quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Previsões são previsões!

Como é patente para todos, o Governo, no âmbito da proposta de Lei do Orçamento de Estado, faz previsões várias ao nível do crescimento da economia e ao nível das diversas variáveis. São relevantes as atinentes ao arrecadamento de receitas, seja no quadro dos impostos (IRS, IVA, IRC, IPE e outros de que se destacam os impostos verdes). De modo similar se fazem previsões para o decréscimo do desemprego, do limite do défice, da dívida pública, diminuição de despesas públicas, crescimento do PIB, etc. – que as oposições contestam fortemente.
Quando confrontados com a discrepância de entidades que habitualmente se pronunciam de forma paralela à do Governo – OCDE, FMI, BCE, Comissão Europeia, UTAO, Conselho de Finanças Públicas (céticas quanto ao cumprimento das metas orçamentais) – os nossos governantes escudam-se naquela espécie de aforismo tautológico – previsões são previsões – de que se trata de meras previsões, que não passam de previsões e previsões valem o que valem.
Acaso poderemos dizer o mesmo das previsões governamentais? Será a Direção-Geral do Orçamento um simples departamento estatal de previsões de caráter astrológico ou atmosférico, sendo apenas certo que as previsões do Governo são mais precisas que as do Borda d’Água, como dizia Bruno Dias, do PCP, ao então Ministro da Economia Álvaro Santos Pereira? Será a Secretaria de Estado do Orçamento a estrutura que transforma em esboço de proposta de lei o catálogo das previsões oriundas do aludido departamento? A resposta a estas bizantinas questões depende da resposta que for dada à problemática interrogação, o que é um orçamento?
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Antes de mais, é conveniente reter o que diz sobre esta matéria a Constituição da República Portuguesa (CRP), sobretudo nos artigos da chamada constituição financeira (art.os 105.º-107.º).
Assim, o art.º 105.º estabelece que o Orçamento do Estado:
Contém a discriminação das receitas e despesas do Estado, incluindo as dos fundos e serviços autónomos, bem como o da segurança social; é elaborado de harmonia com as grandes opções em matéria de planeamento e tendo em conta as obrigações decorrentes de lei ou de contrato; é unitário e especifica as despesas segundo a respetiva classificação orgânica e funcional, de modo a impedir a existência de dotações e fundos secretos, podendo ainda ser estruturado por programas; e prevê as receitas necessárias para cobrir as despesas, definindo a lei as regras da sua execução, as condições a que deverá obedecer o recurso ao crédito público e os critérios que deverão presidir às alterações que, durante a execução, poderão ser introduzidas pelo Governo nas rubricas de classificação orgânica no âmbito de cada programa orçamental aprovado pela Assembleia da República, tendo em vista a sua plena realização.
É óbvia a noção de previsão (de receitas e despesas) como inerente à noção de orçamento. Mas à noção de previsão tem de agregar-se a exigência da sustentabilidade, da regulação, da classificação e da assunção da forma de lei (o documento tem de ser aprovado no Parlamento, promulgado pelo Presidente da República, referendado pelo Primeiro-Ministro e publicado no Diário da República). A lei do orçamento respeitará as opções de fundo e definirá as regras de execução das previsões, as condições de recurso ao crédito público e os critérios a que obedecerão as alterações a introduzir pelo Governo nas rubricas de cada programa orçamental.
Por sua vez, o art.º 106.º estabelece os procedimentos a observar em relação ao Orçamento.
– A lei do Orçamento é elaborada, organizada, votada e executada, anualmente, de acordo com a respetiva lei de enquadramento, que incluirá o regime atinente à elaboração e execução dos orçamentos dos fundos e serviços autónomos.
– A proposta de Orçamento é apresentada e votada nos prazos fixados na lei, a qual prevê os procedimentos a adotar quando aqueles não puderem ser cumpridos.
