domingo, 9 de novembro de 2014

O templo e a adoração em espírito e verdade

A 9 de novembro, celebra-se a festa da Dedicação ou Consagração da Basílica de São João de Latrão, que aconteceu no ano de 320. Mandada construir pelo imperador Constantino, fica situada na hoje denominada Praça Giovanni Paolo II, em Roma, e é a Catedral do Bispo de Roma. O nome oficial do templo é "Arquibasílica do Santíssimo Salvador" e, por conter o trono papal, enquanto catedral da diocese de Roma, é considerada a “mãe” de todas as Igrejas do mundo, o que, pelo significado, que não a sumptuosidade, a coloca acima de todas as igrejas do orbe, incluindo a Basílica de São Pedro. Por isso, tem o título honorífico de Omnium Urbis et Orbis Ecclesiarum Mater et Caput (Mãe e Cabeça de todas as Igrejas da Cidade de Roma e do Mundo).
A susodita festa estende-se a toda a Igreja Católica como pretexto para celebrar a unidade de toda a Igreja e o respeito de todas as comunidades católicas pela Sé Romana.
Não se celebra principalmente o edifício ou o templo em si, mas o que ele representa e significa: a união de todas as Igrejas e seus membros, quais pedras vivas do templo espiritual – o Corpo Místico de Cristo – em torno do sucessor de Pedro, o representante de Cristo Cabeça e alicerce do edifício espiritual, referência e fator de unidade e semente de diversidade fecunda.
Esta Igreja una, santa, católica e apostólica e, por força da História, romana é a morada de Deus no meio do mundo, o testemunho da presença benfazeja de Deus no itinerário histórico dos homens, a mãe acolhedora em seu regaço de todos os redimidos por Cristo.
À semelhança do que se faz para a catedral do Bispo de Roma, cada sé catedral diocesana tem o seu dia em que celebra a festa da dedicação. A título de exemplo, refiro que, a 9 de setembro, se festeja a dedicação da catedral do Porto (diocese onde resido) e, a 20 de novembro, a de Lamego (diocese donde sou oriundo). E o espírito da celebração é idêntico: criar em torno do bispo – que, unido a Cristo-Cabeça, preside à ação evangelizadora, santificadora e governativa do Povo de Deus – a substância e o dinamismo da Igreja em saída para as periferias existenciais da pobreza, do sofrimento, do abandono. É na diversidade das Igrejas locais em união efetiva e afetiva com a Igreja de Roma que subsiste a Igreja de Jesus Cristo: universal, que se afirma como referencial da catolicidade, e presente em cada lugar como fermento evangélico a dulcificar os corações empedernidos e a britar os poderes opressores em prol dos que não têm vez e voz, que, animados pela esperança, saberão resistir e abrir caminho de conscientização e emancipação rumo à dignidade plena de seres humanos e construção de comunidades genuínas.
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Os trechos da escritura proclamados e meditados na celebração eucarística são extraídos da profecia de Ezequiel (Ez 47,1-2.8-9.12), 1.ª epístola de Paulo aos Coríntios (1Co 3,9c-11.16-17) e do Evangelho de João (Jo 2,13-22).
Ezequiel anuncia ao Povo, exilado na Babilónia, um tempo de salvação e de graça, em que Deus estabelece a sua morada no meio dos homens e derrama sobre a humanidade sofredora a vida em abundância, simbolizada na imensidão e boa distribuição das águas e o fluxo da enorme quantidade de peixes. É a frescura e a fecundidade das águas e a força alimentar dos peixes e outros alimentos necessários à vida que alegram a cidade dos homens e, sobretudo, a cidade de Deus, a mais bela das moradas do Altíssimo.
Por seu turno, S. Paulo recorda a cada um dos discípulos de Cristo que habitam em Corinto (e, através deles, aos cristãos daqui e de hoje) que é, no mundo, o Templo de Deus onde reside o Espírito; e que todos em conjunto, animados pelo Espírito, são chamados a viver numa dinâmica nova, seguindo Jesus no caminho do amor e da partilha, do serviço a todos, da obediência a Deus e da entrega aos irmãos. Vivendo desta forma, constituem o povo peregrino, o corpo místico de Cristo, o grande edifício espiritual de que Jesus é a pedra angular. Eles tornam Deus presente e atuante no meio da cidade dos homens, através da palavra e do exemplo, através da atenção efetiva e afetiva a todos, mormente aos que mais precisam.
