Há uns anos a
esta parte, estranhei que duas freguesias tivessem festejado o centenário da
sua desvinculação de um determinado concelho em vez de assinalarem a sua adesão
ao concelho em que foram incorporadas. Alguém me dizia que dava no mesmo. É
verdade, mas eu não concordava com a perspetiva por me parecer negativa.
Vem este
facto, verificado no ano de 1996, a propósito de uma local que li hoje no Osservatore Romano on line sobre a
Conferência da Região Europeia da Federação Luterana Mundial (FLM), que teve
lugar em Roma de 27 a 29 de
outubro, destinada a preparar o V centenário da Reforma, que se celebrará em
2017.
No âmbito da
referida Conferência, foi organizada uma mesa redonda sobre a dimensão ecuménica
da celebração daquele centenário, em que interveio o cardeal Kurt Koch,
presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, que
enunciou auspiciosamente a trilogia “diálogo, memória e esperança” como
constituindo as três diretrizes que luteranos e católicos estão chamados a
seguir para rendibilizar o ensejo de encontro de um caminho comum que deve ser
percorrido por ocasião dos quinhentos anos da Reforma.
É óbvio que
historicamente a Reforma, que os católicos se apressaram a cognominar de
protestante, surgiu como um grito de autonomia, refontalização bíblica para
adequação da Palavra de Deus à vida quotidiana, alguns equívocos doutrinais e
clamor contra o luxo e ostentação da Igreja institucionalizada. Dada a mútua
cristalização de posições, o evento resultou num facto gerador de separação de
cristãos a nível orgânico, doutrinal e disciplinar que resultou num devir de
séculos de Igrejas cristãs de costas voltadas.
Para o
supradito purpurado a comemoração de um evento gerador de tão profunda divisão
entre batizados e autodenominados seguidores de Cristo deve constituir ocasião
propícia para se tirar partido da caminhada intensa valorizadora dos cinquenta
anos de diálogo entre a Igreja católica e as comunidades luteranas, a partir da
postura ecuménica de João XXIII, da encíclica Ecclesiam Suam, de Paulo VI, e do concílio Vaticano II (sobretudo
com o decreto Unitatis Redintegratio,
sobre o ecumenismo), que servem de sancionamento e reforço do movimento
ecuménico iniciado de forma pioneira por não católicos no dealbar do século XX.
Kurt Koch sugere que se proceda à memória crítica dos conflitos que surgiram na
Europa depois da Reforma, ou seja, “um modo para manifestar a esperança numa
unidade mais profunda”, como será desejável questionar todas as razões que
deram azo ao largo movimento de contestação quinhentista.
A Conferência
mencionada compagina um encontro que proporcionou a ocasião para apresentar o
caminho preparatório das comemorações do jubileu da Reforma e as suas implicações
ecuménicas, sendo de salientar a receção do documento Do conflito à comunhão,
redigido pela comissão de estudo conjunto luterano-católico.
Bem espero
que o V centenário da Reforma, em 2017, seja palco de esforços ecuménicos tão
significativos e fecundos como esperamos que, do lado mariano, o I centenário
fatimita seja de aprofundamento, gratidão e súplica à Mãe de todos os homens
para que os filhos deixam de se digladiar, se aúnem todos em torno da árvore
cruz e se reúnam em grande cenáculo de oração com Maria de modo que o Espírito
torne a Igreja cada vez mais em saída. E há tanto que fazer, como todos
reconhecem, que não há muito tempos para afinar e reafinar instrumentos de
combate, mas é necessário otimizar os instrumentos de ação evangelizadora,
santificadora e de luta pela justiça.
***
Considero, no entanto, conveniente uma pequena resenha histórica da
reforma ou reformas e seu reverso, expostos de forma sucinta (cf J. Duroselle, História da Europa.
Publicações Dom Quixote: 1990).
A partir do século XVI,
a Igreja Católica deixou de suscitar confiança generalizada no seu poder
temporal e em muito da sua mundivisão, o que deu lugar ao começo de
contestação, primeiro, de forma larvar e, depois, de forma sistemática e quase
a caminho de generalização. Tal contestação acabou por ser extensiva à dimensão
espiritual. Num momento em que as mudanças sociais, económicas e culturais
varriam a Europa, o poder da Igreja deixava de corresponder aos anseios da
nobreza, que via o seu prestígio a esboroar-se, e da emergente burguesia, que
pretendia ter voz na condução do poder. Membros da própria Igreja, como o frade
agostiniano e professor Martinho Lutero, propuseram uma ampla reforma
religiosa, que, mercê da radicalização de posições da Cúria Romana e dos
corifeus da reforma nascente, deu origem às religiões denominadas como protestantes.
