sábado, 1 de novembro de 2014

Um de novembro: Todos os santos e santas de Deus, intercedei por nós!

– Prece e compromisso com a transformação do mundo –

O dia um de novembro é dedicado à solene celebração da memória de todos os santos e santas que, independentemente de estarem ou não inscritos no catálogo oficial dos canonizados ou dos beatos, conformaram a vida com o desígnio divino e, em especial, com o mistério de Cristo.
A Constituição sobre a Sagrada Liturgia, Sacrosanctum Concilium, do Vaticano II, no seu n.º 104, ensina que “os santos, tendo atingido pela multiforme graça de Deus a perfeição e alcançado a salvação eterna, cantam hoje a Deus no Céu o louvor perfeito e intercedem por nós”. Por isso, a Igreja, evocando o dies natalis destes para sempre amigos de Deus, “proclama o mistério pascal, realizado na paixão e glorificação deles com Cristo, propõe aos fiéis os seus exemplos, que conduzem os homens ao Pai por Cristo; e implora, pelos seus méritos, as bênçãos de Deus”. Por outro lado, o n.º 111 do mesmo documento conciliar refere que, “segundo a sua tradição, a Igreja venera os Santos e as suas relíquias autênticas, bem como as suas imagens. É que as festas dos Santos proclamam as grandes obras de Cristo nos Seus servos e oferecem aos fiéis os bons exemplos a imitar”.
Porém, na impossibilidade de celebrar o dia da morte / passagem para os céus de todos os que apostaram explícita ou implicitamente neste fulgurante dinamismo de santidade a que todos somos chamados, preservar as suas relíquias e expor as suas imagens, elege um dia que abranja a solene comemoração de todos – a festiva celebração em honra de todos quantos passaram a militar apostolicamente através da sua permanente intercessão junto de Deus por nós, contemplando-O face a face, tal como Ele é e vivendo a glória de Deus. É a dimensão da Igreja triunfante e intercessora.
Também a ladainha de todos os santos, depois de invocar alguns nomes de santos e santas, enquadrados em diversos grupos – anjos e arcanjos, ordens de santos espíritos, apóstolos, evangelistas e discípulos do Senhor, mártires, pontífices, confessores e doutores, sacerdotes e levitas, monges e eremitas, virgens e viúvas – clama: “Todos os Santos e santas de Deus, intercedei por nós!”.
Historicamente, foi a um de novembro de 1950 que Pio XII, pela Constituição Apostólica Munificentissimus Deus, definiu o dogma da Assunção de Maria, a Rainha de todos os Santos, a quem o povo de Deus tributa uma veneração especial, a hiperdulia.
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A liturgia da Palavra da solenidade de Todos os Santos, centrada no Evangelho das bem-aventuranças – uma das formas neotestamentárias mais sublimes de exprimir o decálogo – denomina estes amigos de Deus, segundo o salmista, como “a geração dos que O procuram, que procuram a face de Deus” (Sl 23/24,6); ou, segundo o livro do Apocalipse, como “os que vieram da grande tribulação, os que lavaram as túnicas e as branquearam no sangue do Cordeiro” (Ap 7,14). Por seu turno, a Igreja, no seu culto litúrgico, aplica-lhes o Evangelho de Mateus proclamando-os bem-aventurados porque: foram “pobres no seu íntimo”, pelo que possuíram “o reino dos céus”; choraram, pelo que tiveram a merecida consolação; foram mansos, pelo que possuíram a terra em herança; tiveram fome e sede de justiça, pelo que foram saciados; usaram de misericórdia, pelo que alcançaram misericórdia; foram limpos de coração, pelo que veem a Deus; foram pacíficos, pelo que são chamados filhos de Deus; aceitaram a perseguição por amor da justiça e por causa do nome de Jesus, pelo que possuem “o reino dos céus”. São assim alegres porque é grande nos céus a sua recompensa (cf Mt 5,3-12). Por fim, João Evangelista garante que eles, mais do que serem chamados filhos de Deus, são-no de facto, como nós o somos, graças ao admirável amor que Deus nos consagrou. Porém, enquanto a nós ainda não se manifestou o que havemos de ser, aqueles já O veem tal como Ele é; e nós, os que temos n’ Ele esta esperança, purificamo-nos a nós mesmos para sermos puros como Ele é puro (cf 1Jo 3,1-3).
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Em conformidade com a liturgia (lex orandi, lex credendi) e com a doutrina católica, nomeadamente a doutrina conciliar, fundamentada na Sagrada Escritura, os pastores da Igreja não se descuidam de chamar a atenção de todos para o fundamental do dia. Assim, o arcebispo de Braga (veja-se o despacho da Ecclesia, de 1-11-2014) apela ao que designa por “santidade hospitalar”, no caminho de procura do transcendente e de “acolhimento” a todas as pessoas. E explicita o inédito conceito de “ santidade hospitalar” como sendo a vida cristã com horizontes de eternidade e com compromisso histórico com as pessoas vivas e com os antepassados. Mesmo não sendo feriado nacional esta solenidade, “nunca poderemos permitir que deixe de ser Dia Santo e, antes de mais, que cesse de nos consagrar, isto é, de nos santificar em Cristo”.