Já o Evangelho mostra-nos Jesus a apresentar-Se como o Novo Templo, o “lugar” através do qual Deus Se manifesta ao mundo, nele estabelece a Sua morada e em quem e através de quem os homens fazem a experiência do encontro com o seu Deus. É por Cristo, com Cristo e em Cristo que o Pai oferece aos homens o Seu amor e a Sua vida. Aquilo que a Lei e os Profetas por si não conseguiam fazer – relacionar estreitamente Deus e os homens – é Jesus quem o faz de modo sofrido, mas eficaz e exultante.
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A cena evangélica evocada na dedicação do templo de Latrão parece contradizer a sentença de Jesus à Samaritana: “chegou a hora em que nem neste monte nem em Jerusalém haveis de adorar o Pai (…) Os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, pois, são assim os adoradores que o Pai pretende. Deus é espírito; por isso, os que O adoram devem adorá-Lo em espírito e verdade ” (Jo 4,21.23-24). Por outro lado, Cristo discutiu (cf Lc 2,42-52), ensinou e pregou no Templo (Jo 7,14-29) e até perdoou no Templo (Jo 8,1-11). Porém, não foi no Templo que celebrou a Páscoa, mas no cenáculo; e foi do cenáculo que irrompeu o Espírito Santo e Pedro fez o primeiro discurso à multidão (cf Mt 26,17-30; Mc 14,12-26; Lc 22,7-39; Jo 13 – 17; At 1,12-26; 2,1-41).
Aqui, movido pela palavra da Escritura, o zelo da tua casa me devora (Sl 69,10, da versão grega – ou 68,10, da vulgata), Cristo resolveu expulsar do Templo os vendilhões. O episódio aparece na “secção introdutória” do Evangelho de João, que revela quem é Jesus e apresenta as linhas-força do seu ministério. Trata-se do sumptuoso Templo, edificado por Herodes para concitar a benevolência dos judeus em razão das disposições régias para com o culto a Javé. A construção do Templo, no sítio onde Salomão levantara o complexo sagrado originário, iniciou-se no ano 19 a.C. e ficou praticamente pronta no ano 9 d.C. (embora a obra só tivesse sido dada por definitivamente acabada em 63 d.C.). Assim, neste momento, efetivamente, o Templo estava a ser construído há 46 anos e ainda não estava terminado, conforme a observação que os dirigentes judeus fizeram a Jesus (cf. Jo 2,20).
Eram os dias que antecedem a festa da Páscoa, época do ano em que as multidões se concentravam em Jerusalém para celebrar a festa principal do calendário religioso. A cidade santa, que normalmente teria à volta de 55.000 habitantes, mais que triplicava a população, sofrendo um notável incremento o comércio relacionado com o Templo. Instalavam-se muitos postos comerciais à volta do Templo, revertendo o dinheiro arrecadado com a emissão das respetivas licenças para o sumo sacerdote, além do proveniente das tendas de venda que pertenciam diretamente à família do sumo sacerdote. Para lá da venda dos animais para os sacrifícios e de vários outros produtos destinados à liturgia do Templo, havia também as tendas dos cambistas que trocavam as moedas romanas correntes por moedas judaicas (os tributos dos fiéis para o Templo eram pagos em moeda judaica, por não ser permitida a entrada de moedas oriundas do paganismo). Eram transações que proporcionavam uma mais-valia para a cidade e constituíam um significativo contributo para o sustento da nobreza sacerdotal, do clero e dos empregados do Templo.
Ora, os profetas vinham criticando o culto sacrificial de Israel, devido à índole estéril e vazia dos ritos, dado que não eram expressão verdadeira de amor a Deus; tinham mesmo denunciado a miscigenação do culto com a injustiça e a exploração dos pobres (cf. Am 4,4-5; 5,21-25; Os 5,6-7; 8,13; Is 1,11-17; Jr 7,21-26). As profecias, entretanto, vêm a consolidar a ideia de que a chegada dos tempos do Messias implicava a purificação e a moralização do culto. Assim, o profeta Zacarias liga explicitamente a chegada do Messias ou o “dia do Senhor” (em que Deus intervém para construir um mundo novo na história dos homens) com a purificação do culto e a supressão da atividade dos comerciantes “no Templo do Senhor do universo” (Zc 14,21).
