quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Comemorar um evento que abriu uma brecha de separação

Há uns anos a esta parte, estranhei que duas freguesias tivessem festejado o centenário da sua desvinculação de um determinado concelho em vez de assinalarem a sua adesão ao concelho em que foram incorporadas. Alguém me dizia que dava no mesmo. É verdade, mas eu não concordava com a perspetiva por me parecer negativa.
Vem este facto, verificado no ano de 1996, a propósito de uma local que li hoje no Osservatore Romano on line sobre a Conferência da Região Europeia da Federação Luterana Mundial (FLM), que teve lugar em Roma de 27 a 29 de outubro, destinada a preparar o V centenário da Reforma, que se celebrará em 2017.
No âmbito da referida Conferência, foi organizada uma mesa redonda sobre a dimensão ecuménica da celebração daquele centenário, em que interveio o cardeal Kurt Koch, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, que enunciou auspiciosamente a trilogia “diálogo, memória e esperança” como constituindo as três diretrizes que luteranos e católicos estão chamados a seguir para rendibilizar o ensejo de encontro de um caminho comum que deve ser percorrido por ocasião dos quinhentos anos da Reforma.
É óbvio que historicamente a Reforma, que os católicos se apressaram a cognominar de protestante, surgiu como um grito de autonomia, refontalização bíblica para adequação da Palavra de Deus à vida quotidiana, alguns equívocos doutrinais e clamor contra o luxo e ostentação da Igreja institucionalizada. Dada a mútua cristalização de posições, o evento resultou num facto gerador de separação de cristãos a nível orgânico, doutrinal e disciplinar que resultou num devir de séculos de Igrejas cristãs de costas voltadas.
Para o supradito purpurado a comemoração de um evento gerador de tão profunda divisão entre batizados e autodenominados seguidores de Cristo deve constituir ocasião propícia para se tirar partido da caminhada intensa valorizadora dos cinquenta anos de diálogo entre a Igreja católica e as comunidades luteranas, a partir da postura ecuménica de João XXIII, da encíclica Ecclesiam Suam, de Paulo VI, e do concílio Vaticano II (sobretudo com o decreto Unitatis Redintegratio, sobre o ecumenismo), que servem de sancionamento e reforço do movimento ecuménico iniciado de forma pioneira por não católicos no dealbar do século XX. Kurt Koch sugere que se proceda à memória crítica dos conflitos que surgiram na Europa depois da Reforma, ou seja, “um modo para manifestar a esperança numa unidade mais profunda”, como será desejável questionar todas as razões que deram azo ao largo movimento de contestação quinhentista.
A Conferência mencionada compagina um encontro que proporcionou a ocasião para apresentar o caminho preparatório das comemorações do jubileu da Reforma e as suas implicações ecuménicas, sendo de salientar a receção do documento Do conflito à comunhão, redigido pela comissão de estudo conjunto luterano-católico.
Bem espero que o V centenário da Reforma, em 2017, seja palco de esforços ecuménicos tão significativos e fecundos como esperamos que, do lado mariano, o I centenário fatimita seja de aprofundamento, gratidão e súplica à Mãe de todos os homens para que os filhos deixam de se digladiar, se aúnem todos em torno da árvore cruz e se reúnam em grande cenáculo de oração com Maria de modo que o Espírito torne a Igreja cada vez mais em saída. E há tanto que fazer, como todos reconhecem, que não há muito tempos para afinar e reafinar instrumentos de combate, mas é necessário otimizar os instrumentos de ação evangelizadora, santificadora e de luta pela justiça.
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Considero, no entanto, conveniente uma pequena resenha histórica da reforma ou reformas e seu reverso, expostos de forma sucinta (cf J. Duroselle, História da Europa. Publicações Dom Quixote: 1990).
A partir do século XVI, a Igreja Católica deixou de suscitar confiança generalizada no seu poder temporal e em muito da sua mundivisão, o que deu lugar ao começo de contestação, primeiro, de forma larvar e, depois, de forma sistemática e quase a caminho de generalização. Tal contestação acabou por ser extensiva à dimensão espiritual. Num momento em que as mudanças sociais, económicas e culturais varriam a Europa, o poder da Igreja deixava de corresponder aos anseios da nobreza, que via o seu prestígio a esboroar-se, e da emergente burguesia, que pretendia ter voz na condução do poder. Membros da própria Igreja, como o frade agostiniano e professor Martinho Lutero, propuseram uma ampla reforma religiosa, que, mercê da radicalização de posições da Cúria Romana e dos corifeus da reforma nascente, deu origem às religiões denominadas como protestantes. Tal movimento, além de se opor frontalmente à Igreja de Roma, respondia às ambições de poderio nacional – o que hoje alguém chamaria de “soberanismo” – e instaurou a ideologia do cuius regio huis religio, o que deu azo a que o príncipe fosse no seu reino o chefe da Igreja nacional.
