terça-feira, 25 de novembro de 2014

A Solenidade de Jesus Cristo Rei do Universo

A liturgia do último domingo do ano litúrgico, que este ano caiu a 23 de novembro, oferece aos crentes católicos a celebração da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo.
A aparente pomposidade do título atribuído a Jesus de Nazaré pode dar azo a interpretações de consequências díspares e pouco consentâneas com o sentido da economia da Salvação.
Designar alguém como soberano de todo o mundo pode equivaler na prática à subestimação do título, dado que usualmente quem manda em tudo acaba por não mandar em nada. Arrisca-se a ser soberano de nada ou quase nada. Por outro lado, dizer-se lhanamente que o reino de Cristo é um reino que não é deste mundo ou que é um reino espiritual pode tranquilizar indevidamente os incautos. Se é espiritual ou do outro mundo, não traz, segundo muitos, consequências para a vida dos homens.
Também sucedeu que no devir histórico a Igreja pareceu sucumbir à tentação de se constituir em reino literal de Cristo, em que o Papa era o seu vice-rei ou o alter ego de Cristo, o rei na terra, a quem imperadores e reis deveriam obediência (ainda hoje o designamos como o “digno Pastor de toda a Cristandade”). Aqui, os hierarcas sagrados esqueceram-se de que a realeza de Cristo se reflete na Igreja, não no seu esplendor e poderio social e político, mas na vivência da justiça e da caridade. O rei, que não delegou o poder régio absoluto em ninguém, virá como Filho do Homem na Sua glória com todos os Seus anjos e sentar-se-á no Seu trono e em Seu redor se reunirão todos os povos (cf Mt 25,31-32). Mas isso será somente no fim dos tempos. Para esse esplendor manifestado em Cristo ou na Sua Igreja o hoje é demasiado cedo.
Por isso, temos de aferir e purificar a noção do reinado de Cristo. Perante Pilatos, Ele confessou que efetivamente é Rei. Mas a sua marca não é o cetro, a coroa ou um trono concebido à maneira humana. A origem é de nascimento (para isso nasci), a sua missão era vir até ao nosso meio (para isso vim ao mundo) e sua marca é a verdade (a fim de dar testemunho da verdade) – cf Jo 18,37. Ora, só isto já verte consequências na vida das pessoas e das instituições – a verdade acima de tudo, em palavra e ato. O autor do mal e o pai da mentira é Satanás.
Todo aquele que é da verdade escuta a voz de Cristo, o Rei (cf Jo 18,38); os sequazes de Satanás ou não ouvem a voz de Cristo ou fazem de conta que a não ouvem.
Entretanto, não podemos deixar de assumir que o reino de Cristo, embora não seja deste mundo, já cá está implantado. Veja-se a perícopa do início da pregação em São Marcos: “Jesus foi para a Galileia e proclamava o Evangelho de Deus, dizendo: Completou-se o tempo e o reino de Deus está próximo: arrependei-vos e acreditai no Evangelho”. Estar próximo significa estar entre nós. Por outro lado, quase todas as parábolas se enquadram na bitola da semelhança com o reino de Deus. E a base das parábolas costuma ser um facto da natureza ou da vida real.
Também quando o Rei vier no fim dos tempos a julgar colocando os cordeiros à sua direita e os cabritos à sua esquerda conforme se pode ler na parte final do capítulo 25 de São Mateus, é de supor que estes cordeiros (metáfora dos bons) e estes cabritos (metáfora dos réprobos) nasceram e cresceram aqui e agora, no tempo histórico. O evangelho fala do Juízo final e os critérios de mérito e de condenação estribam-se nas ações ou nas omissões assumidas pelos homens no decurso da sua vida terrena.
Ele, que estava nos céus, também aqui estava todos os dias (cf Mt 28,20); o reino onde os bons vão gozar a eternidade foi preparado para eles desde o início do mundo; já, o inferno foi criado para o demónio e seus anjos (seus seguidores e mensageiros). E o que se fez ou deixou de fazer ao próximo deixou de se fazer a Cristo. Mais: condena-se não só a má ação, mas a omissão da ação boa:
O Rei dirá, então, aos da sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo.’ Então, os justos vão responder-lhe: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber? Quando te vimos peregrino e te recolhemos, ou nu e te vestimos? 39E quando te vimos doente ou na prisão, e fomos visitar-te?’ E o Rei vai dizer-lhes, em resposta: ‘Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes.’
Em seguida dirá aos da esquerda: ‘Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que está preparado para o diabo e para os seus anjos! Porque tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, era peregrino e não me recolhestes, estava nu e não me vestistes, doente e na prisão e não fostes visitar-me.’ Por sua vez, eles perguntarão: ‘Quando foi que te vimos com fome, ou com sede, ou peregrino, ou nu, ou doente, ou na prisão, e não te socorremos?’ Ele responderá, então: ‘Em verdade vos digo: Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer.’
Estes irão para o suplício eterno, e os justos, para a vida eterna. (Mt 25,34-46).

