O adágio começou a bailar nos
últimos dias, depois de ler no Público
do dia 25 de novembro uma reportagem de Rosa Soares e Mariana de Oliveira no
quadro da “Operação Marquês” e mais propriamente a informação que serve de
título – “Só 2% dos alertas por suspeitas de branqueamento dão origem a
inquéritos-crime”.
Sobretudo depois que entrou em
vigor a Lei n.º 25/2008, de 5 de junho, é frequente termos notícias de
investigação e detenção de diversas figuras de relevante posição política, social
e administrativa sob a suspeita, alegadamente fundada em indícios, de
branqueamento de capitais. Também não é raro um cidadão ser investigado, detido
e levado a julgamento, indiciado e depois acusado por umas dezenas (às vezes
centenas) de crimes, para, em sede de julgamento, a maior parte deles acabar
por ter caído. Isto, para não falar dos casos em que nada fica provado ou em
que a prova ficou reduzida à sua expressão mais simples. Mesmo agora, a
propósito da espetacular detenção e interrogatório do político Sócrates, alguma
informação trazida a público refere que o mandato de detenção continha também o
indício do tráfico de influência, que terá caído pelo caminho no percurso
aeroporto-DCIAP-Comando Metropolitano da PSP.
Dizem alguns que invocar o
pretexto de branqueamento de capitais permite a mobilização de melhores
condições para a investigação, mas também há quem suspeite de que esse indício
será, algumas vezes, invocado propositadamente com o fito de dispor das tais
condições mais propícias ao trabalho investigativo. É óbvio que não me
pronuncio sobre a verdade de tal suspeição já que não me é dado conhecer das
matérias processuais.
***
A referida lei “estabelece
medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao branqueamento de
vantagens de proveniência ilícita e ao financiamento do terrorismo e transpõe para
a ordem jurídica interna as diretivas n.os 2005/60/CE, do Parlamento
Europeu e do Conselho, de 26 de outubro, e 2006/70/CE, da Comissão, de 1 de
agosto, relativas à prevenção da utilização do sistema financeiro e das
atividades e profissões especialmente designadas para efeitos de branqueamento
de capitais e de financiamento do terrorismo”. Por outro lado, determina que “o
branqueamento e o financiamento do terrorismo são proibidos e punidos nos termos
da legislação penal aplicável”.
E, quando ouvi o Dr. Mário Soares,
furibundo e emocionado, a clamar pela infâmia inerente à detenção mediática do
ex-Primeiro-Ministro e a reclamar a inocência do mesmo, pareceu-me que o
ex-Presidente estava a exagerar, a passar das marcas, a ter assomos de
senilidade. Porém, ao ouvi-lo contrapor a sua ciência jurídica à do juiz de
instrução criminal, pensei – é certo – em arrogância, mas ficou-me a morder a
dúvida. E fui ler.
O artigo 2.º, ao especificar os
conceitos atinentes a esta lei, no seu apartado 6), define claramente como “pessoas
politicamente expostas” as pessoas singulares que desempenham, ou
desempenharam até há um ano, altos cargos de natureza política ou pública,
bem como os membros próximos da sua família e pessoas que reconhecidamente tenham
com elas estreitas relações de natureza societária ou comercial. Para os efeitos
previstos no presente número, consideram-se: a) “Altos cargos de natureza
política ou pública”: i) Chefes de
Estado, chefes de Governo e membros do Governo, designadamente ministros,
secretários e subsecretários de Estado (…).
Sendo assim, continuei a ler e,
sem poder concluir mais nada de sério, devo dizer que pode haver muitos motivos
para investigar, indiciar, deter, inquirir e, eventualmente, acusar Sócrates,
todavia, à face desta lei de branqueamento de capitais e financiamento do
terrorismo, nunca por ter sido Primeiro-Ministro. O “até há um ano” já está
mais que ultrapassado. Por isso, a insistência mediática na detenção de Sócrates
enquanto ex-Primeiro-Ministro, embora compreensível, é importuna, como é
insustentável aliar presumíveis desmandos socráticos às suas funções de
governante – o que aliás fez Marcelo no seu mais recente discurso dominical
(que afora esta circunstância, me pareceu bastante esclarecedor). Duvido,
ainda, que Sócrates tenha andado a financiar o terrorismo.
