sábado, 11 de outubro de 2014

Falar claro, pois claro!

Falar claro é uma condição geral de base. Assume-o o Papa Francisco na saudação que dirigiu aos padres sinodais, no passado dia 6 de outubro, durante a primeira congregação geral da III assembleia geral extraordinária do Sínodo dos Bispos.
Sim, é uma condição de base em toda a relação interpessoal e no discurso público. Porém, falar claro e frontal não é sinónimo de faltar ao respeito, ser insolente ou brincar com coisas sérias. Mas é o contrário de mentir, dizer meia verdade, deixar de dizer as coisas com receio de ser mal entendido, ferir o interlocutor, pensar que não vale a pena, ter medo de represálias vir a sofrer o desemprego, perder um cargo ou mostrar falso respeito ante quem julgamos respeitável.
Tanto se degradam as relações familiares, grupais, sociais e profissionais com a afronta como com a ocultação da verdade. Se a afronta continuada leva à dissolução, a ocultação só adia os problemas. E quanto maior for o levantamento destes, mais difícil se torna a sua resolução.
Ocultar a verdade das situações, deixar de oferecer uma opinião em tempo necessário e oportuno é tão pernicioso como o excesso e mesmo a afronta. Quantos chefes engordam balofamente dentro do seu casulo, se degradam na sua gestão e cavam a sua ruína com a plêiade de aduladores que pensam que fazem bem (ou zelam o seu bem) com a ocultação da realidade! Isto acontece na empresa, na sociedade, no grupo de amigos, na política, nos meios eclesiásticos. Tão demolidora se torna a adulação como a intriga ou a conspiração. As três atitudes são inspiradas pelo diabo (vd Gn 3,1-13; 4,8; Mt 4,1-10; Mc 1,12-13; Lc 4,1-13; Jo 18,5; Ap 12,4).
Mas para falar claro, é necessário dispor de autoridade moral, que resulta do trabalho dedicado, da competência e da paciência, bem como da magnanimidade. Por outro lado, nas sociedades e na Igreja, o falar claro acontecerá se for estimulada e praticada a colegialidade e a sinodalidade.
Num órgão colegial, os seus membros não têm a função de dizer acriticamente ámen a tudo. Antes, cada um deve oferecer o seu contributo franco e respeitoso, disciplinado e generoso – oral ou escrito – e mesmo, quando oportuno, o silêncio colaborante. A obediência terá lugar, in fine, para as decisões a que solidamente se chegou e após a sua promulgação ou figura análoga, bem como em situação em que a urgência implique a necessidade da não discussão. O colégio é a presença conjunta, física ou virtual e a conjugação de ideias, opiniões e esforços – da parte daqueles que são chamados à matéria ou à ação.
A sinodalidade implica a disposição de caminhar em conjunto na corrida para a meta, na procura da verdade (sínodos é palavra grega derivada do prefixo sin, com + odós, caminho). Tal implica que surja quem puxe pelos outros e quem sugira a espera de quem tem dificuldades; haja palavras de ordem e palavras de aceitação e aclamação; haja momentos de pausa para reflexão, retemperação de forças e avaliação da caminhada; e haja momentos de celebração como de discussão franca. A sinodalidade implica a sinaxe (no grego, sin, com + áxis, eixo), ou seja, a reunião ou a rotação em torno de um eixo, que pode ser um líder, um objetivo, um fim. Só que o objetivo pode ser mantido ou redefinido, o fim tem de persistir e o líder pode ser substituído. Porém, enquanto estiver ao serviço (o líder vê ao longe, indica o caminho, mas é um servidor que serve guiando), ele vai à frente, no meio ou na retaguarda consoante a necessidade dos caminhantes.
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Porém, o Papa Francisco dá um exemplo da magnanimidade sinodal. A par dos eleitos pelo conselho pós-sinodal (o relator e o secretário geral), também ele eleito pelos participantes no último sínodo, competia ao Pontífice designar os presidentes delegados para as congregações gerais e para a coordenação dos trabalhos. No entanto, ele solicitou ao próprio Conselho pós-sinodal que propusesse alguns nomes, e nomeou aqueles que o Conselho lhe propôs.
Francisco aproveita o ensejo par afazer uma necessária distinção de cariz doutrinal. Enquanto refere que os padres sinodais são transmissores ou porta-vozes das Igrejas particulares, reunidas a nível de Igrejas locais mediante as Conferências Episcopais esclarece que “A Igreja universal e as Igrejas particulares são de instituição divina; as Igrejas locais assim entendidas são de instituição humana”. Sim, o Papa é o sucessor do apóstolo Pedro e os bispos são os sucessores dos demais apóstolos – isto é de instituição divina. O sacro colégio dos cardeais ou toda a organização central em Roma e diplomática com os olhos de poder em todo o mundo ou a organização dos bispos em torno dos arcebispos (ou patriarcas) metropolitas ou em conferências episcopais é instituição humana, sujeita às limitações e suscetível de correção ou reforma.
No entanto, mesmo esta dimensão humana de organização é importante. “Esta é a voz que transmitireis em sinodalidade. Trata-se de uma grande responsabilidade: anunciar as realidades e as problemáticas das Igrejas, para as ajudar a percorrer aquele caminho que é o Evangelho da família.” – reconhece o Papa.
Ora, sempre, mas sobretudo quando se fala em representação da coletividade, é importante falar claro. O Papa Francisco chega ao ponto de suplicar: “Que ninguém diga: ‘Isto não se pode dizer; pensará de mim assim ou assim...’. É necessário dizer tudo o que se sente com parrésia”.
E aduz um exemplo pertinente, não valendo como desculpa o “Sumus coram Pontifice”:
Depois do último Consistório (fevereiro de 2014), no qual se falou sobre a família, um Cardeal escreveu-me dizendo: é uma lástima que alguns Purpurados não tiveram a coragem de dizer certas coisas por respeito ao Papa, talvez julgando que o Papa pensasse de outra maneira. Isto não está bem, isto não é sinodalidade, porque é necessário dizer tudo aquilo que, no Senhor, sentimos que devemos dizer: sem hesitações, sem medo. E, ao mesmo tempo, é preciso ouvir com humildade e aceitar de coração aberto aquilo que os irmãos dizem. A sinodalidade exerce-se com estas duas atitudes.