Tal movimento, além de se opor frontalmente à Igreja de Roma, respondia às
ambições de poderio nacional – o que hoje alguém chamaria de “soberanismo” – e instaurou
a ideologia do cuius regio huis religio,
o que deu azo a que o príncipe fosse no seu reino o chefe da Igreja nacional.
Assim, a
Reforma iniciada por Lutero foi um movimento de caráter religioso, surgido na
Alemanha na segunda década do século XVI, mas de nítidas consequências políticas.
O movimento liderado por Lutero criticava várias ações da Igreja Católica, nomeadamente
a pregação das indulgências, com seus excessos, sob a égide do Papa Leão X, que
tinha em vista a conclusão das obras da Basílica de São Pedro. O reformador,
que não obteve a renovação da Igreja a partir de dentro, propôs novos caminhos
para o cristianismo, que, em rutura com a Igreja de Roma, conduziram à criação
da Igreja Luterana, com o indefetível apoio da nobreza da Alemanha.
Além dos excessos que emolduravam a pregação das indulgências, Lutero e
seus apoiantes censuravam a centralização
do poder eclesiástico nas mãos do Papa, bem como a concentração de terras nas
mãos da Igreja, o que gerava descontentamento da parte da nobreza alemã, que
via com maus olhos o excessivo poder político e económico da Igreja. Por outro
lado, a crise institucional e moral por que passava a Igreja Católica ao tempo
constituía motivo de escândalo para muitos. Perante as orelhas moucas da Cúria
Pontifícia, Lutero afixou, em 1517, as suas 95 teses na porta da igreja de
Wittenberg. As teses luteranas criticavam a “venda de indulgências” e, de forma
explícita, questionavam o poder papal e algumas práticas católicas, além de
proporem uma ampla reforma religiosa. Estas teses circularam pela Alemanha
conquistando, principalmente, como se deixou entrever, a simpatia de nobres (nomeadamente
príncipes e senhores feudais).
Em 1520, o Papa
Leão X exigiu a retratação de Lutero, que não só não se retratou como queimou
em praça pública o documento papal. Foi publicamente excomungado e considerado o
novo cismático e herege. Protegido pelo príncipe da Saxónia, refugiou-se no
castelo de Wartburg, local onde passou a traduzir a Bíblia para a língua alemã.
Os princípios doutrinais do luteranismo, divulgados em 1530, podem
sintetizar-se nos seguintes itens: salvação
pela fé e não pelas obras; presença da verdade revelada exclusivamente na Bíblia,
pondo de parte a Tradição; extinção do clero regular, considerando a vida
religiosa como excrescente e inútil; livre interpretação da Bíblia (ou livre
exame), sem a necessidade de pregadores, padres ou outros intermediários; eliminação
de tradições e rituais nos cultos religiosos; fim do celibato eclesiástico (que
leva à proibição do casamento de padres e membros do “clero regular”: frades e
freiras); proibição do uso de imagens nas igrejas; uso do alemão (e por extensão,
o uso da língua vernácula) no culto religioso (não mais o latim como única
língua); adoção da Eucaristia e do Batismo como únicos sacramentos válidos.
***
Perante o
movimento luterano, a que se seguiram outros, como o calvinista, o hussita, o zwingliano e o anglicano, a situação da Igreja Católica, em meados do século
XVI, tornou-se bastante problemática: perdera metade da Alemanha, toda a
Inglaterra e os países escandinavos; estava em recuo na França, nos Países
Baixos, na Áustria, na Boémia e na Hungria.
Por isso, ela
sentiu a necessidade de se reformar a partir de dentro. E veio o movimento da
Contrarreforma, assim designado pelos reformadores não católicos, que foi uma
barreira colocada pela Igreja contra a crescente onda do protestantismo. Para
enfrentar as novas doutrinas, a Igreja Católica lançou mão de uma arma muito
antiga, a Inquisição. O Tribunal da Inquisição foi muito poderoso na Europa nos
séculos XIII e XIV, mas no decurso do século XV, perdeu sua força. Entretanto,
em 1542, este tribunal foi reativado para perseguir e julgar, já não os judeus
e mouros, mas os indivíduos acusados de praticar ou difundir as novas doutrinas
protestantes. E, percebendo que os livros e impressos tinham sido muito
importantes para a difusão da ideologia protestante, graças à invenção da
Imprensa por Guttemberg, o Papado instituiu, em 1564, o Index Librorum Prohibitorum, uma lista de livros elaborada pelo
Santo Ofício, cuja leitura era proibida aos fiéis católicos.
Para pôr cobro aos abusos internos e definir com a necessária
clarividência a sua doutrina, a Igreja organizou o já mencionado Concílio de Trento (1545-1563). É certo que a Igreja perdia adeptos
e assistia à contestação e rejeição dos dogmas, mas demonstrou, no Concílio,
que ainda era muito poderosa e tinha capacidade de reação. Aquelas duas medidas
detiveram o avanço do protestantismo, sobretudo em Itália, Espanha e Portugal.
