Bastava
eliminar as gorduras do Estado, emagrecer o Estado, ter ou fazer menos Estado e
conseguir melhor Estado… eram diversas as formas apontadas para tirar o País da
crise, propaladas pelos profetas das eleições de 2011. Longe deles no período
eleitoral (pré-campanha campanha) o espectro de cortes nos salários dos
funcionários públicos, nos subsídios dos mesmos, nas pensões de aposentação ou
de reforma. Tudo isto era desnecessário e os cortes operados até 2011 só
testemunhavam a má gestão da coisa pública da parte do Governo então em funções.
E
com essa atoarda, digna de quem jurava não ter qualquer apetência para acorrer
ao pote do poder, uma força partidária ganhou as eleições. Porém, os eleitores,
apesar da desilusão gerada na segunda parte do consulado de José Sócrates,
conjugada com a movimentação social e política desencadeada por Cavaco Silva ao
sobressalto democrático, não deram a um só partido a maioria absoluta. Por
isso, se forjou uma aliança pós-eleitoral PSD/CDS. Muitos acreditaram num
projeto que se dizia socialdemocrata, coadjuvado por um partido (embora
minoritário) que se afirmava provedor dos agricultores e dos pensionistas, em
nome da sua matriz democrata-cristã.
Pelos
vistos, a declaração do propósito de eliminação das gorduras do Estado tinha
subjacente a ideia do desenvolvimento de um projeto neoliberal. Ultrapassava,
sim, em muito larga escala aquele desígnio da era de Guterres de reduzir a
despesa corrente primária. Previa, ao invés, a privatização de quase todas as
empresas e serviços de que, numa perspetiva liberal do laissez faire-laissez passer, o Estado deveria retirar-se.
Falava-se abertamente na privatização das Águas de Portugal, da RTP, da CGD, da
TAP, dos CTT, da REN, da EDP, da ANA-Aeroportos, do BPN… No entanto, foi
possível vender o BPN por um preço pouco mais que simbólico, vender a EDP ao
Estado chinês, privatizar a REN, privatizar a ANA em favor da Vinci francesa, vender os CTT através
das ações bolsistas e privatizar alguns serviços do Grupo CGD. Privatizaram
ainda, de forma bem polémica, os Estaleiros Navais de Viana do Castelo. De
momento, volta a estar sobre a mesa a privatização da TAP, após uma tentativa
clamorosamente falhada. Por último, foi revelada a intenção de privatizar o
Metro e a Carris de Lisboa e a Metro do Porto. Das privatizações, em regra, não
surtiu significativo encaixe financeiro para o Estado, que desse para aliviar o
défice e/ou o serviço da dívida (se não fosse a redução da taxa de juro
diretora do BCE que desceu até aos 0,05%...); a gestão privada não se figurou
melhor; os utentes, clientes ou consumidores não estão mais bem servidos, não
dispõem de serviços significativamente mais baratos e sofrem, por vezes, os
intempestivos efeitos da cartelização empresarial; o crédito não chega às
famílias e às pequenas e médias empresas. E o Estado assiste impotente à
atomização e ao aniquilamento da que foi a todo-poderosa PT!
Os
últimos desenvolvimentos banco-financeiros levaram a uma nacionalização
indireta do BES, através do Fundo de Resolução, que tem de o vender a privados
no mais curto espaço de tempo possível, para minimizar ao máximo os estragos no
bolso dos contribuintes.
Por
falar em emagrecimento do Estado, todos se recordam do pequeno número de
ministros, da alegada minimização do número de componentes dos gabinetes
ministeriais e secretariais, da necessidade apregoada por Nuno Crato de fazer
implodir o Ministério da Educação e de se entregarem os exames nacionais a uma
entidade independente, da intenção de fundir institutos e serviços públicos, do
ataque às fundações, da continuidade na prossecução de encerramento de escolas
e na saga de agregação de agrupamentos de escolas e do redimensionamento dos
serviços hospitalares e similares. Até quiseram proceder a uma reforma
administrativa do território, que passava pela eliminação e agregação de
autarquias, tendo-se ficado por esta modalidade de reforma só nas freguesias.