Que sirva de exemplo a todos aqueles que se autoproclamam democratas, mas de quem a prática da democracia anda tão afastada! Bateu-lhe dizendo: respondes assim ao Pontífice? (Jo 18,22).
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Entretanto, antecipando a temática do sínodo que ia ser inaugurado na manhã do dia seguinte, o seu discurso da vigília de oração, no dia 4 de outubro, constitui uma realista e forte interpelação.
“É a hora em que de bom grado se regressa a casa para se reunir à mesma mesa na consistência dos afetos, do bem feito e recebido, dos encontros que abrasam o coração e o fazem crescer, vinho bom que antecipa, nos dias do homem, a festa sem ocaso”.

Porém, algumas sombras, quase indeléveis, impendem agora sobre o mundo dos homens:
“Mas é também a hora mais pesada para quem se vê cara a cara com a própria solidão, no crepúsculo amargo de sonhos e projetos desfeitos. Quantas pessoas arrastam os seus dias no beco sem saída da resignação, do abandono, se não mesmo do rancor! Em quantas casas falta o vinho da alegria e, consequentemente, o sabor – a própria sabedoria – da vida!”

O Papa não esquece os anseios de cada pessoa, mesmo no contexto de uma cultura individualista ou até egoísta, que, entregue a si, teima no isolamento e pode levar ao desânimo:
É significativo como permanece viva, em cada nascido de mulher - mesmo na cultura individualista que perverte e torna efémeros os laços – uma exigência essencial de estabilidade, duma porta aberta, de alguém com quem tecer e partilhar a narração da vida, duma história a que se pertença. A comunhão de vida assumida pelos esposos, a sua abertura ao dom da vida, a defesa recíproca, o encontro e a memória das gerações, o acompanhamento educativo, a transmissão da fé cristã aos filhos... Com tudo isto, a família continua a ser escola incomparável de humanidade, contribuição indispensável para uma sociedade justa e solidária (cf EG 66-68). E quanto mais profundas são as suas raízes, tanto mais é possível singrar e chegar longe na vida, sem se extraviar nem se sentir estrangeiro em terra alguma.