Assim, a Reforma iniciada por Lutero foi um movimento de caráter religioso, surgido na Alemanha na segunda década do século XVI, mas de nítidas consequências políticas. O movimento liderado por Lutero criticava várias ações da Igreja Católica, nomeadamente a pregação das indulgências, com seus excessos, sob a égide do Papa Leão X, que tinha em vista a conclusão das obras da Basílica de São Pedro. O reformador, que não obteve a renovação da Igreja a partir de dentro, propôs novos caminhos para o cristianismo, que, em rutura com a Igreja de Roma, conduziram à criação da Igreja Luterana, com o indefetível apoio da nobreza da Alemanha.
Além dos excessos que emolduravam a pregação das indulgências, Lutero e seus apoiantes censuravam a centralização do poder eclesiástico nas mãos do Papa, bem como a concentração de terras nas mãos da Igreja, o que gerava descontentamento da parte da nobreza alemã, que via com maus olhos o excessivo poder político e económico da Igreja. Por outro lado, a crise institucional e moral por que passava a Igreja Católica ao tempo constituía motivo de escândalo para muitos. Perante as orelhas moucas da Cúria Pontifícia, Lutero afixou, em 1517, as suas 95 teses na porta da igreja de Wittenberg. As teses luteranas criticavam a “venda de indulgências” e, de forma explícita, questionavam o poder papal e algumas práticas católicas, além de proporem uma ampla reforma religiosa. Estas teses circularam pela Alemanha conquistando, principalmente, como se deixou entrever, a simpatia de nobres (nomeadamente príncipes e senhores feudais).
Em 1520, o Papa Leão X exigiu a retratação de Lutero, que não só não se retratou como queimou em praça pública o documento papal. Foi publicamente excomungado e considerado o novo cismático e herege. Protegido pelo príncipe da Saxónia, refugiou-se no castelo de Wartburg, local onde passou a traduzir a Bíblia para a língua alemã.
Os princípios doutrinais do luteranismo, divulgados em 1530, podem sintetizar-se nos seguintes itens: salvação pela fé e não pelas obras; presença da verdade revelada exclusivamente na Bíblia, pondo de parte a Tradição; extinção do clero regular, considerando a vida religiosa como excrescente e inútil; livre interpretação da Bíblia (ou livre exame), sem a necessidade de pregadores, padres ou outros intermediários; eliminação de tradições e rituais nos cultos religiosos; fim do celibato eclesiástico (que leva à proibição do casamento de padres e membros do “clero regular”: frades e freiras); proibição do uso de imagens nas igrejas; uso do alemão (e por extensão, o uso da língua vernácula) no culto religioso (não mais o latim como única língua); adoção da Eucaristia e do Batismo como únicos sacramentos válidos.
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Perante o movimento luterano, a que se seguiram outros, como o calvinista, o hussita, o zwingliano e o anglicano, a situação da Igreja Católica, em meados do século XVI, tornou-se bastante problemática: perdera metade da Alemanha, toda a Inglaterra e os países escandinavos; estava em recuo na França, nos Países Baixos, na Áustria, na Boémia e na Hungria.
Por isso, ela sentiu a necessidade de se reformar a partir de dentro. E veio o movimento da Contrarreforma, assim designado pelos reformadores não católicos, que foi uma barreira colocada pela Igreja contra a crescente onda do protestantismo. Para enfrentar as novas doutrinas, a Igreja Católica lançou mão de uma arma muito antiga, a Inquisição. O Tribunal da Inquisição foi muito poderoso na Europa nos séculos XIII e XIV, mas no decurso do século XV, perdeu sua força. Entretanto, em 1542, este tribunal foi reativado para perseguir e julgar, já não os judeus e mouros, mas os indivíduos acusados de praticar ou difundir as novas doutrinas protestantes. E, percebendo que os livros e impressos tinham sido muito importantes para a difusão da ideologia protestante, graças à invenção da Imprensa por Guttemberg, o Papado instituiu, em 1564, o Index Librorum Prohibitorum, uma lista de livros elaborada pelo Santo Ofício, cuja leitura era proibida aos fiéis católicos.