Se, de facto, o cidadão
enriquecera ilicitamente durante o tempo de governante, as autoridades
fiscalizadoras e obrigadas à emissão de alertas, deveriam tê-lo feito há muito
tempo. Que eu saiba, não é proibido, em Portugal, investigar governantes no
ativo, embora, no caso do Presidente da República, do Presidente da Assembleia
da República e do Primeiro-Ministro, a decisão e autorização de investigação
caibam ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que, a meu ver, não pode
deixar de atuar se o superior interesse nacional o postular.
Talvez fosse bom, a par de
outros, ouvir também os velhos juristas como Mário Soares (mesmo com o desconto
da idade), Artur Marques, Costa Andrade e outros. É que as leis não se baseiam
em ciência exata e não sei se um juiz, por mais erudição de que seja dotado, é
capaz de contornar todos os escaninhos do sistema criminal e penal.
Lei tão forte contra um cidadão,
que foi ministro e chefe de governo ou indícios de três crimes (todos
qualificados, diversificados e de incidência económica) e tanto mediatismo e
espetáculo não serão mesmo muita parra, pouca uva? Vamos ver qual o desfecho
deste processo, que Sócrates diz só agora ter começado!
***
Mas
voltemos às questões da invocação do indício de branqueamento de capitais. Por
mais que se diga em contrário, cabe ao autor a produção dos factos e não ao
senhor arguido provar a sua inocência, como bem assegurou Costa Andrade no último
programa Prós e Contras, da RTP, já
que se goraram, na lei, todas as tentativas intentadas da inversão do ónus da
prova no tocante ao presuntivo enriquecimento ilícito. No entanto, também se
requer que o causídico que o representa em juízo e fora dele proceda a uma
defesa ativa, que destrua a validade da argumentação da acusação e encontre
todos os álibis que obstem à invocada veracidade de factos aduzidos pelo autor.
Mais: em abono do possível “muita parra pouca uva”, devo reter alguns dados da
aludida reportagem do Público.
Apesar
de se contarem inúmeras investigações e umas tantas detenções sob o pretexto do
crime de branqueamento de capitais, “a proporção de inquéritos-crime abertos na
sequência de alertas feitos ao abrigo das medidas de prevenção de branqueamento
de capitais é baixa” – refere o dito jornal. O mais recente relatório anual,
com dados relativos a 2010, da Unidade de Informação Financeira (UIF) da Polícia
Judiciária – uma das duas entidades no país que recebem estas comunicações (a
outra é o Ministério Público) – regista a receção de 10.623 alertas nesse ano.
Tal volume de alertas originou 703 averiguações, o que significa que, após uma
primeira ponderação, os inspetores da UIF decidiram recolher informação
adicional em menos de 7% dos casos. E, destes, apenas 240 deram azaram a
inquéritos-crime, isto é, pouco mais do que 2% do mencionado volume de alertas
emitidos. E resta saber quantos dos casos de inquérito-crime chegaram ou
chegarão à fase de julgamento com a clara decisão condenatória ou absolutória.
Dados
do ano de 2013 indicam que, nesse ano, “a Polícia Judiciária propôs a suspensão
de cerca de 40 operações suspeitas, que envolviam, no total, cerca de 20
milhões de euros e 10 milhões de dólares”, quando, em 2010, a UIF pedira “a suspensão
de apenas 14 operações que implicavam a movimentação de 20,6 milhões de euros e
6,5 milhões de dólares”.
Segundo
o Público, estes dados ganharam novo
realce com a informação, da parte da Procuradoria-Geral da República (PGR), de
que fora um destes alertas que deu azo à demorada investigação em que o ex-líder
do governo José Sócrates é visado. O ex-governante foi detido no passado dia 21,
por indícios de branqueamento de capitais, fraude fiscal qualificada e corrupção,
e soube no dia 24 que fica em prisão preventiva, alegadamente por constituir
perigo de perturbação do processo. A PGR esclareceu, há dias, que o “inquérito
teve origem numa comunicação bancária efectuada ao Departamento Central de
Investigação e Ação Penal (DCIAP) em cumprimento da lei de prevenção e
repressão de branqueamento de capitais, Lei n.º 25/2008, de 5 de junho, já
citada, que transpôs diretivas da União Europeia”. E adiantou, não sei por que
motivo, que este processo nada tinha a ver com o do “Monte Branco”, como hoje,
dia 27, foi salientado que as buscas na sede do BES e nas casas de Salgado e familiares
também nada têm a ver como o caso do “Monte Branco”. Já não bastava que se
acentuasse intempestivamente a independência e separação dos poderes, como
ainda se faça questão na independência de processos, como se a eventual conexão
fosse um facto anormal ou danoso.
