A liturgia do último domingo do
ano litúrgico, que este ano caiu a 23 de novembro, oferece aos crentes
católicos a celebração da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do
Universo.
A aparente pomposidade do título
atribuído a Jesus de Nazaré pode dar azo a interpretações de consequências
díspares e pouco consentâneas com o sentido da economia da Salvação.
Designar alguém como soberano de
todo o mundo pode equivaler na prática à subestimação do título, dado que
usualmente quem manda em tudo acaba por não mandar em nada. Arrisca-se a ser
soberano de nada ou quase nada. Por outro lado, dizer-se lhanamente que o reino
de Cristo é um reino que não é deste mundo ou que é um reino espiritual pode
tranquilizar indevidamente os incautos. Se é espiritual ou do outro mundo, não
traz, segundo muitos, consequências para a vida dos homens.
Também sucedeu que no devir
histórico a Igreja pareceu sucumbir à tentação de se constituir em reino
literal de Cristo, em que o Papa era o seu vice-rei ou o alter ego de Cristo, o rei na terra, a quem imperadores e reis
deveriam obediência (ainda hoje o designamos como o “digno Pastor de toda a
Cristandade”). Aqui, os hierarcas sagrados esqueceram-se de que a realeza de
Cristo se reflete na Igreja, não no seu esplendor e poderio social e político,
mas na vivência da justiça e da caridade. O rei, que não delegou o poder régio
absoluto em ninguém, virá como Filho do Homem na Sua glória com todos os Seus
anjos e sentar-se-á no Seu trono e em Seu redor se reunirão todos os povos (cf
Mt 25,31-32). Mas
isso será somente no fim dos tempos. Para esse esplendor manifestado em Cristo
ou na Sua Igreja o hoje é demasiado cedo.
Por isso, temos de aferir e
purificar a noção do reinado de Cristo. Perante Pilatos, Ele confessou que
efetivamente é Rei. Mas a sua marca não é o cetro, a coroa ou um trono
concebido à maneira humana. A origem é de nascimento (para isso nasci), a sua
missão era vir até ao nosso meio (para isso vim ao mundo) e sua marca é a
verdade (a fim de dar testemunho da verdade) – cf Jo 18,37. Ora, só isto já
verte consequências na vida das pessoas e das instituições – a verdade acima de
tudo, em palavra e ato. O autor do mal e o pai da mentira é Satanás.
Todo aquele que é da verdade
escuta a voz de Cristo, o Rei (cf Jo 18,38); os sequazes de Satanás ou não
ouvem a voz de Cristo ou fazem de conta que a não ouvem.
Entretanto, não podemos deixar de
assumir que o reino de Cristo, embora não seja deste mundo, já cá está
implantado. Veja-se a perícopa do início da pregação em São Marcos: “Jesus foi
para a Galileia e proclamava o Evangelho de Deus, dizendo: Completou-se o tempo e o reino de Deus está próximo: arrependei-vos e
acreditai no Evangelho”. Estar próximo significa estar entre nós. Por outro
lado, quase todas as parábolas se enquadram na bitola da semelhança com o reino
de Deus. E a base das parábolas costuma ser um facto da natureza ou da vida
real.
Também quando o Rei vier no fim
dos tempos a julgar colocando os cordeiros à sua direita e os cabritos à sua
esquerda conforme se pode ler na parte final do capítulo 25 de São Mateus, é de
supor que estes cordeiros (metáfora dos bons) e estes cabritos (metáfora dos
réprobos) nasceram e cresceram aqui e agora, no tempo histórico. O evangelho
fala do Juízo final e os critérios de mérito e de condenação estribam-se nas
ações ou nas omissões assumidas pelos homens no decurso da sua vida terrena.