– A proposta de Orçamento é acompanhada de relatórios sobre: a previsão da evolução dos principais agregados macroeconómicos com influência no Orçamento, bem como da evolução da massa monetária e suas contrapartidas; a justificação das variações de previsões das receitas e despesas relativamente ao Orçamento anterior; a dívida pública, as operações de tesouraria e as contas do Tesouro; a situação dos fundos e serviços autónomos; as transferências de verbas para as regiões autónomas e as autarquias locais; as transferências financeiras entre Portugal e o exterior com incidência na proposta do Orçamento; e os benefícios fiscais e a estimativa da receita cessante.
E o art.º 107.º indica as entidades que fiscalizam a execução do Orçamento: o Tribunal de Contas e a Assembleia da República, que, precedendo parecer daquele tribunal, apreciará e aprovará a Conta Geral do Estado, incluindo a da segurança social.
Sendo assim, sublinha-se que o Orçamento do Estado (OE) é o quadro geral básico de toda a atividade financeira, pois, através dele, procura fixar-se a utilização a dar aos dinheiros públicos. É, então, simultaneamente a previsão económica ou plano financeiro das receitas e despesas do Estado para o período dum ano; a autorização política desse plano com vista à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, do equilíbrio e da separação de poderes, bem como da limitação dos poderes financeiros da Administração para o período do exercício orçamental. Paralelamente ao Orçamento do Estado figuram três importantes segmentos financeiros: o das Regiões Autónomas, o das Autarquias e o das Empresas Públicas.
O Orçamento é proposto pelo Governo, ouvidos os parceiros sociais; aprovado pela Assembleia da República; executado pelo Governo; e fiscalizado, quanto à execução, pelo próprio Governo, pelo Tribunal de Contas e pela Assembleia da República.
O Orçamento configura a previsão autorizada anual da realização qualitativa e quantitativa das despesas e das receitas públicas em ordem à satisfação das necessidades coletivas.
A LEOE (Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado) – Lei n.º 91/2001, de 20 agosto, alterada e republicada pela Lei n.º 37/2013, de 14 de junho – enquanto lei de valor reforçado, consigna um conjunto de regras e princípios, que, no respeito do quadro constitucional, disciplinam o Orçamento e estabelecem os procedimentos relativos à sua elaboração e organização, discussão e aprovação, execução e alteração, bem como ao correspondente e necessário controlo. A LEOE regula, em especial, os chamados princípios e regras orçamentais: anualidade, plenitude (unidade e universalidade), equilíbrio (formal e material), discriminação orçamental (especificação, não compensação e não consignação) e publicidade.
Não será demais passar em revista os preditos princípios.
A anualidade significa que o planeamento da gestão financeira, vertido no Orçamento do Estado, tem como período temporal o dum ano civil. Porém, a índole anual não prejudica a integração no Orçamento de programas e projetos que impliquem encargos plurianuais. Esta regra leva a referir, ainda, que no orçamento de gerência se incluem as receitas e as despesas efetivamente cobradas e realizadas, independentemente da data do facto jurídico subjacente; e no orçamento de exercício inscrevem-se os créditos e os débitos criados durante a execução orçamental, independentemente do momento da sua efetivação.
Por seu turno, a plenitude, que abrange as regras da unidade (o orçamento é uno e único) e da universalidade (engloba todas as receitas e despesas do Estado), tem por objetivo, no atinente à unidade, a transparência à gestão dos dinheiros públicos, isto é, às respetivas obtenção e afetação e, no respeitante à universalidade, o evitar da existência de dotações e fundos secretos.
No atinente ao equilíbrio (material e formal), há que referir ser esta a mais importante regra, em termos de substância e tanto para efeitos de planeamento como para efeitos de execução financeira da Administração Central. E significa que é necessário planear e executar a gestão financeira pública de modo a que as despesas previstas e realizadas sejam realmente cobertas pelas receitas previstas e realizadas.
