Decorre, entre os dias 19 e 21 de novembro, em Roma, a II
Conferência Internacional sobre Nutrição. No âmbito deste Encontro,
representantes de 170 países assumem o compromisso de adotarem políticas fortes
contra uma nutrição inadequada com ações e investimentos que assegurem o acesso
de todos a uma alimentação sustentável e saudável.
Estes decisores políticos reúnem
com os responsáveis das agências da ONU (Organização
da Nações Unidas) das áreas da agricultura e alimentação (FAO) e da saúde (OMS)
e com outras organizações da sociedade civil. O evento deve ficar marcado pela
chamada ‘Declaração de Roma’ sobre a nutrição – documento que visa comprometer
todos os países na erradicação da fome e na prevenção da desnutrição a nível
global, em particular na alimentação das crianças, bem como no combate à
obesidade.
A ‘Declaração de
Roma’ não é uma excrescência do politicamente correto; vem, antes, consagrar
incontornável “direito de todos ao acesso a alimentos seguros, suficientes e
nutritivos” e comprometer “os governos a prevenir a nutrição inadequada em
todas as suas formas, incluindo a fome, as deficiências de micronutrientes e a
obesidade”.
Em mensagem endereçada, a 17 de
outubro, ao Professor José Graziano da Silva, diretor-geral da FAO, o Papa
Francisco apelou à eliminação da especulação financeira com os preços dos
alimentos e ao combate ao desperdício, como formas necessárias de ultrapassar o
flagelo da fome no mundo. O Pontífice defende que, para eliminar a fome, não é
suficiente acorrer às situações de emergência, mas é necessária a mudança radical
do “paradigma das políticas de ajuda e de desenvolvimento”, para além da
alteração substancial das “regras internacionais” em matéria de produção e comercialização
de produtos agrícolas. E escreveu com meridiana clarividência: “Quem sofre com a insegurança alimentar e a
subnutrição são pessoas e não números: precisamente pela sua dignidade de
pessoas, estão acima de qualquer cálculo ou projeto económico”.
Por seu turno, a Dra Margaret
Chan, diretora-geral da OMS
(Organização Mundial de Saúde),
declara: “Algo está errado. Uma
parte do nosso mundo desequilibrado ainda morre à fome; outra parte
empanturra-se, levando a obesidade a fazer cair a esperança média de vida e a
fazer subir os custos com cuidados de saúde para valores astronómicos”.
Nos documentos adotados nestes dias estabelecem-se recomendações
em ordem à definição e concretização de políticas e programas que permitam
enfrentar de vez as questões da nutrição em múltiplos setores.
Por sua vez, o Quadro de Ação reconhece aos governos cabe o
papel e a responsabilidade principal da resposta às questões e aos desafios
nutricionais, em diálogo com um vasto leque de intervenientes, incluindo a
sociedade civil, o setor privado e as comunidades afetadas.
De acordo com a FAO (Organização
das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), os números não
são nada tranquilizadores: apesar de os registos de fome terem caído 21% desde
o biénio 1990/1992, mais de 800 milhões de pessoas no mundo ainda passam fome.
***
Hoje, dia 20, o Papa Francisco visitou, em Roma,
a sede da organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
(FAO), associando-se à II Conferência Internacional sobre Nutrição e perante
cujo plenário proferiu
uma lancinante alocução.
Depois de saudar os dirigentes da Conferência e
de enaltecer o mérito da iniciativa (destacando a “total unidade de propósitos
e de obras” e o grande “espírito de fraternidade”), referenciou o papel da Igreja
nestas questões: “A Igreja, como sabeis, procura estar atenta e solícita a tudo
o que diz respeito ao bem-estar espiritual e material das pessoas, sobretudo
das que vivem marginalizadas e são excluídas, a fim de que se lhes garanta a
sua segurança e a sua dignidade”.
