Como
é patente para todos, o Governo, no âmbito da proposta de Lei do Orçamento de
Estado, faz previsões várias ao nível do crescimento da economia e ao nível das
diversas variáveis. São relevantes as atinentes ao arrecadamento de receitas,
seja no quadro dos impostos (IRS, IVA, IRC, IPE e outros de que se destacam os
impostos verdes). De modo similar se fazem previsões para o decréscimo do
desemprego, do limite do défice, da dívida pública, diminuição de despesas
públicas, crescimento do PIB, etc. – que as oposições contestam fortemente.
Quando
confrontados com a discrepância de entidades que habitualmente se pronunciam de
forma paralela à do Governo – OCDE, FMI, BCE, Comissão Europeia, UTAO, Conselho
de Finanças Públicas (céticas quanto ao cumprimento das metas orçamentais) – os
nossos governantes escudam-se naquela espécie de aforismo tautológico –
previsões são previsões – de que se trata de meras previsões, que não passam de
previsões e previsões valem o que valem.
Acaso
poderemos dizer o mesmo das previsões governamentais? Será a Direção-Geral do
Orçamento um simples departamento estatal de previsões de caráter astrológico
ou atmosférico, sendo apenas certo que as previsões do Governo são mais
precisas que as do Borda d’Água, como dizia Bruno Dias, do PCP, ao então
Ministro da Economia Álvaro Santos Pereira? Será a Secretaria de Estado do
Orçamento a estrutura que transforma em esboço de proposta de lei o catálogo
das previsões oriundas do aludido departamento? A resposta a estas bizantinas
questões depende da resposta que for dada à problemática interrogação, o que é um orçamento?
***
Antes de mais, é conveniente
reter o que diz sobre esta matéria a Constituição da República Portuguesa (CRP),
sobretudo nos artigos da chamada constituição financeira (art.os
105.º-107.º).
Assim, o art.º 105.º estabelece
que o Orçamento do Estado:
Contém
a discriminação das receitas e despesas do Estado, incluindo as dos fundos e
serviços autónomos, bem como o da segurança social; é elaborado de harmonia com
as grandes opções em matéria de planeamento e tendo em conta as obrigações decorrentes
de lei ou de contrato; é unitário e especifica as despesas segundo a respetiva
classificação orgânica e funcional, de modo a impedir a existência de dotações
e fundos secretos, podendo ainda ser estruturado por programas; e prevê as
receitas necessárias para cobrir as despesas, definindo a lei as regras da sua
execução, as condições a que deverá obedecer o recurso ao crédito público e os
critérios que deverão presidir às alterações que, durante a execução, poderão
ser introduzidas pelo Governo nas rubricas de classificação orgânica no âmbito
de cada programa orçamental aprovado pela Assembleia da República, tendo em
vista a sua plena realização.
É óbvia a noção de previsão (de
receitas e despesas) como inerente à noção de orçamento. Mas à noção de
previsão tem de agregar-se a exigência da sustentabilidade, da regulação, da
classificação e da assunção da forma de lei (o documento tem de ser aprovado no
Parlamento, promulgado pelo Presidente da República, referendado pelo Primeiro-Ministro
e publicado no Diário da República). A lei do orçamento respeitará as opções de
fundo e definirá as regras de execução das previsões, as condições de recurso
ao crédito público e os critérios a que obedecerão as alterações a introduzir
pelo Governo nas rubricas de cada programa orçamental.
Por sua vez, o art.º 106.º
estabelece os procedimentos a observar em relação ao Orçamento.
–
A lei do Orçamento é elaborada, organizada, votada e executada, anualmente, de
acordo com a respetiva lei de enquadramento, que incluirá o regime atinente à
elaboração e execução dos orçamentos dos fundos e serviços autónomos.
–
A proposta de Orçamento é apresentada e votada nos prazos fixados na lei, a
qual prevê os procedimentos a adotar quando aqueles não puderem ser cumpridos.
