A
9 de novembro, celebra-se a festa da Dedicação ou Consagração da Basílica de
São João de Latrão, que aconteceu no ano de 320. Mandada construir pelo
imperador Constantino, fica situada na hoje denominada Praça Giovanni Paolo II,
em Roma, e é a Catedral do Bispo de Roma. O nome oficial do templo é "Arquibasílica do Santíssimo Salvador" e, por conter o trono papal, enquanto
catedral da diocese de Roma, é considerada a “mãe” de todas as Igrejas do mundo,
o que, pelo significado, que não a sumptuosidade, a coloca acima de todas as
igrejas do orbe, incluindo a Basílica de São Pedro. Por isso, tem o título
honorífico de Omnium Urbis et Orbis
Ecclesiarum Mater et Caput (Mãe e Cabeça de todas as Igrejas da Cidade de
Roma e do Mundo).
A
susodita festa estende-se a toda a Igreja Católica como pretexto para celebrar
a unidade de toda a Igreja e o respeito de todas as comunidades católicas pela
Sé Romana.
Não
se celebra principalmente o edifício ou o templo em si, mas o que ele
representa e significa: a união de todas as Igrejas e seus membros, quais
pedras vivas do templo espiritual – o Corpo Místico de Cristo – em torno do
sucessor de Pedro, o representante de Cristo Cabeça e alicerce do edifício
espiritual, referência e fator de unidade e semente de diversidade fecunda.
Esta
Igreja una, santa, católica e apostólica e, por força da História, romana é a
morada de Deus no meio do mundo, o testemunho da presença benfazeja de Deus no
itinerário histórico dos homens, a mãe acolhedora em seu regaço de todos os
redimidos por Cristo.
À
semelhança do que se faz para a catedral do Bispo de Roma, cada sé catedral diocesana
tem o seu dia em que celebra a festa da dedicação. A título de exemplo, refiro
que, a 9 de setembro, se festeja a dedicação da catedral do Porto (diocese onde
resido) e, a 20 de novembro, a de Lamego (diocese donde sou oriundo). E o
espírito da celebração é idêntico: criar em torno do bispo – que, unido a
Cristo-Cabeça, preside à ação evangelizadora, santificadora e governativa do
Povo de Deus – a substância e o dinamismo da Igreja em saída para as periferias
existenciais da pobreza, do sofrimento, do abandono. É na diversidade das
Igrejas locais em união efetiva e afetiva com a Igreja de Roma que subsiste a
Igreja de Jesus Cristo: universal, que se afirma como referencial da
catolicidade, e presente em cada lugar como fermento evangélico a dulcificar os
corações empedernidos e a britar os poderes opressores em prol dos que não têm
vez e voz, que, animados pela esperança, saberão resistir e abrir caminho de
conscientização e emancipação rumo à dignidade plena de seres humanos e
construção de comunidades genuínas.
***
Os
trechos da escritura proclamados e meditados na celebração eucarística são
extraídos da profecia de Ezequiel (Ez 47,1-2.8-9.12), 1.ª epístola de Paulo aos Coríntios
(1Co 3,9c-11.16-17)
e do Evangelho de João (Jo 2,13-22).
Ezequiel anuncia ao Povo, exilado na Babilónia, um tempo de
salvação e de graça, em que Deus estabelece a sua morada no meio dos homens e
derrama sobre a humanidade sofredora a vida em abundância, simbolizada na
imensidão e boa distribuição das águas e o fluxo da enorme quantidade de peixes.
É a frescura e a fecundidade das águas e a força alimentar dos peixes e outros
alimentos necessários à vida que alegram a cidade dos homens e, sobretudo, a
cidade de Deus, a mais bela das moradas do Altíssimo.
Por
seu turno, S. Paulo recorda a cada um dos discípulos
de Cristo que habitam em Corinto (e, através deles, aos cristãos daqui e de
hoje) que é, no mundo, o Templo de Deus onde reside o Espírito; e que todos em
conjunto, animados pelo Espírito, são chamados a viver numa dinâmica nova, seguindo
Jesus no caminho do amor e da partilha, do serviço a todos, da obediência a
Deus e da entrega aos irmãos. Vivendo desta forma, constituem o povo peregrino,
o corpo místico de Cristo, o grande edifício espiritual de que Jesus é a pedra
angular. Eles tornam Deus presente e atuante no meio da cidade dos homens,
através da palavra e do exemplo, através da atenção efetiva e afetiva a todos,
mormente aos que mais precisam.
