A
liturgia da Igreja Católica, depois de cantar a glória e a bem-aventurança dos
que fruem em Deus a imortal serenidade da vida, consagra à memória dos seus
irmãos já fiéis defuntos o dia dois de novembro. A um de novembro, festejava-se
a memória dos santos cidadãos do céu, já seus efetivos moradores; agora,
evoca-se a memória daqueles que já partiram deste mundo enquanto defuntos,
independentemente de ainda precisarem ou não das nossas orações de súplica. Dos
primeiros espera-se a sua intercessão por nós junto de Deus; aos segundos,
oferecemos a intercessão das nossas orações, ao mesmo tempo que agradecemos a
Deus os benefícios que lhes concedeu e os benefícios que a todos nós concedeu
por intermédio deles.
A
tentação dos humanos é julgar os outros pelas aparências. Porém, o justo juízo
sobre o homem é o que resulta da deliberação divina. Por isso, à partida, nós
não deveremos emitir juízos sobre quem morreu, mas impetrar de Deus o seu juízo
misericordioso sobre a vida e as últimas disposições de espírito dos nossos
semelhantes.
A
Comemoração dos fiéis defuntos é, em certo sentido, a continuação lógica da
Solenidade de Todos os Santos. O Papa Francisco referiu-se ao tema na sua
alocução prévia à recitação do Angelus,
de dois de novembro: “Estas duas celebrações estão intimamente conexas entre
si: tal como a alegria e as lágrimas encontram em Jesus Cristo uma síntese que
é fundamento da nossa fé e da nossa esperança”. E é uma esperança que nunca
desilude.
Se
nos circunscrevêssemos a evocar a glória dos Santos, a comunhão dos crentes em
Cristo não teria a totalidade das suas dimensões, pois, tanto os que vivem
eterna e intimamente junto de Deus como aqueles que, na purificação de suas
almas, aspiram à visão beatífica de Deus, são membros de Cristo, n’ Ele
incorporados pelo Batismo. Continuam unidos a nós, que militamos pela
efetivação do Reino de Deus já aqui, no mundo, mas a estabelecer na perfeição
além, na Pátria Celeste, a Jerusalém do Alto. A Igreja peregrina, vocacionada
para implorar, construir e fruir da comunhão dos santos, como o consigna o Símbolo dos Apóstolos, não podia
celebrar a Igreja gloriosa e esquecer a Igreja purificante no purgatório.
Francisco,
na aludida alocução, explica: “Por um lado, de facto, a Igreja, peregrina na
história, alegra-se pela intercessão dos Santos e Bem-aventurados que a apoiam
na missão de anunciar o Evangelho; por outro, ela, tal como Jesus, compartilha
o choro de quem sofre a separação das pessoas queridas e, como Ele e graças a
Ele, faz ressoar a ação de graças ao Pai, que nos libertou do domínio do pecado
e da morte”.
Embora
diariamente a Igreja, na celebração eucarística, ao tornar presente o Mistério
Pascal de Cristo – sacrifício, ação de graças e comunhão – recorde aqueles que
nos precederam na fé, morreram na esperança da ressurreição e dormem agora o
sono da paz (cf orações eucarísticas I e II), neste dia, esta recordação
evidencia-se como mais significativa, profunda, viva e alargada.
Assim,
o Papa assinala o facto de “entre ontem e hoje” muitos fazerem a romagem ao
cemitério, o lugar do repouso, na espera da ressurreição final. Porém,
aproveita o ensejo para encarecer o significado de tal romagem. “É belo” –
explicita – “pensar que será o próprio Jesus a ressuscitar-nos. Foi Ele quem
revelou que a morte do corpo é como um sono do qual Ele nos desperta”. É com
esta fé que nos detemos, ao menos em espírito, “junto dos túmulos do que nos
são queridos e de quantos quiseram fazer o bem e o fizeram efetivamente”.
Todavia, neste dia de prece universal e de memória de todos, “somos chamados a
recordar todos, mesmo aqueles de quem ninguém se recorda”. E o Pontífice, na
sua solicitude inclusiva, universal ou católica, menciona “as vítimas das
guerras e das violências”; e também “os pequenos do
mundo esmagados pela fome e pela miséria, os anónimos que repousam nos ossários
comuns”, bem como os “irmãos e irmãs que foram mortos por serem cristãos” e os
que “sacrificaram a sua vida para servir os outros”.
