É
a primeira vez que se celebra o dia do peregrino, em consonância com a
respetiva resolução da Assembleia da República, cujo teor, envolvência e
alcance já tive ocasião de comentar. É natural que, muito embora não tenha
sido, presumo-o, esta a intenção dos senhores deputados, o Santuário de Fátima
dê relevo à efeméride e sinta a natural satisfação por ver também os seus inúmeros
frequentadores munidos de um dia de especial referência.
Não
sei mesmo se, quando o Parlamento se envolveu na matéria, não estava mesmo a assumir
um quinhão significativo das funções do Estado. É certo que o Estado moderno
ganha em democracia quando assume a sério as linhas da aconfessionalidade e da
laicidade. No entanto, apraz-me a necessária clarificação. Essas linhas de sã democracia
não podem significar guerra declarada ou surda às Igrejas ou às religiões, mas
o estabelecimento da separação e autonomia entre o Estado e as Igrejas ou
grupos religiosos, ou seja, o Estado não tem uma religião, mas a sociedade pode
ter uma ou mais religiões (não tem, pois, de ela ser laica ou aconfessional).
Por conseguinte, se o Estado está ao serviço da sociedade e da sua boa
organização, não pode ignorar a sociedade com os seus legítimos anseios e
justas aspirações. E, em matérias de interesse comum, o Estado deve suscitar e
estar aberto à cooperação, sem a impor ou sem se intrometer. E, se quisermos
adotar a dinâmica da laicidade positiva, o Estado deve, numa linha de igualdade
de oportunidades e segundo critérios de representatividade e trabalho cooperativo,
possibilitar que a sociedade civil desenvolva, em privado e na praça pública, os
seus projetos, mesmo os de índole religiosa, incluindo a educação e o ensino, o
acompanhamento da saúde e dos sistemas de ação social e da ação cultural. É a
liberdade de pensamento, de expressão, de reunião, de associação e de
manifestação.
Depois,
os detentores de cargos públicos, sem incorrerem na tentação das misturas ilícitas,
hão de estar livres para a expressão e prática da sua religião, se a tiverem.
No
entanto, gosto de fazer uma referência às funções do Estado. É consensual que
ao Estado competem fundamentalmente as atribuições no âmbito da defesa nacional
(através das indústrias, serviços e comércio de defesa; das forças armadas; das
academias militares e escolas práticas), da segurança pública, da administração
do território. Compete-lhe, em suma, a organização política e administrativa da
sociedade que ocupa o seu território. Para tanto, o Estado tem de definir os órgãos
do poder soberano (legislativo, executivo/administrativo e judiciário), bem
como os demais órgãos do poder político-administrativo, vulgo, os das autarquias (pessoas coletivas territoriais que visam
o bem-estar das populações: as regiões, os municípios, as áreas metropolitanas
e comunidades municipais e as freguesias). Quanto ao mais, parece que as sociedades
não se dão bem com um Estado liberal (mero árbitro) ou com um estado
totalitário (que chame a si todas as funções sociais, financeiras, económicas e
logísticas). A sociedade nem pode andar entregue à lei do mais forte nem pode
ser proibida de respirar.
Nestes
termos, parece que, para lá das funções acima delineadas, cabem ao Estado os papéis
de teleologia social (definir os grandes
desígnios nacionais e as grandes metas, os principais conceitos estratégicos)
de supervisão e regulação (nas áreas
vitais da sociedade) e de promoção das
atividades a que a sociedade civil não é capaz de prover (um papel de subsidiariedade).
Depois, o Estado deve fazer aquilo a que se compromete constitucionalmente: no
caso português, a saúde (um sistema nacional de saúde público, universal e tendencialmente
gratuito), uma escola pública de qualidade, que assegure a educação e o ensino
a todos, um regime de segurança social aceitável, que proteja todo o cidadão em
situação de cessação definitiva ou temporária do trabalho e na velhice. E, se por
necessidade ou contrato social, age como se fosse entidade privada, terá de cumprir
todos os compromissos como os outros empregadores a nível salarial, impostos e
segurança social, em termos de mutualidade e regime contributivo.
