São
já conhecidos alguns dos contornos da Operação
Labirinto, designativo do processo de investigação de uma rede que
implicava altas figuras do aparelho administrativo do Estado na consecução de luvas
para a atribuição dos vistos dourados.
A
este respeito, João Miguel Tavares, no Público
de hoje, pronuncia-se desde logo pela imoralidade da lei que permite a atribuição
dos tais vistos. Afirma com toda a clarividência que estes vistos são uma
imoralidade digna dos países do Terceiro Mundo, “onde certos princípios
elementares são torpedeados porque é preciso ganhar a vida”. E, ironizando o
facto de esta legislação ter surgido do setor da democracia cristã, o conhecido
colunista aconselha Paulo Portas a prestar melhor “atenção às homilias de
domingo”, já que este sistema de concessão de residência viola o princípio de
igualdade, princípio que deveria ser objeto de estrita observância quer no atinente
a cidadãos nacionais quer no respeitante a cidadãos estrangeiros.
Ora,
sendo assim, será de estranhar como é que nenhuma das competentes entidades habilitadas
para o efeito não terá suscitado a fiscalização sucessiva da
constitucionalidade e da legalidade da lei n.º 29/2012, de 9 de agosto, que
introduz alterações à lei n.º 23/2007, de 4 de julho, “que aprovou o regime
jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do
território nacional”.
Tavares,
em apoio da sua tese de que a lei viola o princípio da igualdade, vai ao ponto
de assegurar, caricaturizando, que “nenhum de nós admitiria que direitos fundamentais
como a residência ou circulação estivessem dependentes do tamanho da nossa
conta bancária”.
Mais:
a 29 de janeiro do ano seguinte, um mero despacho alterou os pressupostos
originais: a exigência da criação de postos de trabalho, em empresa a
constituir ou a transferir, decresce de 30 para 10 (se só foram criadas três);
os investimentos imobiliários podem ser feitos em regime de compropriedade; e a
transferência de capitais pode ser feita através de quotas de empresas não cotadas
em bolsa. Quer dizer que, além da fiscalização da constitucionalidade e da
legalidade das leis e dos decretos-lei, deveria colocar-se o problema da
fiscalização dos despachos e dos comportamentos. Por outro lado, um sistema
legal de dourada “Autorização de Residência para Atividade de Investimento em
Portugal” é simplesmente um nome sonante a designar eufemisticamente uma rampa
de lançamento para a captação de dinheiro sujo e não um processo de investimento
honesto e sustentável.
Entretanto,
o Ministro Miguel Poiares Maduro vem à ribalta política e mediática com a argumentação
de que o facto de o sistema ter sido palco de corrupção não invalida a validade
e a viabilidade da lei, aduzindo o exemplo de que não é pelo facto de eventualmente
haver corrupção na construção de um hospital que se deixarão de construir hospitais.
É apenas mais um dos casos em que Maduro insulta a inteligência dos
portugueses, já que a construção do hospital é de interesse público e comum, ao
passo que os vistos Gold são do
interesse de poucos, que pouco ou nada dizem à população. E se ao menos constituíssem
uma significativa mais-valia para o equilíbrio orçamental ou para a amortização
da dívida soberana…
Assim,
não basta que a opinião pública fique espantada por a Operação Labirinto ter
desembocado neste cenário. É claro que é surpreendente a forma, a velocidade e
o sistema de rede como a corrupção atingiu os estratos mais elevados do
funcionalismo público. Estamos, contudo, perante uma lei que de si alberga a
possibilidade de tantos esquemas ínvios, pelo que chegar aonde se chegou ao abrigo
desta lei é pura consequência das condições da sua génese e elaboração. Tanto assim
é que, perante a informação que veio a público de que o dono dos Serviços de informação
e Segurança (SIS) fora objeto de imagens captadas pela PJ estando ele no
gabinete do Presidente do Instituto de Registos e Notariado (IRN), os interessados
alegam que tudo o que ali foi feito era legal. Pudera! E o diretor do SEF declarou
publicamente que aligeirou processos de vistos gold por instruções políticas superiores.
Depois, veio a saber-se que o Presidente do IRN fora avisado de
que estava sob investigação, que tivera conhecimento, por antecipação, do dia
em que seria visitado e que pedira ao seu amigo do SIS a fineza de proceder à limpeza
de uma série de escutas.