–
A proposta de Orçamento é acompanhada de relatórios sobre: a previsão da
evolução dos principais agregados macroeconómicos com influência no Orçamento,
bem como da evolução da massa monetária e suas contrapartidas; a justificação
das variações de previsões das receitas e despesas relativamente ao Orçamento
anterior; a dívida pública, as operações de tesouraria e as contas do Tesouro;
a situação dos fundos e serviços autónomos; as transferências de verbas para as
regiões autónomas e as autarquias locais; as transferências financeiras entre
Portugal e o exterior com incidência na proposta do Orçamento; e os benefícios
fiscais e a estimativa da receita cessante.
E o art.º 107.º indica as entidades que fiscalizam a execução
do Orçamento: o Tribunal de Contas e a Assembleia da República, que, precedendo
parecer daquele tribunal, apreciará e aprovará a Conta Geral do Estado,
incluindo a da segurança social.
Sendo assim, sublinha-se que o Orçamento do Estado (OE) é o quadro geral
básico de toda a atividade financeira, pois, através dele, procura fixar-se a
utilização a dar aos dinheiros públicos.
É, então,
simultaneamente a previsão económica ou plano financeiro das
receitas e despesas do Estado para o período dum ano; a autorização
política desse plano com vista à garantia dos direitos fundamentais
dos cidadãos, do equilíbrio e da separação de poderes, bem como da limitação dos poderes financeiros da
Administração para o período do exercício orçamental. Paralelamente ao Orçamento do Estado figuram três
importantes segmentos financeiros: o das Regiões Autónomas, o das Autarquias e
o das Empresas Públicas.
O Orçamento é proposto pelo Governo, ouvidos os parceiros sociais; aprovado
pela Assembleia da República; executado pelo Governo; e fiscalizado, quanto à
execução, pelo próprio Governo, pelo Tribunal de Contas e pela Assembleia da
República.
O Orçamento configura
a previsão autorizada anual da realização qualitativa e quantitativa das
despesas e das receitas públicas em ordem à satisfação das necessidades coletivas.
A LEOE (Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado) – Lei n.º 91/2001, de
20 agosto, alterada e republicada pela Lei n.º 37/2013, de 14 de junho – enquanto
lei de valor reforçado, consigna um conjunto de regras e princípios, que, no respeito
do quadro constitucional, disciplinam o Orçamento e estabelecem os
procedimentos relativos à sua elaboração e organização, discussão e aprovação,
execução e alteração, bem como ao correspondente e necessário controlo. A LEOE regula,
em especial, os chamados princípios e regras orçamentais: anualidade, plenitude (unidade e
universalidade), equilíbrio (formal e material), discriminação orçamental
(especificação, não compensação e não consignação) e publicidade.
Não será demais passar em revista os preditos princípios.
A anualidade significa que o
planeamento da gestão financeira, vertido no Orçamento do Estado, tem como
período temporal o dum ano civil. Porém, a índole anual não prejudica a integração no Orçamento de programas e projetos
que impliquem encargos plurianuais. Esta regra leva a referir,
ainda, que no orçamento de
gerência se incluem as receitas e as despesas efetivamente
cobradas e realizadas, independentemente da data do facto jurídico subjacente;
e no orçamento de
exercício inscrevem-se os créditos e os débitos criados durante a
execução orçamental, independentemente do momento da sua efetivação.
Por seu turno, a plenitude, que
abrange as regras da unidade (o orçamento é uno e único) e da universalidade (engloba
todas as receitas e despesas do Estado), tem por objetivo, no atinente à unidade, a transparência à gestão dos
dinheiros públicos, isto é, às respetivas obtenção e afetação e, no respeitante
à universalidade, o evitar da existência de dotações e fundos secretos.
No atinente ao equilíbrio
(material e formal), há que referir ser esta a mais importante regra, em termos de
substância e tanto para efeitos de planeamento como para efeitos de execução
financeira da Administração Central. E significa que é necessário planear e
executar a gestão financeira pública de modo a que as despesas previstas e
realizadas sejam realmente cobertas pelas receitas previstas e realizadas.