Para pôr cobro aos abusos internos e definir com a necessária clarividência a sua doutrina, a Igreja organizou o já mencionado Concílio de Trento (1545-1563). É certo que a Igreja perdia adeptos e assistia à contestação e rejeição dos dogmas, mas demonstrou, no Concílio, que ainda era muito poderosa e tinha capacidade de reação. Aquelas duas medidas detiveram o avanço do protestantismo, sobretudo em Itália, Espanha e Portugal.
Entre as medidas tomadas, desatacam-se:
– A organização da disciplina do clero (os padres deveriam estudar e formar-se em seminários, não podendo a ordenação sacerdotal ser conferida antes dos 25 anos nem a episcopal antes dos 30 anos);
– O estabelecimento da dupla fonte da revelação cristã: a Sagrada Escritura (a Bíblia) e a Tradição (apenas a hierarquia da Igreja era legítima autoridade para a interpretação da Bíblia);
– A manutenção dos princípios de valia das obras, do culto da Virgem Maria e dos santos, bem como das respetivas imagens;
– A reafirmação da autoridade do Papa e do dogma da transubstanciação.
A consequência mais importante deste Concílio foi o fortalecimento da autoridade do papa, que, a partir de então, passou a ter incontestavelmente a palavra final sobre os dogmas defendidos pela Igreja Católica.
A partir da Contrarreforma, surgiram novas ordens e congregações religiosas, como a Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola em 1534. A Companhia organizou-se em moldes quase militares e fortaleceu a posição da Igreja dentro dos países europeus que permaneciam católicos. Criaram escolas, onde eram educados os filhos de famílias com poucos recursos; foram confessores e educadores de várias famílias reais; fundaram colégios e missões para difundir a doutrina católica nas Américas e na Ásia.
Fundada a obra por Inácio de Loiola em 1534, obteve para ela o reconhecimento do Papa Paulo III em 1540. A bula papal definia as três principais tarefas dos jesuítas: confissão, ensino e pregação. Os seus membros deviam lealdade ao Papa e à companhia em geral (para além dos clássicos votos de pobreza, obediência, castidade). Obedeciam a uma preparação muito rigorosa, o que originava a sua magnífica aptidão para chamar até si os fiéis. O seu objetivo era a recuperação de antigos católicos perdidos para o protestantismo e arrancar outros das malhas do paganismo. Ao mesmo tempo que levavam a Igreja às pessoas, faziam voltar as pessoas para a Igreja. Faziam-no através de missões em que os missionários se mostravam aptos para oferecer uma oportunidade de conversão e também para instruir aqueles que já tinham fé. Proporcionavam uma forma célere de chegar a Deus, o que acabava por ser exatamente aquilo o que as pessoas procuravam. A melhor forma de trazer os países à religião católica e mantê-los nela era atrair a atenção e devoção de reis e nobres.
Os jesuítas tornam-se um tipo muito especial de educadores, que dão especial relevo à instrução, num regime pedagógico, que tinha em grande linha de conta a disciplina, aberto às ciências e às artes, com destaque para o teatro. O serviço do ensino toma maior importância a partir de 1547, acabando por se tornar a tarefa principal destes servidores eclesiásticos. A partir desta data, multiplicam-se os colégios e universidades jesuítas por toda a Europa. Tentavam opor o catolicismo romano, sobretudo através do ensino e da pregação, à expansão protestante. Após o Concílio de Trento foram eles quem mais difundiu a mensagem católica através da evangelização. E foram eles os religiosos que foram objeto de mais intrigas, perseguições e expulsões – até à extinção.
A Companhia de Jesus esteve presente nos movimentos de colonização e missionação portuguesa e espanhola. A sua função era evangelizar os colonos e os povos autóctones. O movimento mais famoso foi na América do Sul, tanto no Brasil português como no Império Brasileiro. Francisco Xavier e os seus sucessores estabeleceram missões na Índia, Japão, interior da China e na costa de África.
Nesta linha de renovação da Igreja a partir do seu interior, distinguiram-se outras congregações (como a do Oratório, fundada por São Filipe de Néry) e vultos de relevo, de que destaco, a título de exemplo: Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, Manuel da Nóbrega, António Vieira e Manuel Bernardes, em Portugal; Roberto Belarmino e Carlos Borromeo, em Itália; e João de Ávila, Teresa de Jesus e João da Cruz – brilhantes na espiritualidade, doutrina e ação. (cf A. Afonso. Curso de História da Civilização Portuguesa. Porto Editora: 6.ª edição).
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Porém, apesar de ser mais o que une os cristãos do que aquilo que os separa, parece tardar a realização do desígnio de Cristo, “Ut unum sint”! Até quando? Importa, pois, fazer do V centenário da separação o ponto de reencontro sob o signo de uma só grei em redor do Pastor.

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