No
entanto, os alertas da UIF terão atingido várias operações em que se destacam José
Sócrates e mais três arguidos, bem como candidatos aos conhecidos vistos gold,
apanhados na “Operação Labirinto”, nomeadamente um cidadão chinês detido em
março, no âmbito de um mandado de captura internacional emitido pela Interpol a
pedido das autoridades chinesas. Em final de março, o DCIAP – outra das entidades
que recebem os comunicados de alerta – informava que até então tinham sido emitidos
cerca de cem “casos de alerta para operações financeiras conexas com pedidos de
autorização de residência para investimentos”. São processos diferentes. Serão,
desconexos ou a sua independência será artificiosa?
***
No
caso Sócrates, tanto o próprio como o seu advogado e Mário Soares sustentavam o
caráter ilegal da detenção e da prisão preventiva. De Sócrates, percebo que se
sinta incomodado e que, como qualquer detido, se sinta injustiçado e que proteste
a sua inocência até sentença ou acórdão transitado em julgado. De Mário Soares,
além da postura de solidariedade e da sua ciência jurídica, retenho o seu
passado de luta contra um regime em que o jurista criticava o facto de as
pessoas serem presas sem julgamento prévio ou serem julgadas em processo
sumário e sem defesa real e livre. Porém, o advogado de Sócrates levou-me a
considerar o facto de Sócrates ter sido governante há muito mais de um ano, as
concomitantes e subsequentes infrações ao segredo de justiça e de a sua
detenção ter sido acompanhada por agentes da Autoridade Tributária e Aduaneira
e não pela Polícia Judiciária (a competente para o efeito), já que alegadamente
se invocava o indício de branqueamento de capitais. E, se depois de tudo, “a montanha
vier a parir um rato”, que diremos da justiça?
Nem
me conforta a fuga à discussão política destes casos quando se argumenta rapidamente
“à política o que é da política e à justiça o que é da justiça”. Costa Andrade
também criticou esta ligeireza, como se à economia o que é da economia e à política
que é da política e assim noutros setores, como se – penso – os magistrados não
tivessem também postura, agenda e ambição política. Por mim, entendo que a
separação dos poderes e a sua independência não podem servir de pretexto para
fugir à discussão. Primeiro, a separação não impede, antes pressupõe a
interdependência e o mútuo escrutínio (o próprio Primeiro-Ministro disse, no passado
domingo, que por enquanto não iria comentar estes casos da justiça); segundo,
os poderes diversos, na área do poderio do Estado, têm de funcionar segundo a originária
lógica dos contrapesos, como instrumentos de mútua limitação; e terceiro,
porque, por um lado, o poder político reside no povo e a justiça é administrada
em nome do povo, e, por outro, quando a Constituição trata da organização do
poder político, enumera como órgãos do poder político soberano: o Presidente da
República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais. E ainda temos como
órgãos de poder político, embora não soberano, os órgãos regionais e os do poder
local.
***
Também
a “muita parra e pouca uva” se poderá aplicar no caso da procura do
investimento no âmbito da diplomacia económica e da agência do investimento
estrangeiro e comércio externo, quando não se tem a noção dos limites. A informação
de hoje dá conta de que o Vice-Primeiro-Ministro e o Presidente da República
achariam que a candidatura dos magnatas do Dubai à compra da TAP seria “um bom
negócio”, como se um setor empresarial estratégico para o país se satisfizesse
com “um bom negócio” e não o superior interesse público.
Mas
não é difícil perder o sentido da decência. Veja-se, além do caso dos vistos Gold, o da preocupação do Presidente de
propagandear o país: um país paradisíaco, com sol, mulheres bonitas, cavalos e aviões…
Ainda que este género de promoção desse como resultado um muito grande êxito na
captação de investimento estrangeiro, não se justificava pôr em paralelo
aqueles elementos discursivos. E, se também aqui a parra asfixiar a uva?
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