E o Primaz das Espanhas especifica que a santidade “é um projeto de vida”, fruto de “aspirações pessoais”, mas simultaneamente “fruto maduro da incessante procura de Deus”, estando por isso, “ao alcance de todos”, num processo que se desenvolve em comunhão com Deus e com os irmãos. Este processo ou caminho de santidade inicia-se quando se “acolhe Deus, quando Este se revela e manifesta”, pela “proximidade com os mais frágeis” e quando se “recordam os que já partiram”. Assim, “na permuta de graça e oração entre os que estão junto de Deus e os que ainda peregrinam na terra, nasce um dos maiores tesouros do Reino de Deus, que é a comunhão dos santos e a comunhão com as coisas santas”.
Todos devem saber que o dia um de novembro é não propriamente o dia dos defuntos qua tali, mas o de todos os santos. A comemoração dos fiéis defuntos ocorre liturgicamente a dois de novembro. No entanto, como o dia um era feriado e é dia santo, temos de compreender que os trabalhadores não podem dispor livremente dos seus dias sempre e para tudo. Por isso, as pessoas habituaram-se a comemorar por antecipação o dia dos seus finados na tarde do dia primeiro de novembro. Trata-se, quer na celebração dos santos quer na comemoração dos defuntos, do acolhimento dos antepassados, segundo uso ancestral, que representa a memória, a homenagem e a obrigação e, segundo D. Jorge Ortiga, “acolhendo os antepassados, estamos em comunhão com eles e esta é a vivência da comemoração de Todos os Fiéis Defuntos”.
Por sua vez, o Papa sublinha, na sua alocução prévia à recitação do Angelus, a comunhão que os cristãos sentem com todos aqueles que já morreram mas que “no céu”, “rezam” e “sustêm” o rumo dos que labutam na terra. Em certa medida, esses continuam a fazer parte do nosso mundo e do nosso quotidiano, o que se torna para nós motivo de consolação: “É reconfortante saber que os nossos irmãos que estão já no céu, entendem-nos e rezam por nós, para que juntos possamos completar o rosto glorioso e misericordioso do Pai” – adianta Francisco. De acordo com suas palavras, a liturgia recorda hoje “homens e mulheres comuns, simples, últimos para o mundo mas primeiros para Deus” que selam “uma ligação indestrutível” entre os que vivem na terra e “aqueles que cruzaram o limiar da morte”. É a santidade posta ao alcance de todos!
Mas o Pontífice apoia-se no credo da fé – consignada no símbolo dos apóstolos e no niceno-constantinoplitano – respigando verdades basilares: esta “solenidade ajuda-nos a considerar uma verdade fundamental da fé cristã, que professamos no Credo, a comunhão dos santos”, “uma comunhão que nasce da fé e une todos aqueles que pertencem a Cristo pelo batismo”, que “não é quebrada pela morte, mas prossegue numa outra vida”. Por outro lado, afirma que esta comunhão ganha uma “maravilhosa expressão” na Eucaristia – onde “encontramos Jesus vivo e a sua força, e através dele entramos na comunhão com os nossos irmãos na fé, os que vivem connosco aqui na terra e os que os precederam na outra vida, na vida sem fim”.
E faz uma alusão às romagens aos cemitérios que ocorrem no dia de hoje ou no de amanhã, lembrando que, para todos os que visitam os cemitérios é “motivo de grande consolação pensar que eles estão na companhia da Virgem Maria, dos apóstolos, os mártires e de todos os santos do paraíso”.
Já na homilia da celebração eucarística a que presidiu no Cimitero del Verano, em Roma, o Papa Francisco disse que o homem se vê como um “Deus” e devasta a “criação, a vida, as culturas, os valores e a esperança”: “O homem crê-se Deus. As guerras que continuam a não germinar vida, a indústria da destruição que descarta os jovens, os idosos, uma cultura descartável” – especificou, partindo de três representações mentais que lhe surgiram ao ouvir a leitura do evangelho das Bem-aventuranças: “devastação”, “vítimas” e “Deus”.
Assim, verificou, com o seu profundo lamento, que os homens são capazes de devastar a terra (e fazem-no): devastam a criação, a vida, as culturas, os valores, a esperança pelo que se torna acutilante a “imensidão de povos que têm de fugir para salvar a vida, têm medo, são perseguidos pela sua fé”. Pelo que mais uma vez o Papa criticou duramente a “cultura do descartável” que esquece “as crianças, os velhos, os jovens sem trabalho” e lançou um lancinante apelo que vale a pena transcrever em discurso direto: “Por favor salvação, por favor paz, por favor pão, por favor trabalho, por favor filhos e avós, por favor jovens com dignidade para poderem trabalhar”!
Todavia, Francisco não descura o acento no fundamental da celebração de hoje, em sintonia com a Liturgia da solenidade, lembrando quantos “nasceram da grande tribulação”, “pecadores como nós”, “mas que o Senhor santifica”. E, atentando na profundeza do mistério, afirmou que “aquilo que o homem será, não foi ainda revelado” e que “hoje sabemos que fomos feitos à sua imagem e semelhança”; apontou o caminho da “esperança” e das bem-aventuranças para que, no “momento do encontro definitivo com Deus”, o homem se torne santo.
E, garantindo que a “esperança não desilude” formulou o desejo de síntese entre a realidade que constata e a esperança que urge:
“Que o Senhor nos ajude e nos dê a sua graça de ter esperança, mas também a graça para ter coragem de sair de tudo o que é destruição, devastação, relativismo de vida, exclusão dos valores, exclusão de tudo o que o Senhor nos deu: exclusão de paz”.
É humano honrar a memória de quem nos precede; é de justiça o compromisso com os vivos.

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