***
Por seu turno, Duarte Branquinho, em O Diabo de hoje, tem uma opinião diferente, mas de consequências
similares. Não discute o editorialista deste semanário se a dita “Autorização de
Residência para Investimento”, datada de 2012, é uma boa medida ou não. Opina,
mesmo, que não é o facto de os resultados serem estes que a torna má. Põe, entretanto,
o acento na temática da unidade nacional, aliás à semelhança de Tavares.
Depois, questiona pertinentemente se esta magna operação policial
virá a mostrar que “a justiça funciona e chega ao topo da pirâmide”. E a razão
do seu ceticismo funda-se na experiência acumulada com os casos anteriores, os
quais, “depois do espalhafato mediático”, nada ou pouco permitiram demonstrar,
ficando a pairar no ar a ideia de que os grandes ficam impunes.
Assim, o editorialista mencionado sugere que ninguém tenha ilusões.
Se há quem veja nesta mega operação “a coragem de Teseu, que derrotou o Minotauro”,
é preciso que se saiba que, “no atual sistema, não há heróis e a besta e o
Dédalo confundem-se”. E recorda uma verdade eloquente: a resposta de solução
para os casos de corrupção “está nos valores imateriais que nos devem guiar,
está na verticalidade perante princípios, nunca num caso de polícia”. Afirma, ainda,
que “a corrupção é o próprio labirinto” e muitos podem ficar “presos na rede
por eles criada”.
***
Miguel Macedo, embora tenha confessado que nada de pessoal tem a
ver no caso, ponderou e reponderou, tirou consequências políticas e demitiu-se
(exemplarmente, não o fez de imediato e de cabeça quente), sendo já conhecida a
sua sucessora. Resta saber se a sua correligionária da Justiça também tirará
consequências políticas, já que as não tirou no caso do Citius, mesmo depois de ver arquivado o processo daqueles que ela
queria inscrever no martirológio criminal por razões políticas. Não sei se
mesmo Paulo Portas, o responsável pela génese da lei supramencionada, segundo
João Miguel Tavares, se demite, à semelhança de Macedo ou carpe um pedido de
desculpa histórico como o de Crato ou aparentemente frio como o de Paula Teixeira
da Cruz. E afinal, alguém que diga de quem partiram as ditas instruções políticas
para o alegado aligeiramento dos processos de vistos gold?
Como diz o referido colunista do Público, “dizer que não há ilações políticas a tirar daqui, é apenas
atirar mais areia para os nossos agastados olhos”. Porém, Teixeira da Cruz,
perante a detenção e constituição de arguido desta mais que dezena de altos funcionários,
alguns da área do seu Ministério, referiu que não tinha de tirar consequências
políticas, mesmo – digo eu – perante um caso da dignidade dos cidadãos do seu
país altamente insultada.
Mais: declarou o óbvio, que ninguém estava acima da lei, que a
Justiça fará o seu trabalho, que acabou a impunidade, como prometera, e que se
verifica a separação dos poderes, o que não era claro em governos anteriores. É
preciso ter lata para tanto impar de presunção e de água benta!
Sem dúvida que Tavares tem razão quando afirma:
É
por isso que não faz sentido pretender, neste caso, separar o domínio da
justiça do domínio da política – pela simples razão de que esta é uma lei que
se sabia, à partida, ter uma gigantesca probabilidade de atrair dinheiro sujo.
Era obrigação de um legislador avisado precaver-se para que tal não
acontecesse. Como está à vista de todos, não
se precaveu”.
Quanto
a Paula da Cruz, não sei se me interessa muito o que ela afirmou em tempos
sobre a separação de poderes, acentuando a autonomia do Ministério Público e a
independência dos tribunais. Pois, que me importa que os poderes sejam autónomos
e ou independentes, nomeadamente o Ministério Público e os tribunais, se as pessoas
que ocupam os lugares de investigação e decisão o não forem? Como é que se entende
que se verifiquem fugas de informação demolidoras, vigilância apertada sobre a
investigação, coincidências temporais em demasia, tamanho mediatismo nalguns
processos, que, depois, dão em nada ou quase nada, preponderância do poder judicial
avesso a críticas e atreitos a comentários desnecessários?
Os
arguidos deste processo já foram ouvidos e já se conhecem as medidas de coação
a que ficam sujeitos. Mas a procissão ainda não saiu do adro. Chegará ao seu destino
ou os seus componentes ir-se-ão desviando da rota processional?
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