Na conversação com os discípulos, o Mestre explica, sobretudo aos putativos candidatos a lugar a sua direita e à sua esquerda lá no seu reino, como deve ser a atitude dos discípulos no mundo, bem como a atitude messiânica de Jesus – atitude de serviço e não de poder:
Sabeis como aqueles que são considerados governantes das nações fazem sentir a sua autoridade sobre elas, e como os grandes exercem o seu poder. Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo e quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se o servo de todos. Pois também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos.

É estranho depararmo-nos com um reino em que aquele ou aqueles que deviam mandar servem.
Na linha deste postulado, um dos títulos papais é de “servo dos servos de Deus”, usado pela primeira vez no século VI por Gregório I como bofetada sem mão em João, o mais rápido, Patriarca de Constantinopla, que assumira o título de Patriarca Ecuménico, reivindicando poder e superioridade sobre o Papa. Como reação, Gregório adotou o título de Servo dos Servos de Deus, como demonstração confessa de humildade evangélica.
***
O Bispo do Porto, na homilia da Solenidade, agrega – e bem – à noção da realeza de Cristo a imagem pastoril que nos dá o texto do Evangelho de Mateus acima extensamente transcrito. Este rei é pastor de ovelhas e enfrenta os cabritos e dá sentença a uns e a outros. E a sentença que proferirá constitui mensagem antecipada para todos os discípulos de hoje como para os de todos os tempos. E essa mensagem é a exigência da solidariedade fraterna vivida em atitudes concretas, constitutiva do futuro que se prepara no hoje do presente.
Com efeito, o reino de Cristo é de índole espiritual, mas não alienável, como se as coisas do espírito fossem de somenos importância. Se o homem culto assume que é o espírito que comanda a vida, sobrepondo-se ao domínio da matéria, com maioria de razão o crente o deve assumir. E a solidariedade fraterna, irrigada pela luz do espírito que pontifica no Evangelho, como Boa Nova, é exatamente o que deve ser denominado de caridade, que pressupõe a justiça realmente assumida em todas as suas vertentes – comutativa, legal, distributiva e social – e constitutiva da dignidade da pessoa humana.
Mas o prelado portuense tem subliminarmente presente o texto do profeta Ezequiel, segundo o qual (Ez 34,11-23), o Senhor se constitui em pastor do Seu povo, pastor-rei como David:
Assim fala o Senhor Deus: «Eis que Eu mesmo cuidarei das minhas ovelhas e me interessarei por elas. Como o pastor se preocupa com o seu rebanho, quando se encontra entre as ovelhas dispersas, assim me preocuparei Eu com o meu. Reconduzi-lo-ei de todas as partes por onde tenha sido disperso, num dia de nuvens e de trevas. Arrancá-los-ei de entre os povos e os reunirei dos vários países, a fim de os reconduzir à sua própria terra e os apascentar nos montes de Israel, nos vales e em todos os lugares habitados da região. Eu os apascentarei em boas pastagens; o seu pasto será nas montanhas elevadas de Israel; estarão tranquilas em bons pastos; comerão em férteis prados, nos montes de Israel. Sou Eu que apascentarei as minhas ovelhas, sou Eu quem as fará descansar (…) Procurarei aquela que se tinha perdido, reconduzirei a que se tinha tresmalhado; cuidarei a que está ferida e tratarei da que está doente. Vigiarei sobre a que está gorda e forte. A todas apascentarei com justiça.» (Ez 34,11-16)