Já o Evangelho mostra-nos Jesus a apresentar-Se como o Novo
Templo, o “lugar” através do qual Deus Se manifesta ao mundo, nele estabelece a
Sua morada e em quem e através de quem os homens fazem a experiência do encontro
com o seu Deus. É por Cristo, com Cristo e em Cristo que o Pai oferece aos
homens o Seu amor e a Sua vida. Aquilo que a Lei e os Profetas por si não
conseguiam fazer – relacionar estreitamente Deus e os homens – é Jesus quem o
faz de modo sofrido, mas eficaz e exultante.
***
A cena evangélica evocada na dedicação do templo de Latrão
parece contradizer a sentença de Jesus à Samaritana: “chegou a hora em que nem
neste monte nem em Jerusalém haveis de adorar o Pai (…) Os verdadeiros
adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, pois, são assim os
adoradores que o Pai pretende. Deus é espírito; por isso, os que O adoram devem
adorá-Lo em espírito e verdade ” (Jo
4,21.23-24). Por outro lado, Cristo discutiu (cf Lc
2,42-52), ensinou e pregou no Templo (Jo
7,14-29) e até perdoou no Templo (Jo
8,1-11). Porém, não foi no Templo que celebrou a Páscoa, mas no cenáculo; e
foi do cenáculo que irrompeu o Espírito Santo e Pedro fez o primeiro discurso à
multidão (cf Mt 26,17-30; Mc 14,12-26; Lc
22,7-39; Jo 13 – 17; At 1,12-26; 2,1-41).
Aqui, movido pela palavra da Escritura, o zelo da tua casa me devora (Sl
69,10, da versão grega – ou 68,10, da vulgata), Cristo resolveu expulsar do
Templo os vendilhões. O episódio aparece na “secção introdutória” do Evangelho
de João, que revela quem é Jesus e apresenta as linhas-força do seu ministério.
Trata-se do sumptuoso Templo, edificado por Herodes para concitar a
benevolência dos judeus em razão das disposições régias para com o culto a Javé.
A construção do Templo, no sítio onde Salomão levantara o complexo sagrado originário,
iniciou-se no ano 19 a.C. e ficou praticamente pronta no ano 9 d.C. (embora a obra só tivesse sido dada por definitivamente
acabada em 63 d.C.). Assim, neste momento, efetivamente, o Templo estava a ser
construído há 46 anos e ainda não estava terminado, conforme a observação que
os dirigentes judeus fizeram a Jesus (cf. Jo
2,20).
Eram
os dias que antecedem a festa da Páscoa, época do
ano em que as multidões se concentravam em Jerusalém para celebrar a festa
principal do calendário religioso. A cidade santa, que normalmente teria à volta
de 55.000 habitantes, mais que triplicava a população, sofrendo um notável
incremento o comércio relacionado com o Templo. Instalavam-se muitos postos
comerciais à volta do Templo, revertendo o dinheiro arrecadado com a emissão das
respetivas licenças para o sumo sacerdote, além do proveniente das tendas de
venda que pertenciam diretamente à família do sumo sacerdote. Para lá da venda dos
animais para os sacrifícios e de vários outros produtos destinados à liturgia
do Templo, havia também as tendas dos cambistas que trocavam as moedas romanas
correntes por moedas judaicas (os tributos dos fiéis para o Templo eram pagos
em moeda judaica, por não ser permitida a entrada de moedas oriundas do
paganismo). Eram transações que proporcionavam uma mais-valia para a cidade e
constituíam um significativo contributo para o sustento da nobreza sacerdotal, do
clero e dos empregados do Templo.
Ora, os profetas vinham criticando o culto sacrificial de
Israel, devido à índole estéril e vazia dos ritos, dado que não eram expressão
verdadeira de amor a Deus; tinham mesmo denunciado a miscigenação do culto com
a injustiça e a exploração dos pobres (cf. Am
4,4-5; 5,21-25; Os 5,6-7; 8,13; Is 1,11-17; Jr 7,21-26). As profecias,
entretanto, vêm a consolidar a ideia de que a chegada dos tempos do Messias
implicava a purificação e a moralização do culto. Assim, o profeta Zacarias
liga explicitamente a chegada do Messias ou o “dia do Senhor” (em que Deus
intervém para construir um mundo novo na história dos homens) com a purificação
do culto e a supressão da atividade dos comerciantes “no Templo do Senhor do
universo” (Zc 14,21).