***
O Dia dos Fiéis Defuntos não pode ser dia (ou apenas) de luto e de
tristeza. Sendo um momento importante da mais íntima comunhão com aqueles que
efetivamente não perdemos – apenas os mandámos à nossa frente, à ordem de Deus –
é dia de esperança, porque sabemos que ressurgirão em Cristo para uma vida nova
e aos quais nos ajuntaremos quando chegar a nossa vez.
Já os homens do Antigo Testamento se deixaram iluminar pela
esperança da ressurreição e pela certeza da imortalidade da alma, que não os
deixou sucumbir à dor (cf Jb 19,1.23-27) e lhes tornou mais
firme e profunda a fé em tempo de perseguição (cf
2Mac 12,43-45). Por seu turno, o Novo Testamento (cf 1Ts 4,13-14.17-18) ensina que aqueles que passaram para o outro lado da vida não
estão mortos; os que
se foram de nós arrancados deste mundo estão na paz de Deus, unidos a Ele com
todo o Seu ser na perpétua comunhão da incorruptível vida divina (cf
GS 18).
Do
seu lado, o Papa sustenta que a tradição da Igreja sempre exortou à oração
pelos defuntos, em particular pela oferta da celebração eucarística e garante
que “essa é a melhora ajuda espiritual que podemos dar às suas almas,
particularmente aos mais abandonados”.
Por
isso, temos de fixar que só a romagem ao cemitério ou apenas a deposição de
flores e as velas acesas nos túmulos de familiares, amigos e benfeitores são
homenagem pobre da parte de quem professa a fé cristã. É preciso insistir na
oração de sufrágio pelos defuntos, na honra da sua memória e no compromisso de
vida segundo os justos princípios que eles assumiram.
O
Papa Francisco, na linha da doutrina da Igreja, faz assentar o fundamento do
sufrágio na comunhão do Corpo Místico. Com efeito, o Concílio Vaticano II, de
que cita a Lumen Gentium, a
Constituição Dogmática sobre a Igreja, ensina: “A Igreja peregrina obre a
Terra, cônscia desta comunhão de todo o Corpo Místico de Jesus Cristo, vem
cultivando com grande piedade a memória dos defuntos, desde os primórdios da
religião cristã” (LG 50).
Assim,
“a recordação dos defuntos, o zelo dos túmulos e os sufrágios” – considera o
Papa – “são um testemunho da esperança confiante, radicada na certeza de que a
morte não é a última palavra sobre o destino humano, porque
o homem está destinado a uma vida sem limites, que tem a sua raiz e o seu
cumprimento em Deus”.
Por fim, Francisco proferiu uma súplica por todos os defuntos ao
“Deus de infinita misericórdia (seguindo de perto a oração pelos defuntos, de António Rungi, padre passionista),
implorando que, não obstante as “pobrezas, fragilidades e misérias” de cada ser
humano, ninguém se “perca no fogo eterno do inferno, onde já não pode haver
arrependimento” e resgate.
É de sublinhar que, na solicitude de pastor universal e testemunho
da ternura do coração divino, não esqueceu nenhum daqueles que foram remidos
pelo sangue precioso de Cristo, mesmo aqueles que morreram sem o conforto dos
sacramentos e aqueles que não se arrependeram dos seus atos nem nos últimos
instantes da vida.
“Que a irmã morte corporal (expressão de São Francisco de Assis, recordo) nos encontre
vigilantes na oração e carregados de todos os bens feitos no decurso da nossa
breve ou longa existência. Senhor, que nada nos afaste de ti nesta terra”,
rezou. Por outro lado, apelou à intercessão da Virgem Maria, a porta do céu,
aquela que esteve de pé junto da cruz de Seu divino Filho, para que ajude a todos
os que vivem a “peregrinação na terra” a “não perder nunca de vista a meta
última da vida, que é o Paraíso”.
Eu sou a
ressurreição e a vida. Quem acredita em Mim, ainda que venha a morrer, viverá;
e todo aquele que vive e crê em Mim não morrerá jamais (Jo 11,25-26).
Nós
aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo. Ele transformará o nosso corpo
miserável, tornando-o conforme ao Seu corpo glorioso (Fl 3,20-21).
Por coerência e em consequência, o culto dos
defuntos deve comprometer-nos ao cuidado pelos vivos, sobretudo os que andam
mais arredados dos caminhos de Cristo e aqueles a quem os poderes e a
comodidade dos demais não reconhecem o direito à vez e à voz ou a uma vida
condigna.
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