Para
o bom desempenho das suas funções e para o bem-estar de todos, o Estado tem de
criar meios de salvaguarda das liberdades, direitos fundamentais e garantias de
todos os cidadãos, a nível pessoal, social, económico, cultural e político.
***
O
curioso é que o dia do peregrino vem ao encontro das funções do Estado numa linha
de complementaridade. Eu explico-me. O Estado a se não cria médicos, advogados, gestores, enfermeiros,
empresários, trabalhadores, famílias, turistas, emigrantes, refugiados,
estudantes, professores, doentes, técnicos de contas, engenheiros, arquitetos,
motoristas, economistas, comerciantes, sacerdotes, peregrinos… Quando muito
cria alguns profissionais dos apontados nas suas escolas e academias, que têm
de ser de qualidade. Não digo obviamente o mesmo sobre diplomatas, magistrados,
militares e polícias, que estão umbilicalmente adstritos às funções de
soberania. Não obstante, cabe ao Estado o papel de reconhecimento da existência
das pessoas e grupos referenciados, como a de muitos outros. Assim, por exemplo,
registam-se nascimentos, casamentos e óbitos; registam-se sociedades,
associações e firmas; estabelecem-se dias do estudante, do professor, do trabalhador,
do emigrante, do doente, do refugiado, do não fumador… Então, porque é que o Estado
não há de reconhecer que existem peregrinos e até promover a criação de um dia
a eles dedicado?
Depois,
como faz com outras efemérides e reconhecimentos de situações, deixe as
atividades e ações por conta da sociedade civil. No caso do peregrino, os
grupos civis que o tratem como tal, como ele merece ou precisa. E as Igrejas,
que os tratem de forma religiosa, se tal lhes aprouver.
***
Sobre
o sentido típico da peregrinação ao local mais conhecido de Portugal e um dos
de maior referência mundial, também se afigura dizer algo de português e
cristão. Está a decorrer (12 e 13 de outubro) a última peregrinação aniversária
internacional do ano de 2014 ao Santuário de Fátima. É presidida por D. Filipe Neri Ferrão,
arcebispo de Goa e Damão, da Índia. O tema da peregrinação é “Arrependei-vos,
porque Deus está perto” (cf. Mt 3,2).
O bispo de Leiria-Fátima saudou a presença daquele
dignitário católico, que acompanha na Índia comunidades que, apesar de já não
serem colónias portuguesas, desde 1961, ainda hoje mantêm “relações afetivas”
com Portugal.
Até ao dia 1 de outubro, estavam anunciados, junto do Serviço de Peregrinos
do Santuário de Fátima, 100 grupos organizados de peregrinos, vindos de 20
países, como participantes nas celebrações da manhã do dia 13 de outubro:
Rosário, na Capelinha das Aparições, às 9 horas, seguido, às 10 horas, de
Procissão, Eucaristia com Bênção dos Doentes e Consagração a Nossa Senhora, e
Procissão do Adeus, no Recinto de Oração.
Em número mais expressivo,
com o maior número de grupos inscritos, está a Itália (25 grupos), a Polónia
(9), a Espanha (8), a Alemanha (7) e a França (7). Com o maior número de
peregrinos está um grupo português, o “Grupo da Imaculada”, com 300 peregrinos.
O bispo de Leiria-Fátima, Dom António Augusto dos
Santos Marto, sublinhou a especial “relevância” da peregrinação aniversária
internacional de 13 de outubro deste ano marcada por várias iniciativas com
destaque para o Sínodo dos Bispos sobre a Família (de 5 a 19) e a beatificação
do Papa Paulo VI, a 19 de outubro na Praça de São Pedro durante a concelebração
eucarística de encerramento do Sínodo, presidida pelo Papa Francisco. O prelado
fatimita conta que os peregrinos adiram em força ao apelo de Francisco no
tocante à oração pelo bom êxito do Sínodo, até porque “Fátima nunca pode estar
desligada dos grandes acontecimentos da Igreja”, bem como das grandes intenções
dos Sumos Pontífices.
