Ainda que seja natural a pergunta
quando se pensa nos interesses empresariais, sobretudo ao nível da visão e
missão, nomeadamente na perspetiva do lucro, a questão não deve colocar-se naqueles
termos. A empresa, só pelo facto de o ser, não pode esquecer-se de que ela é
servida e gerida pelas pessoas e, nestes termos, será ignóbil, mesquinho e
desumano ignorar ou subestimar outros valores.
Demais, outros fatores
condicionam a vida profissional, como, entre outros, doença, acidentes de
trabalho ou de instalações e equipamentos, catástrofes naturais e vicissitudes
do progresso, erros de gestão… Isto, para não falarmos dos incidentes de
produção, circulação, distribuição e consumo ou dos desfalques, descalabros e
desvios e erros de previsão e avaliação.
Há uns meses a esta parte (mais propriamente
em junho passado), as vozes (de deputados, governantes e outras entidades) eram
praticamente unânimes em assentir positivamente à denúncia pública da parte do
Professor Doutor Joaquim Azevedo, Presidente do grupo de trabalho para estudo
das medidas a tomar em prol da promoção da natalidade sobre empresários que
exigiam um compromisso oral e/ou escrito da parte das candidatas a postos de
trabalho nas respetivas empresas (que não identificou), de que não
engravidariam num horizonte temporal de durante uns cinco ou seis anos. Também
era referido que alguns empresários arranjavam formas relativamente fáceis de
fazer cessar contratos de trabalho, uma vez verificada a situação de gravidez
ou a de nascimento de criança, contra a linha defendida pela entidade patronal.
Sublinhava-se ainda a dificuldade
de as organizações responsáveis pela prevenção e verificação das condições de
trabalho intervirem com eficácia, dada a impossibilidade, quase sempre
verificada, de provar a exigência daquele compromisso prévio ou de a cessação
de contrato ser imputada única ou principalmente à predita gravidez ou nascimento.
Tal é o caso da ACT (Autoridade para as
Condições do Trabalho), que “é um serviço do Estado que visa a promoção da
melhoria das condições de trabalho em todo o território continental através do
controlo do cumprimento do normativo laboral no âmbito das relações laborais
privadas e pela promoção da segurança e saúde no trabalho em todos os setores
de atividade públicos ou privados”. Também a CITE (Comissão para a
Igualdade no Trabalho e no Emprego) é o mecanismo
nacional de igualdade entre homens e mulheres no trabalho e no emprego, que funciona na dependência do membro do Governo responsável
pela área da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, em articulação com os
membros do Governo responsáveis pela área dos Assuntos Parlamentares e
Igualdade. E tem a atribuição de consecução: da igualdade e da não discriminação entre mulheres e homens no mundo
laboral; da proteção na parentalidade; e da
conciliação da vida profissional, familiar e pessoal.
É claro que as diversas vozes,
quer do Estado quer da sociedade civil (em que sobressaem as Igrejas,
nomeadamente a Igreja Católica), vêm recorrentemente recordando que a lógica do
lucro tem de sujeitar-se a outros valores. As próprias leis que regulam a
prestação do trabalho, conquanto tenham regredido em muitos dos países
civilizados nos últimos anos, estabelecem as condições fundamentais da
prestação da força laboral, designadamente a saúde, a higiene e a segurança do
trabalhador, a segurança e higiene das instalações, o equilíbrio de horários e
turnos (quando a estes há lugar), o regime de períodos de descanso, férias,
faltas e licenças e, ainda, as condições de trabalho das grávidas e das
mulheres que amamentam. As leis preveem também o regime de apoio pré-natal, de
licenças parentais e de apoio à infância.
As aludidas diversas vozes
insistem recorrentemente que acima do capital está o trabalho, acima do
trabalho estão as pessoas e as pessoas devem ser consideradas nas suas
circunstâncias, sobretudo a família, acentuando-se expressamente a necessidade
de articular a vida profissional com a vida familiar. E os diversos Estados são
dotados de departamentos, alguns de nível ministerial, vocacionados para zelar
pela igualdade de género ao nível da cidadania e pela diferenciação nas
vertentes em que naturalmente (que não tradicionalmente) tal se impõe. Com
efeito, a efetiva emancipação da mulher passa pela necessária igualdade perante
a lei e, consequentemente, pelo acesso a todas as formas de atividade,
profissão e ocupação de cargos de topo (na profissão, na sociedade e na
política), mas não anula a natural diferenciação de género, a qual até oferece
à sociedade um notável contributo simultaneamente equânime e diferenciador
perante situações ora iguais ora diversificadas.
Só é pena que, por vezes, ao
invés de imprimirem o seu toque feminino aos serviços que dirigem ou em que
prestam serviço, queiram simplesmente imitar os homens, acabando tantas vezes
por os imitar no que eles têm de pior
***
E parece que ficamos de boa
consciência por termos apontado o dedo indicador justiceiro aos empresários do
setor privado, porque supostamente o Estado assume, protege e promove os
valores constantes das leis que elabora, promulga e publica.
Porém, a história é bem outra.