Ele, que estava nos céus, também
aqui estava todos os dias (cf Mt 28,20); o reino onde os bons vão gozar
a eternidade foi preparado para eles desde o início do mundo; já, o inferno foi
criado para o demónio e seus anjos (seus seguidores e mensageiros). E o que se
fez ou deixou de fazer ao próximo deixou de se fazer a Cristo. Mais: condena-se
não só a má ação, mas a omissão da ação boa:
O Rei dirá, então, aos da sua direita:
‘Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado
desde a criação do mundo. Porque
tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e
recolhestes-me, estava nu e
destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter
comigo.’ Então, os justos vão responder-lhe: ‘Senhor, quando foi que te vimos
com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber? Quando te vimos peregrino e te
recolhemos, ou nu e te vestimos? 39E
quando te vimos doente ou na prisão, e fomos visitar-te?’ E o Rei vai dizer-lhes, em resposta:
‘Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais
pequeninos, a mim mesmo o fizestes.’
Em seguida dirá aos da esquerda:
‘Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que está preparado para o
diabo e para os seus anjos! Porque
tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, era peregrino e não me recolhestes,
estava nu e não me vestistes, doente e na prisão e não fostes visitar-me.’ Por sua vez, eles perguntarão: ‘Quando
foi que te vimos com fome, ou com sede, ou peregrino, ou nu, ou doente, ou na
prisão, e não te socorremos?’ Ele
responderá, então: ‘Em verdade vos digo: Sempre que deixastes de fazer isto a
um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer.’
Estes irão para o suplício eterno, e os
justos, para a vida eterna. (Mt 25,34-46).
Na conversação com os discípulos,
o Mestre explica, sobretudo aos putativos candidatos a lugar a sua direita e à
sua esquerda lá no seu reino, como deve ser a atitude dos discípulos no mundo,
bem como a atitude messiânica de Jesus – atitude de serviço e não de poder:
Sabeis como aqueles que são considerados
governantes das nações fazem sentir a sua autoridade sobre elas, e como os
grandes exercem o seu poder. Não
deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo e quem quiser ser o primeiro entre
vós, faça-se o servo de todos. Pois
também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua
vida em resgate por todos.
É estranho depararmo-nos com um
reino em que aquele ou aqueles que deviam mandar servem.
Na linha deste postulado, um dos
títulos papais é de “servo dos servos de Deus”, usado pela primeira vez no século VI por Gregório I como
bofetada sem mão em João, o mais rápido, Patriarca de Constantinopla, que assumira
o título de Patriarca Ecuménico, reivindicando poder e superioridade sobre o
Papa. Como reação, Gregório adotou o título de Servo dos Servos de Deus, como demonstração confessa de humildade
evangélica.
***
O Bispo
do Porto, na homilia da Solenidade, agrega – e bem – à noção da realeza de
Cristo a imagem pastoril que nos dá o texto do Evangelho de Mateus acima
extensamente transcrito. Este rei é pastor de ovelhas e enfrenta os cabritos e
dá sentença a uns e a outros. E a sentença que proferirá constitui mensagem
antecipada para todos os discípulos de hoje como para os de todos os tempos. E
essa mensagem é a exigência da solidariedade fraterna vivida em atitudes
concretas, constitutiva do futuro que se prepara no hoje do presente.
Com
efeito, o reino de Cristo é de índole espiritual, mas não alienável, como se as
coisas do espírito fossem de somenos importância. Se o homem culto assume que é
o espírito que comanda a vida, sobrepondo-se ao domínio da matéria, com maioria
de razão o crente o deve assumir. E a solidariedade fraterna, irrigada pela luz
do espírito que pontifica no Evangelho, como Boa Nova, é exatamente o que deve
ser denominado de caridade, que pressupõe a justiça realmente assumida em todas
as suas vertentes – comutativa, legal, distributiva e social – e constitutiva
da dignidade da pessoa humana.
Mas
o prelado portuense tem subliminarmente presente o texto do profeta Ezequiel,
segundo o qual (Ez 34,11-23),
o Senhor se constitui em pastor do Seu povo, pastor-rei como David:
Assim fala o Senhor Deus: «Eis que Eu mesmo
cuidarei das minhas ovelhas e me interessarei por elas. Como o pastor se preocupa com o seu
rebanho, quando se encontra entre as ovelhas dispersas, assim me preocuparei Eu
com o meu. Reconduzi-lo-ei de todas as partes por onde tenha sido disperso, num
dia de nuvens e de trevas. Arrancá-los-ei
de entre os povos e os reunirei dos vários países, a fim de os reconduzir à sua
própria terra e os apascentar nos montes de Israel, nos vales e em todos os
lugares habitados da região. Eu os apascentarei em boas pastagens; o seu pasto
será nas montanhas elevadas de Israel; estarão tranquilas em bons pastos;
comerão em férteis prados, nos montes de Israel. Sou Eu que apascentarei as
minhas ovelhas, sou Eu quem as fará descansar (…) Procurarei aquela que se
tinha perdido, reconduzirei a que se tinha tresmalhado; cuidarei a que está
ferida e tratarei da que está doente. Vigiarei sobre a que está gorda e forte.
