, lá do alto da sua alta e especializada sabedoria e douta ciência, os excelentíssimos conselheiros determinaram a redução da indemnização para 111 mil euros.
Obviamente não me cabe proferir um juízo sobre o sentido da suprema decisão, mas abjurar dos comentários, que terão ou não suportado em termos de fundamento a redução do benefício em prol da senhora, que em tribunal é “autora” contra o “demandado” ou “réu”.
A senhora, além de outras razões, invocara a perda de apetite sexual. Ora, os conselheiros do STA entenderam que a perda de apetite sexual depois dos cinquenta anos de idade não tinha “tanta importância”. Além disso, ela já tem dois filhos.
O primeiro comentário é que fiquei a saber que a vida sexual ativa de mulher é mercantilizável; depois, fiquei a saber o valor mercantil da vida sexual ativa da mulher que tenha dois filhos e mais de cinquenta anos – 61 mil euros, é só fazer as contas! No entanto, não fiquei a saber a tabela para outros casos (se tiver mais filhos, só um ou nenhum;  e em cada um dos casos se tibe menos de 50 anos). Suponho que a tabela deve estar afixada lá no STA.
Também não sabia que a vida humana, nas suas diversas modalidades poderia ser reduzida a uma tabela de taxas e tarifas. Mas fiquei estupefacto com o grau de especialização dos juízes e/ou seus assessores e peritos no âmbito das ciências da vida! Deus nos livre de cairmos nas mãos ou na caneta de gente especializada desta maneira! Isto, se não fosse coisa séria, poderia vir a integrar o anedotário nacional: humor negro, humor doentio em estado de direito democrático.
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Diversas vozes se levantaram na crítica ao caso. De entre elas, destaca-se a APMJ (Associação Portuguesa de Mulheres Juristas) que levanta a hipótese da inconstitucionalidade do acórdão, que defende que “aos 50 anos a vida sexual não tem tanta importância”. A APMJ “não pode deixar de manifestar a sua estranheza pela circunstância de o acórdão entender que a idade da autora do pedido indemnizatório, aliada ao facto de já ter sido mãe de dois filhos, constitui uma circunstância que diminui de forma relevante o seu direito a uma vida sexual ativa. Sendo certo que a prática sexual se não esgota ou se reconduz de modo exclusivo à procriação”. Efetivamente, já nem a Igreja Católica pensa e ensina nesses termos.
Aquela associação das mulheres juristas entende que o direito a uma vida sexual ativa “se insere na esfera dos direitos sexuais e reprodutivos, que são direitos fundamentais pessoais, protegidos e tutelados pela Constituição da República Portuguesa (CRP), nomeadamente no seu artigo 26.º n.º 1, e pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos”.
Ora é dever dos juízes aplicar a lei e respeitar, no ato dessa aplicação, a hierarquia dos normativos em que pontifica, por um lado, a CRP e, por outro, a Declaração dos Direitos Humanos e a respetiva convenção, que Portugal subscreveu. Fazem, pois, bem as senhoras mulheres juristas em exigir que a situação seja clarificada em sede do poder de justiça constitucional.
Ademais, se é certo que as decisões dos tribunais prevalecem sobre todas as outras, devendo, portanto, ser acatadas após seu trânsito em julgado, não é menos verdade que o poder judicial, como poder soberano que é, não está imune ao escrutínio público e à crítica. Como já passou o tempo de “o menino come e cala”, entrámos na era do frade que, perante a instância do comerciante que lhe gritava, “O irmão paga e não bufa!”, exclamava “eu pago, mas bufo”!

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