terça-feira, 18 de novembro de 2014

Na presença de Sua Excelência…

Aqui há dias, numa das minhas voltas rotineiras, passei pelas imediações de uma escola básica (do 2.º e 3.º CEB) recentemente inaugurada. E a placa testemunho do ato solene de inauguração despertou a minha curiosidade. Ao ler, vi que rezava (vou omitir data e nome) que no dia x do mês y do ano z, foi inaugurada pelo senhor Presidente da Câmara Municipal de L, Dr N, na presença de Sua Excelência o Ministro da Educação.
Não tenho gosto absolutamente nenhum em acudir ao lugar e posição do Ministro, que tão pouco adequado se tem revelado ao jeito da pasta ministerial que sobraça. Se ele não se interessou, quem sou eu para levantar lebres. No entanto, trata-se de uma escola e de um Ministro da Educação. E, se aos manifestantes se reconhece o direito e a liberdade de expressão, mesmo que intempestiva, à autarquia postula-se uma pouco de humildade cidadã, devendo prevalecer o seu estatuto de exemplaridade em termos da cidadania. O poder político local é a base do poder democrático, pelo lado da proximidade dos cidadãos e das comunidades e pelo lado da rampa de lançamento de muitos para outros patamares da ação política. A Constituição da República, o legislador ordinário e os poderes fazem o jus devido à sua importância.
Todavia, a boa casa, quando convida alguém de valia superior e até igual, oferece-lhe a primazia de honra. Todos nós o fazemos. O nosso convidado de honra tem, na nossa casa, o primeiro lugar. Ou seja, do meu ponto de vista, a presidência do ato inaugural cabia ao Ministro, com menção expressa do Presidente da Câmara, o anfitrião, já que terá sido a autarquia municipal quem assumiu o ónus de “dono da obra”.
É certo que a “Lei das Precedências do Protocolo do Estado Português” (Lei n.º 40/2006, de 25 de agosto), querendo esclarecer situações ambíguas anteriores, acabou por, de algum modo, baralhar algumas questões. Claro ficou o papel subalterno do lugar dos governadores civis ao do presidente da câmara, entidades que o atual governo extinguiu juntamente com os respetivos governos civis. A Constituição tinha-lhes previsto o fim, mantendo-os até à implementação das regiões administrativas, o que ainda não aconteceu. Porém, parece que, apesar de o Governo ter colocado o carro à frente dos bois, ninguém derramou lágrimas por aquelas entidades e por aqueles serviços! E para quando a regionalização determinada constitucionalmente?
É certo que o art.º 31.º da supracitada lei estabelece, no seu n.º 1, que “os presidentes das câmaras municipais, no respetivo concelho, gozam do estatuto protocolar dos ministros”. Por seu turno, o n.º 2 do mesmo artigo determina que “os presidentes das câmaras municipais presidem a todos os atos realizados nos paços do concelho ou organizados pela respetiva câmara, exceto se estiverem presentes o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República ou o Primeiro-Ministro, e, nas regiões autónomas, têm ainda precedência o Representante da República, o Presidente da Assembleia Legislativa e o Presidente do Governo Regional”. Far-se-á a mesma ressalva para o Presidente da Assembleia e para o Presidente do Governo de região administrativa, quando ela tiver sido criada? Ou as regiões administrativas terão um estatuto de menoridade em relação às regiões autónomas?
Porém, qualquer normativo deve ser lido de forma articulada. Nestes termos, há que ter em conta o n.º 4 do art.º 14.º, que estabelece: “Nas cerimónias do âmbito de cada ministério, o respetivo ministro tem a precedência”.
Ora, não me parece que a inauguração duma escola esteja fora da área de intervenção do Ministério da Educação; e o Ministro estava presente. Por outro lado, não é crível nem plausível que seja a câmara a organizar sozinha uma festa de inauguração de escola, ignorando as autoridades escolares. Também, que me conste, a inauguração de escola não se realiza nos paços do concelho. Demais, se dúvidas persistissem, nada tão bom como a observância do princípio da deferência, no âmbito da cortesia, para com uma entidade que, a convite, visita o empreendimento por ocasião de um ato solene.
***
Esta reflexão crítica conduz-me a outra, talvez ainda mais critica. Sempre a escola procurou educar para a cidadania, quer pela atenção aos valores e pela observância de regras no âmbito do saber ser e do saber estar, quer pela ministração de conteúdos em áreas ou disciplinas de civismo e/ou formação cívica, quer ainda pela insistência na transversalidade de alguns conceitos, atitudes e comportamentos, que revelam valores axiais e valores conexos comummente aceites.