A todas apascentarei com justiça.» (Ez 34,11-16)
Este
pastor-rei tem uma função de solicitude e guarda/cuidado (cuidarei, me
interessarei…), de reunião a partir de tudo o que está disperso, apascentação
em boas passagens (com bom alimento, comodidade e tranquilidade) e procura da
ovelha perdida. O seu critério é o da equanimidade: curar a ovelha ferida,
tratar da doente, mas vigiar pela ovelha gorda. Esta é a justiça inclusiva do
pastor-rei.
Mas
o Senhor não deixa de exercer a justiça avaliativa e morigeradora entre as suas
ovelhas, sobretudo contra as que ferem, pisam, estragam e deixam o estragado
para outrem e desperdiçam:
Quanto a vós, minhas ovelhas, assim fala o
Senhor Deus: Eis que vou julgar entre ovelhas e ovelhas – entre carneiros e
bodes. Não era bastante
alimentar-vos numa boa pastagem, para que calqueis ainda aos pés o resto do
prado? Parece-vos pouco beber água límpida, para irdes turvar ainda o resto com
os vossos pés? E as minhas
ovelhas devem pastar o que pisastes com os pés e beber o que os vossos pés
turvaram? (…) Julgarei entre a ovelha gorda e a ovelha magra. Porque feristes com o flanco e com as
espáduas, e investistes com os chifres contra todas as ovelhas fracas até as
atirar para fora, Eu virei em
socorro das minhas ovelhas, para que elas sejam poupadas à pilhagem; vou julgar
entre ovelhas e ovelhas. (Ez 34,17-22).
E,
porque os pastores de Israel, em vez de apascentarem as ovelhas, se
apascentaram a si próprios, se aproveitaram delas, as exploraram na sua lã,
leite e carne (cf Ez 34,3-6),
o Senhor designa um pastor-rei veterotestamentário, figura de Cristo, o
Messias: “Estabelecerei sobre elas um único pastor, que as apascentará,
o meu servo David; será ele que as levará a pastar e lhes servirá de pastor” (Ez 34,23).
É
Cristo Senhor, aquele que se assume como descendente de David, quem se afirma o
pastor-rei das ovelhas, mesmo daquelas que andam dispersas, que Ele conhece e
chama pelo seu nome, que também O conhecem e, ouvindo a Sua voz, O seguem –
ovelhas por quem da a vida, porque é o pastor, o bom pastor (cf Jo 10,1-18): “Eu sou o bom
Pastor. O bom Pastor dá a vida pelas suas ovelhas” (Jo 10,11).
***
Se
assumirmos a verdade como o valor axial de nossas vidas, se a nossa prática for
a solidariedade fraterna, se a nossa preocupação for a justiça equânime de Deus
e se o serviço aos outros, mormente dos que mais precisam for a tal ponto que
nos disponha a arriscar a vida pelo semelhante, teremos percebido a grandeza do
mistério do reino e a missão do Rei, que nos solicita a reinar com Ele,
servindo. É o rei cujo trono é a cruz, cujo manto é a manta de pastor, cujo
cetro é o cajado de pastor, cuja coroa são os sofrimentos dos pobres. Com uma
dúzia de homens e um grupo de mulheres incendiou o mundo, não precisando de
cúria régia, cortes e coortes, nem de casa civil e casa militar, nem de se
intitular comandante supremo de quaisquer forças armadas. Não é difícil entender
o alcance do reino que não é deste mundo, mas que está entre nós, como nossa
tarefa e à nossa disposição e à de todos os homens de boa vontade.
Sem comentários:
Enviar um comentário