Depois compartilhou uma suculenta reflexão de que
destacam os oito pontos seguintes:
1. A preocupação pela pessoa humana, sobretudo a que sofre
Se os destinos das nações estão cada vez mais
entrelaçados e interdependentes, também é certo que as relações se encontram
amiúde ameaçadas de suspeita recíproca, que pode conduzir à agressão bélica e
económica, a qual desfalca amizade e descarta o já excluído. Ora, a soberania e
os interesses de cada Estado, se forem entendidos como absolutos e liderados
por pequenos grupos de poder, impedem a abertura aos problemas de quem sofre na
pele a carência do “pão de cada dia e de um trabalho decente”. Demais, a validade
da assunção de compromissos na linha da correta nutrição decorrerá do facto de os
Estados se quererem inspirar “na convicção de que o direito à alimentação só
ficará garantido se nos preocuparmos com o seu sujeito real, ou seja, a pessoa
que sofre os efeitos da fome e da desnutrição”.
2. Dignidade, não esmola
Ao propalarmos os direitos, olvidamos
frequentemente os deveres. Talvez resida neste facto a falta de suficiente preocupação
pelos que passam fome. Por outro lado a “prioridade do mercado” e a primazia e
preeminência da ganância reduziram os alimentos à categoria de simples
mercadoria, sujeita à especulação, mesmo a financeira. Por isso, enquanto se
enunciam novos direitos, o faminto permanece ali, na esquina da rua a solicitar
a carta de cidadania, a consideração da sua condição, a perceção de uma
alimentação de base sadia. “Ele pede-nos dignidade, não esmola”.
3. Passagem da teoria à prática
Não bastam as formulações teóricas por mais
criteriosas que se afigurem. Pessoas e povos exigem a prática da justiça, não
só a legal, mas também a contributiva e a distributiva. Assim, os planos de
desenvolvimento e de trabalho têm de considerar este desejo e verificar se “se
respeitam em todas as circunstâncias os direitos fundamentais da pessoa humana
e, no nosso caso, a pessoa com fome”. Se assim for, também as intervenções
humanitárias e as operações urgentes de ajuda ou de desenvolvimento (o
verdadeiro e integral desenvolvimento) lograrão um melhor impulso e o fruto
desejado.
4. O paradoxo da abundância
Embora o interesse pelas questões dos alimentos
(produção, disponibilidade e acesso), as mudanças climáticas e o comércio
agrícola devam configurar regras e medidas técnicas, todavia, a grande e
permanente preocupação “deve ser a pessoa em si mesma, os que precisam de
alimento diário e deixaram de pensar na vida, nas relações familiares e
sociais, e apenas lutam pela sua sobrevivência”.
Já na inauguração da I Conferência sobre
Nutrição, em 1992, João Paulo II denunciou perante a comunidade internacional o
paradoxo desafiante, que mantém hoje toda a sua atualidade: “Há comida para
todos, mas nem todos podem comer, ao passo que o desperdício, o descarte, o
consumo excessivo e o uso dos alimentos para outros fins estão diante dos
nossos olhos”. É a terrível hipotipose negativa dos nossos dias!
E esta matéria está sujeita a imensos sofismas,
manipulação de dados, mascaramento de estatísticas, exigência de segurança
nacional, corrupção, refúgio na crise económica.
5. Solidariedade
Contra a tentação sub-reptícia de retirar este
vocábulo do dicionário comum e contra o individualismo e divisionismo
crescentes, é necessário reafirmar que a solidariedade é a atitude que torna as
pessoas capazes de saírem ao encontro do outro, de estribarem as suas mútuas
relações no sentimento de fraternidade que ultrapassa as diferenças e
limitações e induz à procura do bem comum.