Recordo-me de que, em 2001, o sistema educativo inseriu no quadro do ensino básico uma área curricular não disciplinar, que, para lá da atenção à índole transversal da educação para a cidadania, constituía um espaço privilegiado para esta dimensão educativa. E, dez anos depois, em 2011, o plano curricular do 10.º ano inscrevia uma disciplina de formação cívica.
Cumpre também referir que, após a aprovação, promulgação e publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei n.º 46/86, de 14 de outubro), se estabeleceu a existência de uma disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social, alternativa à de Educação Moral e Religiosa Católica, para a qual se qualificaram alguns docentes, mas cuja aplicação no terreno foi residual, para não dizer nula.
O Ministério da Educação, de Nuno Crato, argumentando com a índole transdisciplinar da educação para a cidadania, acabou por retirar do currículo de qualquer nível de educação e ensino a formação cívica como área ou disciplina autónoma, deixando às escolas a possibilidade de a assumir ad libitum no âmbito da oferta de escola ou de oferta complementar ou, ainda, no âmbito dos projetos e clubes de escola.
Seja como for, além deste empobrecimento curricular, imposto por critérios economicistas do corte remendo e de busca obsessiva de resultados em exame nacional ou prova final nacional – entendimento desgraçadamente redutor da educação e ensino pelo próprio presidente do IAVE, IP – o MEC faz mais estragos. No pressuposto de que o ano letivo é milimetricamente programado a régua e esquadro segundo o desenho curricular e os conteúdos programáticos (atente-se na paranoia das aulas suplementares de que todos falam para as disciplinas de exame/prova final, mesmo nos anos não de final de ciclo), as aulas, uma vez iniciadas, não podem ser interrompidas por motivo algum, a não ser nos precisos termos indicados no calendário escolar.
E vai daí, algumas escolas obrigam alunos e professores a compensar as aulas perdidas com visitas de estudo (das turmas a que faltaram os professores que acompanharam as visitas de outras turmas; e algumas escolas, mesmo as das turmas que integram as visitas). Também, por motivos semelhantes, deveriam compensar então as aulas perdidas com os testes intermédios, os testes da própria disciplina, as faltas do aluno, as faltas do professor, os nevões, as falhas de luz, as faltas de água, as faltas de giz e apagador, os cortes de Internet e a ausência de computador e/ou de quadros interativos, as interrupções de aula por mau comportamento dos alunos, os simulacros, os atrasos do almoço, a falta de pontualidade dos transportes…
Em nada, muito menos na educação, se devem cortar as unhas muito rentes. Lembro-me de um professor que tive, o qual, tendo regressado de Roma, não conseguia dar integralmente a aula conforme tinha planeado. O tempo nunca lhe chegava; o que sobrava era conteúdo. Porém, no segundo semestre, convencido de que o que se aprende na Faculdade não é para transmitir ipsis verbis, habituou-se a gerir os tempos e os conteúdos. E, muito mais solto e mais próximo dos alunos, obteve melhores resultados.
Vem a talho de foice este chorrilho de sugestão de compensações e a memória do velho professor para fazer o meu ato de censura às escolas que marcam a cerimónia do “dia do diploma” para dia e/ou hora em que a comunidade escolar não pode participar ou as que marcam as inaugurações e outras solenidades sem a participação da maior parte dos elementos da comunidade escolar, contentando-se com a chamada comunidade educativa.

Uma educação para a cidadania ou o civismo e formação cívica implicariam, do meu ponto de vista, a participação de toda a comunidade escolar nalguns eventos. Os docentes deveriam ser motivados à paciência de acompanhar os alunos e a ensiná-los a participar, mesmo que pelo silêncio, a determinados atos públicos. A sociedade dos cidadãos inscreve no seu devir atos públicos deste jaez. Ou será que a escola quer cidadãos autónomos, conscientes e responsáveis que deem secretários de Estado das áreas da educação que não se saibam dirigir ao Parlamento? Aconteceu no tempo de Sócrates, o político!

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