Neste contexto profético, o gesto de Jesus deve entender-se
no quadro do advento do Messias, justamente como no encontro com a samaritana. Quando
Jesus lhe disse aquelas palavras referidas supra, fê-las anteceder da
advertência, “Mulher, acredita em mim: chegou a hora em que…” (Jo 4,21) e “Mas chega a hora – e é já…” (Jo 4,23). E quando ela confessa que sabe que há de chegar o Messias
e que, quando ele vier, “há de ensinar-nos essas coisas”, Jesus atalha: “Sou
Eu, que estou a falar contigo” (Jo 4,25). Tratava-se da purificação do culto e
assegurar a sua validade independentemente do lugar onde ele fosse prestado –
em espírito e verdade –, na linha defendida pelos profetas, que significasse
amor e dedicação a Deus e purificação na relação com os outros (o abandono da
injustiça e da exploração e o cultivo da solidariedade).
Jesus, ao pegar no chicote de cordas, ao expulsar do Templo
os vendedores de ovelhas, de bois e de pombas, ao deitar por terra os trocos
dos banqueiros e ao derrubar as mesas dos cambistas (cf Jo 14-16), revela-Se como “o Messias” e anuncia a chegada do novo
tempo, o tempo messiânico. É o tempo que postula a purificação do Templo e do
culto. De facto, a casa do Pai não podia ser uma feira (cf Jo 4,16). Porém, Jesus vai bem mais além do que os profetas veterotestamentários.
Ao expulsar do Templo também as ovelhas e os bois que serviam os sacrifícios
rituais de Israel, mostra que não propõe apenas uma reforma, mas advoga mesmo a
abolição daquele culto. Ao transformarem a casa de Deus num mercado, os líderes
do judaísmo judaicos tinham suprimido a noção da presença de Deus. Mais: o
culto celebrado no Templo era algo de perverso: em nome de Deus, o culto
promovia a exploração, a miséria, a injustiça, a aceção de pessoas; e, em vez
de estabelecer e intensificar a relação do homem com Deus, afastava o homem de
Deus.
Cristo, o Filho, por seu turno, com a autoridade que Lhe vem
do Pai, dá o solene murro na mesa contra a execranda mentira com que Deus não
pode pactuar: “não façais da casa de meu Pai uma feira” (Jo 4, 16). Os judeus, por sua vez, ficaram indignados. Que sinal lhes
apresentava Ele que lhe outorgasse o poder para assumir uma atitude tão radical
e tão grave? Que legitimidade era a sua para abolir o culto público que a Lei
mandava prestar a Javé?
Jesus, com sua resposta, quis centrar em Si e no seu mistério
o essencial do culto: “destruí este Templo e Eu o reconstruirei em três dias” (Jo 4,19). João esclarece que Jesus, no seu desafio aos judeus, não
Se referia ao Templo de pedra onde Israel celebrava os ritos litúrgicos (cf Jo 4,20), mas a um outro “Templo”, o corpo do próprio Jesus (“Jesus,
porém, falava do Templo do seu corpo” – v 21). A destruição do “templo” era a
metáfora da Sua Morte, perpetrada por eles, judeus; e a reconstrução, a
metáfora da ressurreição perpetrada por Ele próprio. Os líderes judaicos não
conseguirão suprimi-Lo. Essa é a garantia que Jesus apresenta da sua
autoridade. A ressurreição que virá a seguir prova que a sua atuação tem o selo
da autenticidade de Deus.
Sendo assim, o culto do Novo Testamento será em espírito e
verdade, sim, independentemente do lugar em que for prestado (rua, casa de rico
ou tugúrio de pobre, monte, templo, terra, mar, ar). Tem, contudo, de passar
pela mediação do Messias, o novo profeta, o novo sacerdote, o novo rei, o
Cordeiro de Deus, o altar essencial do grande e único sacrifício, o pão partido
pela vida do mundo, o vinho da abundância que inebria as almas e gera a bem-aventurança.
Assim, em tempo neotestamentário, é legítimo e salutar
festejar o Templo, mas o Templo que seja espelho de Deus que mora com os
homens, símbolo da Igreja cimentada na unidade pela diversidade, símbolo de
cada homem templo do Espírito Santo, o templo que remete para o espírito e para
a pureza da verdade. E o templo festejado há de dar ensejo a que o culto em
espírito e verdade se realize onde estiverem as pessoas com a força e a
expressividade que a intimidade e/ou a sumptuosidade do templo por Deus lhe
conferem.
É o Espírito Santo, o Espírito de Cristo, que do coração faz
um templo e do templo faz coração!
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