O Público de hoje, dia 21, oferece um logo texto de denúncia do que se
passa a este respeito num setor bem sensível da esfera pública. O texto
jornalístico é de Catarina Gomes e a sua síntese enuncia-se deste modo: “Ordem
[dos Médicos] denunciou o caso de várias médicas a quem, nos concursos de
seleção para unidades do Serviço Nacional de Saúde, foi perguntado se pretendiam
engravidar, algo que o bastonário veio condenar”.
É óbvio que tal género de interrogatório
não se circunscreve aos serviços de saúde nem tão pouco ao setor público. A
presidente da CITE, Sandra Ribeiro, revela que diariamente chegam à Linha Verde
do serviço de informação gratuito da comissão (800 204 684), cerca de cinco
queixas informais de mulheres a quem, no processo de recrutamento para
trabalho, é perguntado algo como: ‘Então e bebés’?”. Aquela responsável diz que
este tipo de práticas discriminatórias é transversal a todos os setores, não
constituindo exceção a saúde.
Um e-mail enviado à CITE por uma anónima com a epígrafe “Desabafo”
refere questões e advertências do inquérito de recrutamento, algumas das quais
altamente provocatórias e as respetivas respostas: “É casada há quanto tempo?’ ‘Há cerca de três meses.’ ‘E bebés?”.
Tendo confessado que, de momento,
não tencionava ter filhos, ter-se-á seguido a observação: “Já tem 34 anos, não
pode atrasar muito mais!”. Perante a reiteração de que não tencionava ter filhos,
uma vez que pretendia trabalhar por já estar desempregada há algum tempo, foi
de novo confrontada com a advertência: “Sabe que a gravidez pode condicionar a
vida profissional!”
A
denunciante, na sua comunicação, apenas pretende – diz – dar a conhecer a
outras pessoas que a discriminação não acontece apenas nas grandes empresas das
cidades, mas em todo o lado e até em empresas que ganham prémios PME Líder.
Confessa ainda saber que não haverá consequências para a empresa, pois nada tem
que prove a discriminação. No entanto, afirma que, pelo menos, fica com o sentimento
de dever cumprido.
A
já mencionada Presidente da CITE diz que são muito raras as que avançam para queixas
formais: “Não temos nenhuma queixa sobre recrutamento com perguntas
discriminatórias entrada este ano”.
Por
seu turno, a Ordem dos Médicos denunciou recentemente o caso de várias médicas
a quem, nos concursos de seleção para unidades do Serviço Nacional de Saúde
(SNS), foi inquirido se pretendiam engravidar, o que o bastonário da Ordem,
José Manuel Silva, veio condenar de imediato. O bastonário revelou que a denúncia
foi feita a um advogado da Ordem, que, por sua vez, a comunicou por escrito à
direção da Ordem, e que a situação se passou em entrevistas em concursos de provimento
de admissão a unidades do SNS, embora as jovens médicas tenham preferido não se
identificar, nem nomear os júris em que a situação ocorreu, por receio de
retaliações.
José
Manuel Silva acrescenta, ainda, que o que mais o entristece e deprime é “estas
perguntas terem sido colocadas por médicos”. E afirma-o num encontro com jornalistas,
para promover o XVII Congresso Nacional de Medicina, que decorre na próxima
semana em Lisboa, que tem como um dos temas precisamente a questão da promoção
da natalidade em Portugal. “As mulheres têm cada vez menos condições para
engravidar. Não se dá estabilidade, nem condições de trabalho com dignidade e ainda
se põem entraves. Perante isto, tudo o que se possa falar de medidas para
aumentar a taxa de natalidade é uma hipocrisia” – discorre.
Do
seu lado, Sandra Ribeiro, uma vez que a CITE não recebeu qualquer queixa das
médicas, apela as estas mulheres para que avancem com uma queixa formal, já que
este “é o mecanismo nacional da igualdade com competências para apreciar
queixas sobre discriminação de género no acesso ao emprego.”
***
É
óbvio que não posso afirmar com o bastonário da OM que as pessoas que trabalham
no estabelecimento de medidas de promoção e proteção da natalidade sejam
hipócritas, mas é certo que – e isto parece-me ainda mais grave – o sistema é
ele mesmo a hipocrisia institucionalizada, ao menos por omissão.
Como
refere – e muito bem – a responsável da CITE, este comportamento viola o princípio
constitucional da igualdade e as normas do Código de Trabalho: “Temos noção de
que é prática corrente perguntar às mulheres na fase de recrutamento se estão a
pensar engravidar.” E não são apresentadas queixas formais por dois motivos:
não haver forma como provar, dado que a entrevista se passa a sós com o
entrevistador; e medo de retaliações por parte da empresa.
Por
outro lado, a responsabilidade da aplicação de penalizações relativamente ao setor
privado cabe à ACT, que pode aplicar coimas, que variam de acordo com o volume
de negócio da empresa. Já, no setor público, compete às inspeções dos respetivos
ministérios agir em conformidade, mas não está previsto qualquer sistema de
contraordenações. Quando muito, pode haver lugar a procedimento disciplinar. Porém,
se não há a queixa formal, com base em prova existente e apresentável e se
passa o prazo para desencadear o procedimento, nada feito.
E
passamos a vida a lamentar situações de escravização noutros países, sobretudo
os pobres!
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