Do seu lado, a discriminação
– que visa indicar com rigor
as diversas fontes de que vão brotar os recursos financeiros do Estado, bem
como os múltiplos dispêndios ou aplicações que lhes vai ser dado – engloba um
conjunto de subprincípios. Assim, no tocante à especificação, implica a suficiente individualização das
receitas e despesas, sem exageros. Já a não compensação, ou regra
do Orçamento Bruto, significa inscrever receitas e despesas pelo montante
bruto, ou seja, sem dedução quer dos encargos de cobrança das receitas, quer
dos ganhos originados pela realização das despesas. Por sua vez, a não consignação traduz-se no facto
de todas as receitas servirem para cobrir todas as despesas, e, portanto, de
não se permitir que certas e determinadas receitas venham a cobrir certas e
determinadas despesas.
Por fim, a publicidade
é nota necessária para a
eficácia da lei orçamental como para qualquer outra lei, pelo que tem de ser
publicada na I série do Diário da República.
Quando o equilíbrio não é atingido, o que também é previsível e, à vezes,
justificável, verifica-se o défice, que faz engordar a dívida pública e que coloca
os países em risco de penalização por défice excessivo. Por outro lado, por
vezes, é conveniente que determinadas receitas e despesas não entrem no
orçamento, o que, a ser useiro e vezeiro ou em caso de ocultação, pode levar a
gestão danosa para o interesse do Estado. É quando se fala de desorçamentação.
O fenómeno da desorçamentação normalmente aceite
traduz-se quer na saída do
Orçamento do Estado, quer no afastamento da disciplina orçamental, de
importantes massas de dinheiros públicos. A existência de grandes volumes de
fundos públicos que se posicionam integralmente à margem da previsão e das
regras de execução orçamental do Orçamento do Estado sucede nos casos de
independência orçamental; na existência de processos próprios de elaboração e
de aprovação de tais orçamentos; na existência duma administração financeira
privativa de algumas entidades; na existência de formas próprias e autónomas de
perceção de receitas e de realização de despesas e seu controlo, de
contabilidade e de responsabilidade de gestores. É manifestamente o caso das
regiões autónomas, das autarquias locais e das empresas públicas.
***
É óbvio que os governantes têm razão quando acusam as afirmações de outrem
de previsões. Porém, enquanto as formulações das oposições podem ser pouco sustentadas
por insuficiência de conhecimento técnico do estado das contas públicas (fixando-se
mais no lado político, que não é menos importante), as formulações críticas das
instâncias não governamentais, que vêm acompanhando a gestão do país, partem
dos mesmos pressupostos existenciais que as formulações do Governo. Por conseguinte,
não se lhes pega a tautologia das previsões.
Demais, é caso para questionar o Governo por que razão só agora pretende
deixar de ser o bom aluno da Europa e da troika; e a troika sobre o motivo por
que só agora se põe em bicos de pés, ao passo que dantes dava sempre uma nota
positiva ao desempenho do Governo (menos naquele ano que tivemos de esperar pelo
13 de maio), que falhava todas as previsões, produzia orçamentos com normas
inconstitucionais e se estribava nas previsões como pretexto para, em nome de uma
famigerada reforma do Estado, que não se fez, rarefazer até ao cerne a administração
pública, cortar em salários, subsídios e pensões, aumentar brutalmente os
impostos e contribuições e reduzir à expressão mais simples o poder de compra e
a capacidade de subsistência dos cidadãos (sem recursos, sem educação, sem
saúde, sem proteção na velhice). Se a troika refere que o Estado afrouxou o
furor reformista, depois que ela foi embora, é só porque, ao ver de perto, não
notava a ineficácia, o insucesso. Teve de se afastar para ver. Mas que não
volte, pois já basta de pressões sobre os mais frágeis! E vem aí o milagre do
da contenção do défice abaixo dos 3% (é óbvio, tirando das contas aquilo que
estorve ou tendo na manga o retificativo).
***
Enfim, o Orçamento do Estado, que não pode bailar de retificativo em
retificativo, é um complexo de previsões, mas previsões sustentáveis, com a capacidade
de serem ideias-força, articuladas com os outros desígnios, princípios e normas
inerentes ao labor orçamental. E não vale lançar anátemas às oposições, aos
jornalistas ou aos comentadores, nem vale argumentar com as instâncias
internacionais só para a toma das medidas que interessam ao agir de quem governa,
desvalorizando-as quando elas põem em causa os instrumentos de gestão do Estado
que os hierarcas políticos adotam contra tudo e contra todos.
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