Neste contexto profético, o gesto de Jesus deve entender-se no quadro do advento do Messias, justamente como no encontro com a samaritana. Quando Jesus lhe disse aquelas palavras referidas supra, fê-las anteceder da advertência, “Mulher, acredita em mim: chegou a hora em que…” (Jo 4,21) e “Mas chega a hora – e é já…” (Jo 4,23). E quando ela confessa que sabe que há de chegar o Messias e que, quando ele vier, “há de ensinar-nos essas coisas”, Jesus atalha: “Sou Eu, que estou a falar contigo” (Jo 4,25). Tratava-se da purificação do culto e assegurar a sua validade independentemente do lugar onde ele fosse prestado – em espírito e verdade –, na linha defendida pelos profetas, que significasse amor e dedicação a Deus e purificação na relação com os outros (o abandono da injustiça e da exploração e o cultivo da solidariedade).
Jesus, ao pegar no chicote de cordas, ao expulsar do Templo os vendedores de ovelhas, de bois e de pombas, ao deitar por terra os trocos dos banqueiros e ao derrubar as mesas dos cambistas (cf Jo 14-16), revela-Se como “o Messias” e anuncia a chegada do novo tempo, o tempo messiânico. É o tempo que postula a purificação do Templo e do culto. De facto, a casa do Pai não podia ser uma feira (cf Jo 4,16). Porém, Jesus vai bem mais além do que os profetas veterotestamentários. Ao expulsar do Templo também as ovelhas e os bois que serviam os sacrifícios rituais de Israel, mostra que não propõe apenas uma reforma, mas advoga mesmo a abolição daquele culto. Ao transformarem a casa de Deus num mercado, os líderes do judaísmo judaicos tinham suprimido a noção da presença de Deus. Mais: o culto celebrado no Templo era algo de perverso: em nome de Deus, o culto promovia a exploração, a miséria, a injustiça, a aceção de pessoas; e, em vez de estabelecer e intensificar a relação do homem com Deus, afastava o homem de Deus.
Cristo, o Filho, por seu turno, com a autoridade que Lhe vem do Pai, dá o solene murro na mesa contra a execranda mentira com que Deus não pode pactuar: “não façais da casa de meu Pai uma feira” (Jo 4, 16). Os judeus, por sua vez, ficaram indignados. Que sinal lhes apresentava Ele que lhe outorgasse o poder para assumir uma atitude tão radical e tão grave? Que legitimidade era a sua para abolir o culto público que a Lei mandava prestar a Javé?
Jesus, com sua resposta, quis centrar em Si e no seu mistério o essencial do culto: “destruí este Templo e Eu o reconstruirei em três dias” (Jo 4,19). João esclarece que Jesus, no seu desafio aos judeus, não Se referia ao Templo de pedra onde Israel celebrava os ritos litúrgicos (cf Jo 4,20), mas a um outro “Templo”, o corpo do próprio Jesus (“Jesus, porém, falava do Templo do seu corpo” – v 21). A destruição do “templo” era a metáfora da Sua Morte, perpetrada por eles, judeus; e a reconstrução, a metáfora da ressurreição perpetrada por Ele próprio. Os líderes judaicos não conseguirão suprimi-Lo. Essa é a garantia que Jesus apresenta da sua autoridade. A ressurreição que virá a seguir prova que a sua atuação tem o selo da autenticidade de Deus.
Sendo assim, o culto do Novo Testamento será em espírito e verdade, sim, independentemente do lugar em que for prestado (rua, casa de rico ou tugúrio de pobre, monte, templo, terra, mar, ar). Tem, contudo, de passar pela mediação do Messias, o novo profeta, o novo sacerdote, o novo rei, o Cordeiro de Deus, o altar essencial do grande e único sacrifício, o pão partido pela vida do mundo, o vinho da abundância que inebria as almas e gera a bem-aventurança.
Assim, em tempo neotestamentário, é legítimo e salutar festejar o Templo, mas o Templo que seja espelho de Deus que mora com os homens, símbolo da Igreja cimentada na unidade pela diversidade, símbolo de cada homem templo do Espírito Santo, o templo que remete para o espírito e para a pureza da verdade. E o templo festejado há de dar ensejo a que o culto em espírito e verdade se realize onde estiverem as pessoas com a força e a expressividade que a intimidade e/ou a sumptuosidade do templo por Deus lhe conferem.

É o Espírito Santo, o Espírito de Cristo, que do coração faz um templo e do templo faz coração!

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