quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Muita para pouca uva!

O adágio começou a bailar nos últimos dias, depois de ler no Público do dia 25 de novembro uma reportagem de Rosa Soares e Mariana de Oliveira no quadro da “Operação Marquês” e mais propriamente a informação que serve de título – “Só 2% dos alertas por suspeitas de branqueamento dão origem a inquéritos-crime”.
Sobretudo depois que entrou em vigor a Lei n.º 25/2008, de 5 de junho, é frequente termos notícias de investigação e detenção de diversas figuras de relevante posição política, social e administrativa sob a suspeita, alegadamente fundada em indícios, de branqueamento de capitais. Também não é raro um cidadão ser investigado, detido e levado a julgamento, indiciado e depois acusado por umas dezenas (às vezes centenas) de crimes, para, em sede de julgamento, a maior parte deles acabar por ter caído. Isto, para não falar dos casos em que nada fica provado ou em que a prova ficou reduzida à sua expressão mais simples. Mesmo agora, a propósito da espetacular detenção e interrogatório do político Sócrates, alguma informação trazida a público refere que o mandato de detenção continha também o indício do tráfico de influência, que terá caído pelo caminho no percurso aeroporto-DCIAP-Comando Metropolitano da PSP.
Dizem alguns que invocar o pretexto de branqueamento de capitais permite a mobilização de melhores condições para a investigação, mas também há quem suspeite de que esse indício será, algumas vezes, invocado propositadamente com o fito de dispor das tais condições mais propícias ao trabalho investigativo. É óbvio que não me pronuncio sobre a verdade de tal suspeição já que não me é dado conhecer das matérias processuais.
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A referida lei “estabelece medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao branqueamento de vantagens de proveniência ilícita e ao financiamento do terrorismo e transpõe para a ordem jurídica interna as diretivas n.os 2005/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro, e 2006/70/CE, da Comissão, de 1 de agosto, relativas à prevenção da utilização do sistema financeiro e das atividades e profissões especialmente designadas para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo”. Por outro lado, determina que “o branqueamento e o financiamento do terrorismo são proibidos e punidos nos termos da legislação penal aplicável”.
E, quando ouvi o Dr. Mário Soares, furibundo e emocionado, a clamar pela infâmia inerente à detenção mediática do ex-Primeiro-Ministro e a reclamar a inocência do mesmo, pareceu-me que o ex-Presidente estava a exagerar, a passar das marcas, a ter assomos de senilidade. Porém, ao ouvi-lo contrapor a sua ciência jurídica à do juiz de instrução criminal, pensei – é certo – em arrogância, mas ficou-me a morder a dúvida. E fui ler.
O artigo 2.º, ao especificar os conceitos atinentes a esta lei, no seu apartado 6), define claramente como “pessoas politicamente expostas” as pessoas singulares que desempenham, ou desempenharam até há um ano, altos cargos de natureza política ou pública, bem como os membros próximos da sua família e pessoas que reconhecidamente tenham com elas estreitas relações de natureza societária ou comercial. Para os efeitos previstos no presente número, consideram-se: a) “Altos cargos de natureza política ou pública”: i) Chefes de Estado, chefes de Governo e membros do Governo, designadamente ministros, secretários e subsecretários de Estado (…).
Sendo assim, continuei a ler e, sem poder concluir mais nada de sério, devo dizer que pode haver muitos motivos para investigar, indiciar, deter, inquirir e, eventualmente, acusar Sócrates, todavia, à face desta lei de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, nunca por ter sido Primeiro-Ministro. O “até há um ano” já está mais que ultrapassado. Por isso, a insistência mediática na detenção de Sócrates enquanto ex-Primeiro-Ministro, embora compreensível, é importuna, como é insustentável aliar presumíveis desmandos socráticos às suas funções de governante – o que aliás fez Marcelo no seu mais recente discurso dominical (que afora esta circunstância, me pareceu bastante esclarecedor). Duvido, ainda, que Sócrates tenha andado a financiar o terrorismo.