Este pastor-rei tem uma função de solicitude e guarda/cuidado (cuidarei, me interessarei…), de reunião a partir de tudo o que está disperso, apascentação em boas passagens (com bom alimento, comodidade e tranquilidade) e procura da ovelha perdida. O seu critério é o da equanimidade: curar a ovelha ferida, tratar da doente, mas vigiar pela ovelha gorda. Esta é a justiça inclusiva do pastor-rei.
Mas o Senhor não deixa de exercer a justiça avaliativa e morigeradora entre as suas ovelhas, sobretudo contra as que ferem, pisam, estragam e deixam o estragado para outrem e desperdiçam:
Quanto a vós, minhas ovelhas, assim fala o Senhor Deus: Eis que vou julgar entre ovelhas e ovelhas – entre carneiros e bodes. Não era bastante alimentar-vos numa boa pastagem, para que calqueis ainda aos pés o resto do prado? Parece-vos pouco beber água límpida, para irdes turvar ainda o resto com os vossos pés? E as minhas ovelhas devem pastar o que pisastes com os pés e beber o que os vossos pés turvaram? (…) Julgarei entre a ovelha gorda e a ovelha magra. Porque feristes com o flanco e com as espáduas, e investistes com os chifres contra todas as ovelhas fracas até as atirar para fora, Eu virei em socorro das minhas ovelhas, para que elas sejam poupadas à pilhagem; vou julgar entre ovelhas e ovelhas. (Ez 34,17-22).

E, porque os pastores de Israel, em vez de apascentarem as ovelhas, se apascentaram a si próprios, se aproveitaram delas, as exploraram na sua lã, leite e carne (cf Ez 34,3-6), o Senhor designa um pastor-rei veterotestamentário, figura de Cristo, o Messias: “Estabelecerei sobre elas um único pastor, que as apascentará, o meu servo David; será ele que as levará a pastar e lhes servirá de pastor” (Ez 34,23).
É Cristo Senhor, aquele que se assume como descendente de David, quem se afirma o pastor-rei das ovelhas, mesmo daquelas que andam dispersas, que Ele conhece e chama pelo seu nome, que também O conhecem e, ouvindo a Sua voz, O seguem – ovelhas por quem da a vida, porque é o pastor, o bom pastor (cf Jo 10,1-18): “Eu sou o bom Pastor. O bom Pastor dá a vida pelas suas ovelhas” (Jo 10,11).
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Se assumirmos a verdade como o valor axial de nossas vidas, se a nossa prática for a solidariedade fraterna, se a nossa preocupação for a justiça equânime de Deus e se o serviço aos outros, mormente dos que mais precisam for a tal ponto que nos disponha a arriscar a vida pelo semelhante, teremos percebido a grandeza do mistério do reino e a missão do Rei, que nos solicita a reinar com Ele, servindo. É o rei cujo trono é a cruz, cujo manto é a manta de pastor, cujo cetro é o cajado de pastor, cuja coroa são os sofrimentos dos pobres. Com uma dúzia de homens e um grupo de mulheres incendiou o mundo, não precisando de cúria régia, cortes e coortes, nem de casa civil e casa militar, nem de se intitular comandante supremo de quaisquer forças armadas. Não é difícil entender o alcance do reino que não é deste mundo, mas que está entre nós, como nossa tarefa e à nossa disposição e à de todos os homens de boa vontade.

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