6. Lei natural
É fonte
inesgotável de inspiração de pessoas e povos, conscientes da sua
responsabilidade pelo desígnio da criação, a lei natural. Inscrita no coração
humano leva ao respeito mútuo, contra a destruição, danificação e
empobrecimento do Planeta. Todos entendem a linguagem do amor, da justiça, da paz
– enquanto elementos indissociáveis entre si. Tal como as pessoas, também os
Estados e as outras instituições internacionais estão na rota do acolhimento e cultivo
destes valores, sendo pelos sãos princípios do direito internacional que se
deve pautar toda a família humana.
7. Em prol das
garantias dos mais necessitados
Todos –
homens, mulheres, crianças e idosos – devem contar com as garantias de
satisfação das suas necessidades básicas, constituindo este o dever de todos os
Estados, que requer perseverança e apoio. Também a Igreja Católica procura
oferecer neste campo o seu contributo, mediante a constante atenção à vida dos
pobres e necessitados em qualquer lugar que se encontrem. Pretende outrossim
contribuir para a identificação e assunção dos critérios (éticos e jurídicos)
que devem orientar o desenvolvimento de um sistema internacional equânime. Do
ponto de vista do olhar ético, esses critérios alicerçam-se nos valores axiais
da verdade, da liberdade, da justiça e da solidariedade; no campo jurídico,
implicam a relação entre o direito à alimentação e o direito à vida e a uma
existência condigna, o direito à proteção da lei (nem sempre próxima de quem
passa fome) e a obrigação moral de compartilhar a riqueza económica do mundo.
8. Unidade da família
humana
Trata-se de
um princípio fundado na paternidade de Deus Criador e na consequente irmandade
de todos os homens, o que torna inaceitável qualquer pressão política e
económica que leve ao afastamento da oportunidade de alimentação de quem quer
que seja, bem como à destruição ou depauperamento dos recursos da “nossa irmã e
mãe terra”.
Neste
contexto, Francisco, ao insistir na obrigação de todos de cuidarmos do Planeta,
aduziu um ensinamento que ouvira a um idoso há muitos anos: “Deus perdoa sempre
as ofensas, os maus tratos; os homens perdoam às vezes, mas a terra nunca
perdoa”. Pelo que, também por esta razão, é preciso “cuidar da irmã terra, da
mãe terra para que não responda com a destruição”. Mas, acima de tudo – diz Francisco
– “nenhum sistema de discriminação, de direito ou do direito, vinculado à
capacidade de acesso ao mercado dos alimentos, deve ser tomado como modelo das
atuações internacionais que se propõem eliminar a fome.
***
Na sua intervenção, o Papa aludiu às
“problemáticas e sofrimentos” das populações que “têm o direito a ver melhorar
as suas condições de vida”.
No quadro da
sua linha discursiva no plenário, o Papa agradeceu o trabalho dos profissionais da organização das
Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura em resposta a “situações
dramáticas das pessoas provadas pela fome e pela sede”. Agradeceu o serviço da
organização internacional “que assume o objetivo de reduzir a fome crónica” e
desenvolver “os setores da alimentação e da agricultura”. E, sublinhando a
necessidade da utilização e da superação dos valores meramente técnicos,
afirmou: “Há muita necessidade de pessoas que se distingam não só pelo
profissionalismo mas também por um sentido apurado de humanidade, de compreensão
e de amor”.
Francisco encerrou a sua intervenção – sob os
aplausos dos presentes e gritos de ‘Viva o Papa’ – com votos de que a FAO ajude
a devolver a “dignidade” a quem sofre.
E,
depois do discurso, prosseguiu em declarações como a seguinte: “A água
não é grátis, como pensamos tantas vezes. Será o grave problema que poderá levar-nos
a uma guerra”.
Durante a sua estadia no local, Francisco ainda se
reuniu em privado com Letícia, a rainha de Espanha.
***
Que as declarações consensuais dos
documentos produzidos passem à prática efetiva para boa consciência pessoal e
coletiva e sobretudo para a dignidade de quem sofre; e o mundo será cada vez mais
mundo de todos e de cada um!
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