Se, de facto, o cidadão enriquecera ilicitamente durante o tempo de governante, as autoridades fiscalizadoras e obrigadas à emissão de alertas, deveriam tê-lo feito há muito tempo. Que eu saiba, não é proibido, em Portugal, investigar governantes no ativo, embora, no caso do Presidente da República, do Presidente da Assembleia da República e do Primeiro-Ministro, a decisão e autorização de investigação caibam ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que, a meu ver, não pode deixar de atuar se o superior interesse nacional o postular.
Talvez fosse bom, a par de outros, ouvir também os velhos juristas como Mário Soares (mesmo com o desconto da idade), Artur Marques, Costa Andrade e outros. É que as leis não se baseiam em ciência exata e não sei se um juiz, por mais erudição de que seja dotado, é capaz de contornar todos os escaninhos do sistema criminal e penal.
Lei tão forte contra um cidadão, que foi ministro e chefe de governo ou indícios de três crimes (todos qualificados, diversificados e de incidência económica) e tanto mediatismo e espetáculo não serão mesmo muita parra, pouca uva? Vamos ver qual o desfecho deste processo, que Sócrates diz só agora ter começado!
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Mas voltemos às questões da invocação do indício de branqueamento de capitais. Por mais que se diga em contrário, cabe ao autor a produção dos factos e não ao senhor arguido provar a sua inocência, como bem assegurou Costa Andrade no último programa Prós e Contras, da RTP, já que se goraram, na lei, todas as tentativas intentadas da inversão do ónus da prova no tocante ao presuntivo enriquecimento ilícito. No entanto, também se requer que o causídico que o representa em juízo e fora dele proceda a uma defesa ativa, que destrua a validade da argumentação da acusação e encontre todos os álibis que obstem à invocada veracidade de factos aduzidos pelo autor. Mais: em abono do possível “muita parra pouca uva”, devo reter alguns dados da aludida reportagem do Público.
Apesar de se contarem inúmeras investigações e umas tantas detenções sob o pretexto do crime de branqueamento de capitais, “a proporção de inquéritos-crime abertos na sequência de alertas feitos ao abrigo das medidas de prevenção de branqueamento de capitais é baixa” – refere o dito jornal. O mais recente relatório anual, com dados relativos a 2010, da Unidade de Informação Financeira (UIF) da Polícia Judiciária – uma das duas entidades no país que recebem estas comunicações (a outra é o Ministério Público) – regista a receção de 10.623 alertas nesse ano. Tal volume de alertas originou 703 averiguações, o que significa que, após uma primeira ponderação, os inspetores da UIF decidiram recolher informação adicional em menos de 7% dos casos. E, destes, apenas 240 deram azaram a inquéritos-crime, isto é, pouco mais do que 2% do mencionado volume de alertas emitidos. E resta saber quantos dos casos de inquérito-crime chegaram ou chegarão à fase de julgamento com a clara decisão condenatória ou absolutória.
Dados do ano de 2013 indicam que, nesse ano, “a Polícia Judiciária propôs a suspensão de cerca de 40 operações suspeitas, que envolviam, no total, cerca de 20 milhões de euros e 10 milhões de dólares”, quando, em 2010, a UIF pedira “a suspensão de apenas 14 operações que implicavam a movimentação de 20,6 milhões de euros e 6,5 milhões de dólares”.
Segundo o Público, estes dados ganharam novo realce com a informação, da parte da Procuradoria-Geral da República (PGR), de que fora um destes alertas que deu azo à demorada investigação em que o ex-líder do governo José Sócrates é visado. O ex-governante foi detido no passado dia 21, por indícios de branqueamento de capitais, fraude fiscal qualificada e corrupção, e soube no dia 24 que fica em prisão preventiva, alegadamente por constituir perigo de perturbação do processo. A PGR esclareceu, há dias, que o “inquérito teve origem numa comunicação bancária efectuada ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) em cumprimento da lei de prevenção e repressão de branqueamento de capitais, Lei n.º 25/2008, de 5 de junho, já citada, que transpôs diretivas da União Europeia”. E adiantou, não sei por que motivo, que este processo nada tinha a ver com o do “Monte Branco”, como hoje, dia 27, foi salientado que as buscas na sede do BES e nas casas de Salgado e familiares também nada têm a ver como o caso do “Monte Branco”. Já não bastava que se acentuasse intempestivamente a independência e separação dos poderes, como ainda se faça questão na independência de processos, como se a eventual conexão fosse um facto anormal ou danoso.