Foi uma litânia de maleitas de que o Governo se foi curando com o tempo, se
excetuarmos o atinente às escolas e à saúde. O número de Ministros aproxima-se
do número habitual e, se ainda não o atinge, é compensado pelo número de
secretarias de Estado e direções-gerais (no MEC criaram uma esquisita
direção-geral dos estabelecimentos escolares). As fundações mantêm-se vivas e
seguras, os institutos também, o Ministério da Educação continua a regular ao
pormenor toda a vida das escolas e a dizer que elas são autónomas. Até a
entidade independente para elaborar e apreciar os exames nacionais consistiu em
fazer-se do GAVE (Gabinete de Avaliação Educacional) um IAVE, IP.
Porém,
o Governo quis fazer uma reforma da Justiça, que deu pano para mangas, por
motivos que ainda hão de fazer correr muita tinta até que surja cabal
esclarecimento, quando a lucidez imperar no Ministério da Justiça; prepara-se
para a reforma das finanças, encerrando serviços em muitos dos municípios; e
encetou a experiência da municipalização das escolas, como balão de ensaio para
a sua entrega aos privados, com depauperamento da escola pública.
***
Mas,
afinal, como é que o Governo que não se importava de governar com o FMI
(Lembram-se?) e que pretendia ir além da troika, resolveu gerir a crise para
dela sair?
Em
2011, alegando a inesperada existência de um desvio colossal nas contas,
conseguiu a imposição de um imposto extraordinário, que grosso modo implicou a doação coerciva de metade do subsídio de
Natal ao erário público por parte de cada contribuinte. Já, em 2012, os
funcionários públicos e pensionistas que auferissem um vencimento ou uma pensão
superior a um determinado montante ofereciam coercivamente os dois subsídios de
Natal e de férias. Como esta medida foi considerada inconstitucional, embora o
efeito da declaração de inconstitucionalidade só valesse para os anos
seguintes, o ano de 2103 agravou as condições: os escalões do IRS foram
redimensionados (diminuído o seu número, alargados o intervalos de montantes e
começando o último num montante relativamente baixo) de modo que todos pagassem
mais impostos; imposição da sobretaxa extraordinária de 3,5% cobrável em sede
de IRS; aplicação da CES progressiva, com saltos, aos aposentados, jubilados e
reformados; pagamento do subsídio de natal em duodécimos; pagamento do subsídio
de férias em períodos diferentes, conforme os montantes (obrigatório na
administração pública, facultativo na privada). Em 2014, depois das
infrutíferas tentativas de alteração dos regimes de pensões de aposentação em
pagamento, da proibição de pedido de reforma antecipada no setor privado
(decretada em 2012) e da antecipação do termo do período de transição do regime
de aposentação na administração pública (a partir de 1 de janeiro de 2013), o
Governo conseguiu agravar os cortes dos vencimentos na função pública sobre os
cortes já decididos pelo governo minoritário de Sócrates. Ainda em 2012, a administração
pública viu-se espartilhada no seu funcionamento com a famigerada lei dos
compromissos (Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro); e os contribuintes viram
seus imóveis reavaliados com vista a um impertinente agravamento do IMI – tanto
assim foi que o Governo se viu na necessidade de estabelecer uma cláusula de
salvaguarda para o agravamento não se tornar tão excessivo só de uma vez.
Ademais,
em todos os anos foram determinados vários modos de impor cortes intempestivos e
drásticos em vários ministérios, sem se especificar muito bem onde e como.
Foram ainda lançados programas de rescisão por mútuo acordo para os
trabalhadores da administração pública, requalificação de funcionários (redução
progressiva de vencimento até ao despedimento), aumento do número de alunos por
turma, sobrecarga de trabalhos para os docentes, emagrecimento da educação e
formação de adultos, redução das áreas curriculares e das cargas horárias nas
componentes curriculares no sistema educativo, obrigação das 40 horas de
trabalho semanal na administração pública.
Por
outro lado, instalou-se o sistema das atoardas de inverdade, medindo tudo pela
mesma rasa. Todos andámos a viver irresponsavelmente acima das nossas
possibilidades. A troika e a OCDE faziam pressões sobre o Governo para cortes,
reformas do Estado e não sei que mais, vindo a saber-se que maior parte dos
conteúdos dos relatórios das instâncias internacionais se baseavam em
informação veiculada a partir de Lisboa.