Do seu lado, a discriminação – que visa indicar com rigor as diversas fontes de que vão brotar os recursos financeiros do Estado, bem como os múltiplos dispêndios ou aplicações que lhes vai ser dado – engloba um conjunto de subprincípios. Assim, no tocante à especificação, implica a suficiente individualização das receitas e despesas, sem exageros. Já a não compensação, ou regra do Orçamento Bruto, significa inscrever receitas e despesas pelo montante bruto, ou seja, sem dedução quer dos encargos de cobrança das receitas, quer dos ganhos originados pela realização das despesas. Por sua vez, a não consignação traduz-se no facto de todas as receitas servirem para cobrir todas as despesas, e, portanto, de não se permitir que certas e determinadas receitas venham a cobrir certas e determinadas despesas.
Por fim, a publicidade é nota necessária para a eficácia da lei orçamental como para qualquer outra lei, pelo que tem de ser publicada na I série do Diário da República.
Quando o equilíbrio não é atingido, o que também é previsível e, à vezes, justificável, verifica-se o défice, que faz engordar a dívida pública e que coloca os países em risco de penalização por défice excessivo. Por outro lado, por vezes, é conveniente que determinadas receitas e despesas não entrem no orçamento, o que, a ser useiro e vezeiro ou em caso de ocultação, pode levar a gestão danosa para o interesse do Estado. É quando se fala de desorçamentação.
O fenómeno da desorçamentação normalmente aceite traduz-se quer na saída do Orçamento do Estado, quer no afastamento da disciplina orçamental, de importantes massas de dinheiros públicos. A existência de grandes volumes de fundos públicos que se posicionam integralmente à margem da previsão e das regras de execução orçamental do Orçamento do Estado sucede nos casos de independência orçamental; na existência de processos próprios de elaboração e de aprovação de tais orçamentos; na existência duma administração financeira privativa de algumas entidades; na existência de formas próprias e autónomas de perceção de receitas e de realização de despesas e seu controlo, de contabilidade e de responsabilidade de gestores. É manifestamente o caso das regiões autónomas, das autarquias locais e das empresas públicas.
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É óbvio que os governantes têm razão quando acusam as afirmações de outrem de previsões. Porém, enquanto as formulações das oposições podem ser pouco sustentadas por insuficiência de conhecimento técnico do estado das contas públicas (fixando-se mais no lado político, que não é menos importante), as formulações críticas das instâncias não governamentais, que vêm acompanhando a gestão do país, partem dos mesmos pressupostos existenciais que as formulações do Governo. Por conseguinte, não se lhes pega a tautologia das previsões.
Demais, é caso para questionar o Governo por que razão só agora pretende deixar de ser o bom aluno da Europa e da troika; e a troika sobre o motivo por que só agora se põe em bicos de pés, ao passo que dantes dava sempre uma nota positiva ao desempenho do Governo (menos naquele ano que tivemos de esperar pelo 13 de maio), que falhava todas as previsões, produzia orçamentos com normas inconstitucionais e se estribava nas previsões como pretexto para, em nome de uma famigerada reforma do Estado, que não se fez, rarefazer até ao cerne a administração pública, cortar em salários, subsídios e pensões, aumentar brutalmente os impostos e contribuições e reduzir à expressão mais simples o poder de compra e a capacidade de subsistência dos cidadãos (sem recursos, sem educação, sem saúde, sem proteção na velhice). Se a troika refere que o Estado afrouxou o furor reformista, depois que ela foi embora, é só porque, ao ver de perto, não notava a ineficácia, o insucesso. Teve de se afastar para ver. Mas que não volte, pois já basta de pressões sobre os mais frágeis! E vem aí o milagre do da contenção do défice abaixo dos 3% (é óbvio, tirando das contas aquilo que estorve ou tendo na manga o retificativo).
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Enfim, o Orçamento do Estado, que não pode bailar de retificativo em retificativo, é um complexo de previsões, mas previsões sustentáveis, com a capacidade de serem ideias-força, articuladas com os outros desígnios, princípios e normas inerentes ao labor orçamental. E não vale lançar anátemas às oposições, aos jornalistas ou aos comentadores, nem vale argumentar com as instâncias internacionais só para a toma das medidas que interessam ao agir de quem governa, desvalorizando-as quando elas põem em causa os instrumentos de gestão do Estado que os hierarcas políticos adotam contra tudo e contra todos.

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