No entanto, os alertas da UIF terão atingido várias operações em que se destacam José Sócrates e mais três arguidos, bem como candidatos aos conhecidos vistos gold, apanhados na “Operação Labirinto”, nomeadamente um cidadão chinês detido em março, no âmbito de um mandado de captura internacional emitido pela Interpol a pedido das autoridades chinesas. Em final de março, o DCIAP – outra das entidades que recebem os comunicados de alerta – informava que até então tinham sido emitidos cerca de cem “casos de alerta para operações financeiras conexas com pedidos de autorização de residência para investimentos”. São processos diferentes. Serão, desconexos ou a sua independência será artificiosa?
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No caso Sócrates, tanto o próprio como o seu advogado e Mário Soares sustentavam o caráter ilegal da detenção e da prisão preventiva. De Sócrates, percebo que se sinta incomodado e que, como qualquer detido, se sinta injustiçado e que proteste a sua inocência até sentença ou acórdão transitado em julgado. De Mário Soares, além da postura de solidariedade e da sua ciência jurídica, retenho o seu passado de luta contra um regime em que o jurista criticava o facto de as pessoas serem presas sem julgamento prévio ou serem julgadas em processo sumário e sem defesa real e livre. Porém, o advogado de Sócrates levou-me a considerar o facto de Sócrates ter sido governante há muito mais de um ano, as concomitantes e subsequentes infrações ao segredo de justiça e de a sua detenção ter sido acompanhada por agentes da Autoridade Tributária e Aduaneira e não pela Polícia Judiciária (a competente para o efeito), já que alegadamente se invocava o indício de branqueamento de capitais. E, se depois de tudo, “a montanha vier a parir um rato”, que diremos da justiça?
Nem me conforta a fuga à discussão política destes casos quando se argumenta rapidamente “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça”. Costa Andrade também criticou esta ligeireza, como se à economia o que é da economia e à política que é da política e assim noutros setores, como se – penso – os magistrados não tivessem também postura, agenda e ambição política. Por mim, entendo que a separação dos poderes e a sua independência não podem servir de pretexto para fugir à discussão. Primeiro, a separação não impede, antes pressupõe a interdependência e o mútuo escrutínio (o próprio Primeiro-Ministro disse, no passado domingo, que por enquanto não iria comentar estes casos da justiça); segundo, os poderes diversos, na área do poderio do Estado, têm de funcionar segundo a originária lógica dos contrapesos, como instrumentos de mútua limitação; e terceiro, porque, por um lado, o poder político reside no povo e a justiça é administrada em nome do povo, e, por outro, quando a Constituição trata da organização do poder político, enumera como órgãos do poder político soberano: o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais. E ainda temos como órgãos de poder político, embora não soberano, os órgãos regionais e os do poder local.
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Também a “muita parra e pouca uva” se poderá aplicar no caso da procura do investimento no âmbito da diplomacia económica e da agência do investimento estrangeiro e comércio externo, quando não se tem a noção dos limites. A informação de hoje dá conta de que o Vice-Primeiro-Ministro e o Presidente da República achariam que a candidatura dos magnatas do Dubai à compra da TAP seria “um bom negócio”, como se um setor empresarial estratégico para o país se satisfizesse com “um bom negócio” e não o superior interesse público.
Mas não é difícil perder o sentido da decência. Veja-se, além do caso dos vistos Gold, o da preocupação do Presidente de propagandear o país: um país paradisíaco, com sol, mulheres bonitas, cavalos e aviões… Ainda que este género de promoção desse como resultado um muito grande êxito na captação de investimento estrangeiro, não se justificava pôr em paralelo aqueles elementos discursivos. E, se também aqui a parra asfixiar a uva? 

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