Quanto à beatificação de Paulo VI, que ficou
ligado a Fátima por ter oferecido ao Santuário a “Rosa de Ouro”, no termo da
3.ª sessão do Concílio Vaticano II, a 21 de novembro de 1964, D. António Marto
destaca o significado que aquela cerimónia terá para o Santuário, recordando
que Paulo VI foi “o primeiro Papa a visitar Fátima”, a 13 de maio de 1967, no
cinquentenário das aparições. E fê-lo, recordo-me, prescindindo de todo o
aparato político que lhe era devido como Chefe de Estado do Vaticano. Esse fora
prestado ao seu legado a latere, o
cardeal Dom José da Costa Nunes, então patriarca emérito das Índias Orientais.
Quanto a Paulo VI, que preferiu ser hóspede do
Bispo de Leiria, veio de Roma, no próprio dia 13 de maio de 1967, num “caravela”
da Força Aérea Portuguesa, sobrevoou o recinto de Fátima, que o saudou com uma
multitude de lenços brancos, aterrou na Base Aérea de Monte Real onde foi recebido
pelo Presidente da República, que proferiu um pequeno discurso de boas vindas,
fez o percurso para Fátima em automóvel, com paragem em Leiria onde lhe foram entregues
as chaves da cidade. Presidiu às celebrações na Cova da Iria e teve vários encontros
com grupos significativos a nível religioso e diplomático, tendo regressado a
Monte Real a e a Roma à tardinha pelos mesmos meios de locomoção. Afirmou-se
como peregrino de Nossa Senhora, a quem rezou em prol da unidade da Igreja e da
paz no mundo.
Por seu turno, o reitor do Santuário, Padre Carlos
Cabecinhas, declarou que “a notícia da beatificação do Papa Paulo VI é motivo
de grande contentamento para toda a Igreja, pois Paulo VI vem enriquecer o
número daqueles cristãos que viveram de forma exemplar o seu seguimento de
Cristo”. E especificou que “Paulo VI foi o grande artífice da continuação dos
trabalhos do Concílio Vaticano II e o grande obreiro da aplicação da obra
conciliar à vida da Igreja”. O padre Cabecinhas acentua, ainda, que “é de todos
conhecida a grande devoção mariana deste Papa, mas também as muitas vezes, no
seu magistério pontifício, em que se referiu a Fátima ou se dirigiu aos devotos
de Nossa Senhora de Fátima”.
Efetivamente, além da homilia que proferiu em
Fátima, fez publicar, no próprio dia 13 de maio de 1967, a exortação apostólica
“Signum Magnum”, consagrada ao culto
da Virgem Maria, Mãe da Igreja e Modelo de todas as virtudes. Demais, publicou
ainda duas exortações apostólicas de teor mariano – a “Recurrens Mensis October”, a 7 de outubro de 1969, sobre a
recitação do Rosário; e a “Marialis
Cultus”, a 2 de fevereiro de 1974, para a reta ordenação e desenvolvimento do
culto à Bem-aventurada Virgem Maria. Mas também publicou duas encíclicas sobre
a devoção mariana: a “Mense Maio”, de
29 de Abril de 1965, a propor a devoção mariana, em especial a recitação do rosário
pelo êxito do Concílio Vaticano II e pela Paz no mundo; e a Christi
Matri, de15 de setembro 1966, sobre os especiais testemunhos de piedade a tributar à
Bem-aventurada Virgem Maria.
Porém, o bispo de Leiria-Fátima não deixa de lembrar
que a beatificação de Paulo VI tem ainda a coincidência de acontecer num momento
em que a Cova da Iria está empenhada na preparação do centenário das aparições
de Nossa Senhora, em 2017. E destaca, em paralelo com estes eventos, três
efemérides que dão outra envolvência à peregrinação aniversária de outubro: “a
comemoração do centenário da Primeira Grande Guerra, os 75 anos da Segunda
Grande Guerra e os 25 anos da queda do muro de Berlim – acontecimentos
históricos a que está associada a mensagem de Fátima”.
Como se vê, tanta coisa para que o 13 de outubro
marque a memória dos cristãos e também dos portugueses em geral. O peregrino
tem muito por onde peregrinar espiritualmente.
Sem comentários:
Enviar um comentário