O
próprio MEC, quando fez aprovar o DL n.º 94/2011, de 3 de agosto, ignorou o DL
n.º 18/2011, de 2 de fevereiro, que impunha restrições curriculares e de gestão
no ensino básico, visando a flexibilização da organização dos tempos letivos
dos 2.º e 3.º ciclos; a eliminação da área de projeto do elenco das áreas curriculares
não disciplinares; e a reorganização dos desenhos curriculares dos 2.º e 3.º
ciclos. (cf DL n.º 18/2011, art.º 1.º). A Área de Estudo Acompanhado
manter-se-ia para “os alunos com efetivas necessidades de apoio”, cabendo ao
professor titular de turma ou ao conselho de turma determinar quais os alunos
que deviam frequentar o estudo acompanhado (cf DL n.º 18/2011, art.º 4.º). Ora
o DL n.º 94/2011, tanto no seu objeto como nos outros artigos que alteram
legislação, refere os: DL n.º 6/2001, de 18 de janeiro; DL n.º 209/2002, de 17
de outubro; DL n.º 396/2007, de 31 de dezembro; e DL n.º 3/2008, de 7 de janeiro
(cf art.os 1.º, 2.º e 3.º). Limita-se a retirar a Área de Projeto
nos 2.º e 3.º CEB e a introduzir as provas finais de Português e Matemática no
6.º ano. Não tem norma revogatória e não faz única referência ao DL n.º
18/2011, de 2 de fevereiro. Estranho, não é?
Quanto
ao ensino secundário, lá conseguiram tragar o DL n.º 50/2011, de 8 de abril,
que terminou com a Área de Projeto no 12.º ano e incluiu a Formação Cívica no
10.º ano, que foi retirada logo que se procedeu a nova revisão curricular com o
DL n.º 139/2012, de 5 de julho.
***
E
como ficaram as gorduras? Um estudo do Centro de Estudos Sociais (CES) da
Universidade de Coimbra, referido no JN
de hoje, por Luís Reis Ribeiro, revela que elas cresceram mil milhões. A
conclusão resulta do trabalho comparativo das contas do Estado de 2007 com as
previsões da proposta de Orçamento do Estado para 2015 (a previsão do défice é
de menos de 3% do PIB; querem que seja 2,7%). Segundo o estudo, os consumos
intermédios, as ditas gorduras do Estado, “não só não foram reduzidos, como
aumentaram mil milhões de euros”.
Verifica-se
o que já se sabia: a redução de despesa do Estado conseguida entre 2007 e 2015 “incide
exclusivamente em duas rubricas: despesa com pessoal e despesas de capital” (de
investimento público). A redução das despesas com pessoal (mais de mil milhões
de euros) deve-se aos cortes de vencimentos e subsídios, bem como à redução do
número de efetivos (só entre 2011 e 2013, a administração central perdeu perto
de 40 mil funcionários, dos quais cerca de 27 mil eram do MEC). Quanto ao
investimento público da administração central, pergunta-se qual dos projetos de
grande importância nacional é que não está parado. Estão agora em vias de
reatamento os trabalhos no túnel do Marão, valha-nos são menos isso!
Refere
ainda o mencionado estudo, que vai servir de pano de fundo a um debate no
CES-Lisboa, sob o título “OE 2015: Opacidades e insensibilidade social”, que “o
IRS sobe e penaliza proporcionalmente mais os mais pobres”, que “podem sofrer
mais em 2015 comparativamente com 2007”. E justifica com uma situação
totalmente verificável: “é mais provável uma família de rendimento elevado
ultrapassar o teto de 4500 euros anuais em despesas de educação e formação [o
novo valor das despesa cobertas para 2015]
do que uma família de baixo rendimento”.
+++
Assim,
com um Estado reduzido à exiguidade, pessoas singulares e pessoas coletivas
entraram em situação de insolvência e/ou de falência, grandes unidades
financeiras esmigalharam-se e, apesar de muitos setores manterem boas aparências,
talvez devido a poupanças anteriormente acumuladas ou a inconsciência de riscos,
o empobrecimento tornou-se assolador. Entretanto, a corrupção fez o seu caminho
e alguns enriqueceram desmedidamente.
É
caso para nos interrogarmos, parafraseando Cavaco Silva: “O que é que andaram a
fazer durante estes três anos os nossos governantes e seus assessores
intelectuais e tecnológicos”?
Certamente
que não foi para isto que os portugueses os elegeram. Não venha agora nenhum
desculpar-se com o “eu não fui eleito
coisíssima nenhuma”, como bradou Vítor Gaspar no Parlamento!
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