Perante esta situação humana, define as condições da abordagem sinodal:
Para individuar o que o Senhor pede hoje à sua Igreja, devemos prestar ouvidos às pulsações deste tempo e sentir o ‘odor’ dos homens de hoje, até ficar impregnados  das suas alegrias e esperanças, das suas tristezas e angústias (cf. GS 1). Então saberemos propor, com credibilidade, o evangelho, a boa nova sobre a família.

Fundamenta no Evangelho a opção sólida por este dinamismo terno e misericordioso:
Há, no Evangelho, uma força e ternura capazes de vencer aquilo que cria infelicidade e violência. Sim, no Evangelho, há a salvação que cumula as necessidades mais profundas do homem! Desta salvação, obra da misericórdia de Deus e sua graça, somos, como Igreja, sinal e instrumento, sacramento vivo e eficaz (EG 112). Se assim não fosse, o nosso edifício não passaria dum castelo de cartas, e os pastores reduzir-se-iam a clérigos de estado, em cujos lábios o povo procuraria em vão o frescor e o ‘perfume do Evangelho’ (Ibid. 39).

Assim, enuncia três dons fundamentais a solicitar ao Espírito Santo para este sínodo: a escuta, a disponibilidade e a atitude de manter o olhar fixo em Cristo.
Primeiro:
Pedimos, antes de mais nada, ao Espírito Santo, o dom da escuta: escuta de Deus, até ouvir com Ele o grito do povo; escuta do povo, até respirar nele a vontade a que Deus nos chama.

Segundo:
Suplicamos a disponibilidade para um confronto sincero, aberto e fraterno, que nos leve a ocupar-nos, com responsabilidade pastoral, das interrogações que esta mudança epocal traz consigo. Deixemos que inundem o nosso coração, sem nunca perdermos a paz, mas com a serena confiança de que o Senhor não deixará, a seu tempo, de reconduzir à unidade. Porventura não nos fala a história da Igreja – como sabemos – de tantas situações análogas que os nossos pais souberam superar com obstinada paciência e criatividade?

Terceiro:
Se verdadeiramente pretendemos verificar o nosso passo no terreno dos desafios contemporâneos, a condição decisiva é manter o olhar fixo em Jesus Cristo, deter-se na contemplação e adoração do seu rosto. Se assumirmos o seu modo de pensar, viver e relacionar-se, não teremos dificuldade em traduzir o trabalho sinodal em indicações e percursos para a pastoral da pessoa e da família. Na verdade, todas as vezes que voltamos à fonte da experiência cristã, abrem-se estradas novas e possibilidades inimagináveis. Assim no-lo deixa intuir a indicação evangélica: ‘Fazei o que Ele vos disser’ (Jo 2,5). São palavras que contêm o testamento espiritual de Maria, ‘amiga sempre solícita para que não falte o vinho na nossa vida’ (EG 286).

E sintetiza, sob a égide de S. Francisco, o renovador da Igreja, a missão dos padres sinodais:
As três coisas – a nossa escuta e o nosso confronto sobre a família, amada com o olhar de Cristo – tornar-se-ão uma ocasião providencial para renovar, a exemplo de S. Francisco, a Igreja e a sociedade. Com a alegria do Evangelho, reencontraremos o passo duma Igreja reconciliada e misericordiosa, pobre e amiga dos pobres; uma Igreja capaz de ‘vencer, pela paciência e pela caridade, as suas aflições e dificuldades tanto internas como externas’ (LG 8).


É o escol da Igreja a refletir, circundado por uma enorme retaguarda de oração e de esperança, na busca, em aliança com o Espírito, da lucidez necessária para responder aos desafios de hoje.

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