Entre as
medidas tomadas, desatacam-se:
– A
organização da disciplina do clero (os padres deveriam estudar e formar-se em
seminários, não podendo a ordenação sacerdotal ser conferida antes dos 25 anos
nem a episcopal antes dos 30 anos);
– O
estabelecimento da dupla fonte da revelação cristã: a Sagrada Escritura (a
Bíblia) e a Tradição (apenas a hierarquia da Igreja era legítima autoridade para
a interpretação da Bíblia);
– A
manutenção dos princípios de valia das obras, do culto da Virgem Maria e dos
santos, bem como das respetivas imagens;
– A reafirmação
da autoridade do Papa e do dogma da transubstanciação.
A
consequência mais importante deste Concílio foi o fortalecimento da autoridade
do papa, que, a partir de então, passou a ter incontestavelmente a palavra
final sobre os dogmas defendidos pela Igreja Católica.
A partir da
Contrarreforma, surgiram novas ordens e congregações religiosas, como a
Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola em 1534. A Companhia organizou-se
em moldes quase militares e fortaleceu a posição da Igreja dentro dos países
europeus que permaneciam católicos. Criaram escolas, onde eram educados os filhos
de famílias com poucos recursos; foram confessores e educadores de várias
famílias reais; fundaram colégios e missões para difundir a doutrina católica
nas Américas e na Ásia.
Fundada a
obra por Inácio de Loiola em 1534, obteve para ela o reconhecimento do Papa
Paulo III em 1540. A bula papal definia as três principais tarefas dos
jesuítas: confissão, ensino e pregação. Os seus membros deviam lealdade ao Papa
e à companhia em geral (para além dos clássicos votos de pobreza, obediência,
castidade). Obedeciam a uma preparação muito rigorosa, o que originava a sua
magnífica aptidão para chamar até si os fiéis. O seu objetivo era a recuperação
de antigos católicos perdidos para o protestantismo e arrancar outros das
malhas do paganismo. Ao mesmo tempo que levavam a Igreja às pessoas, faziam
voltar as pessoas para a Igreja. Faziam-no através de missões em que os
missionários se mostravam aptos para oferecer uma oportunidade de conversão e
também para instruir aqueles que já tinham fé. Proporcionavam uma forma célere
de chegar a Deus, o que acabava por ser exatamente aquilo o que as pessoas
procuravam. A melhor forma de trazer os países à religião católica e mantê-los
nela era atrair a atenção e devoção de reis e nobres.
Os jesuítas
tornam-se um tipo muito especial de educadores, que dão especial relevo à
instrução, num regime pedagógico, que tinha em grande linha de conta a
disciplina, aberto às ciências e às artes, com destaque para o teatro. O
serviço do ensino toma maior importância a partir de 1547, acabando por se
tornar a tarefa principal destes servidores eclesiásticos. A partir desta data,
multiplicam-se os colégios e universidades jesuítas por toda a Europa. Tentavam
opor o catolicismo romano, sobretudo através do ensino e da pregação, à
expansão protestante. Após o Concílio de Trento foram eles quem mais difundiu a
mensagem católica através da evangelização. E foram eles os religiosos que foram
objeto de mais intrigas, perseguições e expulsões – até à extinção.
A Companhia
de Jesus esteve presente nos movimentos de colonização e missionação portuguesa
e espanhola. A sua função era evangelizar os colonos e os povos autóctones. O
movimento mais famoso foi na América do Sul, tanto no Brasil português como no
Império Brasileiro. Francisco Xavier e os seus sucessores estabeleceram missões
na Índia, Japão, interior da China e na costa de África.
Nesta
linha de renovação da Igreja a partir do seu interior, distinguiram-se outras
congregações (como a do Oratório, fundada por São Filipe de Néry) e vultos de
relevo, de que destaco, a título de exemplo: Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, Manuel
da Nóbrega, António Vieira e Manuel Bernardes, em Portugal; Roberto Belarmino e
Carlos Borromeo, em Itália; e João de Ávila, Teresa de Jesus e João da Cruz – brilhantes
na espiritualidade, doutrina e ação. (cf A. Afonso. Curso de História da Civilização Portuguesa.
Porto Editora: 6.ª edição).
***
Porém,
apesar de ser mais o que une os cristãos do que aquilo que os separa, parece
tardar a realização do desígnio de Cristo, “Ut
unum sint”! Até quando? Importa, pois, fazer do V centenário da separação o
ponto de reencontro sob o signo de uma só grei em redor do Pastor.
Sem comentários:
Enviar um comentário